Evoé, homo dionisiacus do território em brasa chamado Brasil! Tuas sementes seguirão fazendo crescer as árvores selvagens da subversão de todos os cânones que confinam, de todas as caretices que oprimem!
Como forma de homenagem ao finado <José Celso Martinez Corrêa (1937-2023)>, falecido após um incêndio em seu lar paulistano ocorrido em Julho de 2023, A Casa de Vidro republica aqui dois artigos relevantes originalmente veiculados na Folha de São Paulo e na <Revista Piauí>, com autoria de José Miguel Wisnik e Ângela Santa Cruz. Vocês também podem apreciar <o texto sobre Roda Viva, de Chico Buarque, encenado pelo Teatro Oficina em 2019> e <este artigo sobre contraculturas através do prisma de Luiz Carlos Maciel> (ambos de autoria de Eduardo Carli aqui em acasadevidro.com).
O “vulcão” Zé Celso viveu e morreu pelo fogo, alimentando a chama vital de todos os que estiveram em sua órbita de influência; sua irreverência indomável, sua criatividade exuberante, sua coragem expressiva, seu legado imenso jamais serão esquecidos. Vida e obra como emblemas da tragicomédia que nossa condição nos obriga a encenar.
Zé Celso foi vulcão que viveu a tragédia humana até o fim
JOSÉ MIGUEL WISNIK
[RESUMO] A morte do dramaturgo e diretor do Teatro Oficina, que completa um mês, se soma às recentes catástrofes do fogo que trazem a sensação de aniquilamento civilizatório ao país, mas não é deprimente, por simbolizar uma explosão de energia que carrega o testemunho vital de quem viveu, pela arte, a dimensão redentora da tragédia humana até o fim.
À primeira vista, a morte de José Celso Martinez Corrêa, que faz um mês neste domingo (6), decorreu de um acidente caseiro, casual e atroz, que o atingiu em um momento em que ele se preparava, aos 86 anos, para o projeto teatral que vinha considerando o mais desafiador de sua vida: a encenação de “A Queda do Céu”, testemunho xamânico e cosmopolítico do líder yanomami Davi Kopenawa.
Para nós que o admiramos e o amamos, para quem conhece a importância incomensurável da sua presença, um incêndio acidental no quarto de quem dorme, provocado, ao que tudo indica, por um aquecedor doméstico, parece doloroso demais e fortuito demais para selar uma vida portentosa. Soa ao mesmo tempo terrivelmente evitável e terrivelmente fatal.
Ocorrida exatamente um mês depois da cerimônia de casamento com Marcelo Drummond no Teatro Oficina, celebração que foi por si só um acontecimento artístico glorioso, agregador e inspirador —juntando forças vivas do teatro e da música, de Marina Lima a Daniela Mercury, de Bete Coelho a Leona Cavalli, dos guaranis do Jaraguá à Vai-Vai—, a morte de Zé Celso veio com o travo da interrupção brutal e, mais que isso, do acaso gratuito e da falta de sentido.
Venho aqui um mês depois para revirar esse sentimento, arcando com as dificuldades inerentes ao tema e à falta de distância. Sem negar o que há de indigerível no acontecimento, há nele dimensões menos evidentes que é preciso encarar, tanto no que tem de difícil como no que tem de paradoxalmente mobilizador.
Começo pelo fato de que Zé Celso sempre foi um afirmador da vida contra tudo, tomando por isso mesmo a morte como manifestação crucial da vida a ser honrada, evocada e transmudada. Seus mortos sempre foram seus contemporâneos, ritualmente presentes a cada volta dos ciclos.
Não fosse essa reverência profunda pelo sentido da morte como transmutação, ele não teria fundado seu teatro sobre as bases da tragédia grega (o projeto arquitetônico do Teatro Oficina concebido como cenário permanente de “As Bacantes”, de Eurípedes, peça de quase 2.500 anos), não teria atravessado com ânimo acintosamente afirmativo a potência corrosiva de “Ham-let”, não teria instilado e extraído força do massacre de Canudos nos cinco espetáculos épicos de “Os Sertões”.
Nenhum desses espetáculos era para ele mera “representação” levada a efeito por um “metteur en scène”, como se diz em francês para “diretor”. Muito mais que isso, ele metia em cena, nos extremos do irrepresentável e do gozozamente compartilhado com o público, o destino atual, terrível e poderoso do Brasil-mundo —fosse na Grécia Antiga, na Inglaterra elisabetana ou na Primeira República. Seu alcance e sua originalidade são absolutamente únicos em qualquer patamar que se queira.
Entro agora em uma dimensão mais delicada e insondável envolvida, creio eu, em sua morte. Tenho a impressão, pelos meus últimos contatos com ele e pelo que depreendo dos relatos de quem convivia com ele diariamente, que Zé Celso estava vivendo uma luta íntima, talvez inconsciente ou de difícil elaboração, no mínimo, entre dois fogos: a chama acesa de quem não baixava o facho, que sustentou a vida inteira contra todos os obstáculos, e a chama que se apagava no corpo debilitado que perdia energia e mobilidade, a ponto de não poder mais se deslocar sem apoio e sem ajuda.
Quem assistiu ao filme televisivo de Tadeu Jungle “Evoé – Retrato de um Antropófogo”, filmado anos antes, se lembrará dele dizendo com enorme prazer que corpo e espírito são uma coisa só. Para quem apostava tudo nessa conjunção plena, é certamente quase insustentável viver a discrepância entre o espírito aceso no tesão da urgência criadora e um corpo bruxuleante e definhante a cada dia e noite.
Quando o visitamos, eu e Laura Vinci, companheiros de vida e companheiros em Zé (Laura ia fazer a direção de arte de “A Queda do Céu”), Zé Celso nos disse que estava sentindo muita dificuldade em viver “essa fase”. Para quem nunca considerou nenhum limite como absoluto, as limitações do envelhecimento apareciam a ele como circunstância passageira.
Com a mesma quase inocência desconcertante expressava, conforme o andamento da conversa, um entusiasmo real por conhecer e palmilhar a China, parecendo não considerar as enormes dificuldades que teria para realizar esse desejo. Seu apetite de vida em ato era assombroso.
“Vimos como quem vinga uma montanha altíssima”, diz Euclides da Cunha no final de “Os Sertões”. Zé Celso vingou (no sentido, aqui, de transpor) muitas montanhas altíssimas e trabalhava toda noite, em grupo, na dramaturgia de “A Queda do Céu”, montanha altíssima a ser vingada, na qual estava empenhada a espiritualidade indígena e a sabedoria da floresta frente aos ataques passados e presentes da brutalidade exploradora. Tratava-se de empenhar todas as forças do teatro na salvação dos yanomamis e, com eles, os indígenas, os viventes, a floresta, o planeta, o Brasil e o mundo a transformar.
É nessa contingência que eu peço licença para imaginá-lo, carente de calor na noite de inverno, puxando o aquecedor para demasiado perto da cama, contra todos os conselhos, avisos e advertências, levando as cobertas à combustão. Considerada a situação como um todo, esse não é um acaso qualquer. A sós com sua questão (cada habitante do apartamento dormia em quartos separados, seguindo seus ritmos noturnos próprios), parece que ele precisou demais chamar a chama para si. Vai nesse detalhe singelo uma pequena e grande desmedida, uma espécie de falha trágica em escala íntima, se me entendem.
Sinto certo mal-estar em tentar devassar com os recursos precários da suposição essa cena que para sempre nos escapará. Mas me recuso —nos recusamos— a desconhecer o quanto de vida e de arte ressoa nessa morte rigorosamente trágica e teatral em um sentido profundo. Lembremos que, não por acaso, o Zé Celso dramaturgo fez todo o teatro brasileiro reviver e desfilar no coma de Cacilda Becker, em nada menos que seis espetáculos da série “Cacilda!”, a partir de uma associação genial da inconsciência da atriz no transe da morte com o delírio da personagem Alaíde no “Vestido de Noiva” de Nelson Rodrigues.
Não é menos que isso que se passa no seu trato final com o fogo, que foi sempre o seu elemento. O Teatro Oficina renasceu do incêndio, em 1966, logo antes de “O Rei da Vela”, de 1967. “O Rei da Vela” e tudo que se segue são uma apoteótica mutação de fênix, e Zé Celso trouxe cada vez mais o fogo vivo para dentro do teatro, como se pode ver, entre muitas outras coisas, no esplêndido e impactante documentário “Máquina do Desejo”, de Joaquim Castro e Lucas Weglinski, ainda em cartaz.
No dia do incêndio, Victor Rosa o trouxe heroicamente para fora das chamas do quarto (me apoio nos depoimentos públicos dos três atores que moravam com ele). A Ricardo Bittencourt, Zé Celso disse com energia, mesmo com o corpo todo queimado: “As mãos, me dê as mãos”, como que dirigindo ainda a cena. Já no hall externo ao apartamento, se abraçou a Marcelo, no chão, enlaçando nele a perna como no último ato de dois amantes.
Parece impensável, olhando hoje a sua vida inteira, que ele morresse como um cisne ou um passarinho, na agonia lenta da própria energia. Sua morte é uma explosão da energia, ali onde ela parecia faltar.
Em conversa com João Camillo Penna, meu amigo e professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), ele deu à dimensão extraordinária desse pacto com o fogo no destino de Zé Celso um novo giro vertiginoso, ao lembrar que Hölderlin, quando se desafiou a escrever, em fins do século 18, aquela que seria “a verdadeira tragédia moderna” (à altura dos gregos mas na beira dos abismos e das novas incertezas que já se abriam para a história humana revolucionada), se voltou para a figura de Empédocles, o filósofo, poeta e taumaturgo de Agrigento que se atira no Etna em busca de uma relação fusional com o vulcão.
Hölderlin escreveu três versões fragmentárias de “A Morte de Empédocles”, cada vez mais curtas e enigmáticas, sobre esse ato irrepresentável e, afinal, fracassado como programa literário, mas que permanece como emblema impenetrável e perturbador dos impasses da nossa condição moderna, já nos seus primórdios.
A fusão com o fogo tentava suprir, em Hölderlin, a carência de um mundo do qual os deuses teriam se retirado, mergulhando o Ocidente na miséria espiritual. Reconhecendo a inviabilidade de escrever a moderna tragédia grega, Hölderlin passou a traduzi-la de um modo novo, que é o que fez com “Édipo e Antígona”, de Sófocles. Para ele, os gregos eram os “filhos do fogo” que vêm com o Sol do Oriente. É na própria natureza tempestuosa e pânica do fogo que Nietzsche, bebendo-o em Hölderlin, identificou o dionisismo na origem da tragédia —dionisismo que, afinal, alimentou o teatro de Zé Celso.
Hölderlin, como Zé Celso, pensava intervir no mundo moderno com a redescoberta da Grécia através do teatro. Não se trata de uma questão de influência, mas de afinidade. Ambos o fazem com ânimo libertário, emancipador, não regressivo, propulsor de novas comunidades. Mas há impasses para um alemão do século 18 aos quais o teatro de Zé Celso responde de outra forma.
“Por que poetas em tempo de indigência?”, pergunta a conhecida elegia de Hölderlin, “Pão e Vinho”. Fundindo dionisismo e cristianismo em chave órfica, o poeta alemão respondia à própria pergunta invocando o pão e o vinho como dádivas que, além de alimentos dos mortais, são oferendas divinas que nos fazem imortais —endeusados pela embriaguez do entusiasmo.
Zé Celso foi buscar esse mesmo motivo mais longe e mais perto: nas próprias fontes trágicas de “As Bacantes” e na tragédia-carnaval brasileira, a “tragycomediorgia”, como a chamou. Por caminhos enviesados, o “Pão e Vinho” de Hölderlin se converte em “Comida e Bebida” em Zé Celso, na cena em que o cego-vidente Tirésias ensina ao recalcitrante governador de Tebas, Penteu, os atributos divinizantes do que se come e do que se bebe: “Só duas coisas têm valor na vida/ Comida e bebida/ Comida e bebida// Comida é terra/ Deusa terra/ Dê-me terra/ Tua velha conhecida/ Que você chama/ Pelo nome que te apraz/ Pois com comida sólida ela dá de mamar/ Ela dá de mamar/ Ela dá de mamar aos mortais”. (Fiz a música dessa passagem em parceria com Zé Celso, e ela foi gravada por Elza Soares no álbum “São Paulo Rio”).
A cadência trágica puxada para o samba infunde no Brasil uma Grécia dionisíaca em que o apelo faminto pelos frutos da Terra Mãe ecoa ainda a marchinha de Carnaval “Mamãe eu quero/ Mamãe eu quero/ Mamãe eu quero mamar”. O nome da deusa grega Terra, Deméter, se converte por sua vez em “dê-me terra” —imprimindo ao mito uma dimensão política atualizada (“Comida é terra/ Deusa terra/ Dê-me terra”).
Em resumo, Zé Celso tratou os clássicos com fidelidade e gravidade tremendas, exatamente porque sem nenhuma cerimônia. Para a tragédia, convergem todos os teatros, incluindo o Carnaval, o rebolado, o circo e o programa de auditório —a já citada “tragycomediorgia”. Caem as máscaras das pompas fúnebres do teatrão para que apareçam os papéis sociais e políticos do teatro da dominação. As máscaras fundantes do teatro, por sua vez, comparecem ostensivamente, essas sim, como fé cênica, isto é, como poder de instauração (“fingir fingir fingir e atingir o ser”).
Seu “Ham-let” é Cazuza e canastrão assumido, rebelde sem causa na terra do Sol, não abismado na melancolização encruada da personagem, mas às voltas com a usurpação do poder encobrindo um assassinato e falando da ordem neoliberal no Brasil e no mundo. Na sua última versão de Beckett, Zé Celso decreta que Godot morreu e morto é quem o espera. Esse estar à vontade com a matéria clássica foi aprendido certamente em Oswald de Andrade.
Zé Celso vai aos arquétipos do teatro enquanto ato fundador, daí aos gregos, mas sem a chatice da solenidade ritual. Manejou com destreza o distanciamento brechtiano quando quis, como em “Galileu Galilei”. Talvez se possa dizer que politizou o teatro catártico exatamente por imprimir-lhe jatos de distanciamento crítico, cênico, paródico nos quais, às vezes, se divisa a improvável conjunção de Dionísio com Brecht.
Para ele, o teatro é vida pública e a vida pública é um teatro a ser assumido e desnudado. Buscou sempre essa permeabilidade entre uma coisa e outra, à custa de um alegorismo muitas vezes excessivo. Mas se orgulhava do “rigor” de seu trabalho teatral quando conseguiu, em uma audiência pública, fazer com que Paulo Maluf lesse Penteu contracenando com Elke Maravilha no papel de Dionísio. Sonhava dirigir Jânio Quadros, que considerava um dos maiores atores brasileiros, no papel de Cadmo, o ancião da elite tebana, pai de Penteu, que se embriaga atraído pelos poderes de Dionísio.
Para além dessas cenas explícitas de política teatralizada, é reveladora a passagem de “Máquina do Desejo” em que, avaliando sua trajetória, já na velhice, Zé Celso se identifica com o papel do Palhaço que antagoniza com o Palácio —o palco italiano das estruturas políticas engessadas que escondem os desejos e os interesses que as movem.
Silvio Santos é reconhecido enquanto o Palhaço que também é, mas enfrentado como o antagonista que quer engolir a arquitetura única do Oficina (patrimônio cultural material e imaterial tombado e considerado em uma lista do jornal The Guardian o teatro mais especial do mundo) dentro das torres mercantis do Baú da Felicidade, como se seu destino final fosse desembocar em uma praça de alimentação de shopping center.
Essa batalha cultural e econômica que atravessou as décadas se tornou uma verdadeira alegoria prática do embate atual entre arte e capital, estendendo-se ao debate urbanístico sobre a destinação privada de todos os espaços e a demanda pela abertura rasgada do parque do Bexiga no entorno que abraça o teatro-sambódromo Oficina Uzyna Uzona e faz dele o Anhangabaú da Feliz Cidade.
Ao longo do tempo, o teatro criado por Zé Celso se fez e veio se fazendo atravessado por comunidades (incluindo populações de moradores sem-teto do Bexiga, que tiveram participação importante em “Os Sertões”) e é, a seu modo, quilombo, aldeia e experimento coral das potências que se abrem quando velhas divisórias brasileiras caem por terra.
O Brasil recente é marcado por muitas catástrofes desoladoras e deprimentes, pela sensação de aniquilamento civilizatório que trazem —desmatamento, queimadas, Mariana, Brumadinho e, entre todas, pelo seu simbolismo histórico, o incêndio do Museu Nacional. A morte de Zé Celso é também uma catástrofe do fogo que nos atinge, mesmo que não saibamos o quanto.
No entanto, por tudo o que tentei dizer aqui, ela não é deprimente. Ela traz todas as marcas do testemunho vital de quem viveu, pela arte, a dimensão redentora da tragédia humana até o fim. Godot morreu. Zé Excelsius não. A gente é que saiba o que fazer com isso. Talvez finalmente possamos entender o que ele disse tantas vezes: que a palavra-chave da cosmopolítica não é resistência, mas reexistência.
Merda!
José Miguel Wisnik
Professor sênior de literatura brasileira na USP, ensaísta e compositor, é autor, entre outros, dos livros “Maquinação do Mundo” (2018) e “Veneno Remédio” (2008)
FSP 05.08.2023
Angélica Santa Cruz | Edição 203, Agosto 2023
O comentário inevitável era entreouvido pelas pessoas que – empoleiradas no famoso emaranhado de tubos de aço que formam a plateia do Teatro Oficina – acompanhavam o velório de José Celso Martinez Corrêa: de cabo a rabo, a cerimônia fazia jus à obra do dramaturgo e diretor. Na noite de 6 de julho, uma quinta-feira, a despedida foi recheada de nuances entre tristeza e alegria, poesia e contestação, congraçamento em que tudo fazia sentido e mixórdia em que ninguém entendia nada. Tudo com horas e horas de duração e tendo, como pano de fundo, um aspecto profundamente ritualístico. Igualzinho, portanto, ao climão geral das peças que, ao longo das últimas décadas, viraram a assinatura de Zé Celso.
Às 21 horas, jovens atores começaram a varrer o chão de madeira laminada da passarela de 50 metros que serve de palco do belíssimo Oficina, hoje uma referência cultural do bairro do Bixiga, na região central de São Paulo. O público já começava a lotar o ambiente que, iluminado com luzes vermelhas, ganhava um efeito cênico levemente dionisíaco. Às 22 horas, uma banda improvisada puxou uma toada de canções. Primeiro, Menino Bonito, de Rita Lee. Depois, Carinhoso, de Pixinguinha e Braguinha. A lotação começou a aumentar perigosamente, com gente escalando os pedaços da arquibancada que permaneciam vazios. Em nome da segurança, a plateia foi lentamente esvaziada. A pequena multidão, então, passou a esperar do lado de fora pela chegada do corpo de Zé Celso.
Às 22h40, o trecho da Rua Jaceguai que corre ao lado do Viaduto Júlio de Mesquita Filho, onde fica o Oficina, foi fechado para o trânsito. Às 23h14, as portas do teatro se abriram de novo. O carro do serviço funerário entrou, percorrendo vagarosamente a passarela até chegar nos fundos, com os faróis acesos. O caixão, enfeitado com alguns girassóis, foi retirado e cercado por amigos e familiares. Do lado de fora, um grupo de atores tocou tambores. Dentro do teatro, a banda entoou A Felicidade, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Às 23h34, o carro saiu de ré, cuidadosamente.
Às 23h48, organizadas em fila e de mãos dadas, as pessoas começaram a entrar novamente no teatro, engrossando o coro da música da vez. A cobra humana andava até os fundos da passarela, dava a volta no caixão e depois voltava em direção à saída – em um movimento orientado por atores do Oficina vestidos de branco com adereços de folhas nos cabelos. Pela grande corda passaram jovens com cara de estudantes de teatro, alguns soltando brevemente as mãos para beber em garrafas pelo gargalo, na velha atitude juvenil de tristeza rock‘n’roll. Entraram senhores respeitáveis, usando cachecóis, e senhoras com os cabelos bem penteados. Vez por outra, a ciranda passava levando rostos conhecidos do mundo das artes. O maestro João Carlos Martins, um dos responsáveis pelo tombamento do Teatro Oficina em 1982, quando era secretário estadual de Cultura, entrou olhando ao redor e para o alto, com cara de fascínio. A atriz Bárbara Paz passou chorando. Julia Lemmertz e Maria Casadevall também. O ator Alexandre Borges estava entre os muitos que choravam e riam, ao mesmo tempo.
Artistas que estavam por ali se revezavam no microfone. À 00h04, Chico César cantou Béraderô, uma de suas composições, e foi acompanhado por um grande coro do público. À 0h28, a banda improvisada cantou Na Cadência do Samba, de Ataulfo Alves e Paulo Gesta – provocou uma apoteose de palmas. O cordão de visitantes varou as horas seguintes até se desfazer, mas dezenas de pessoas continuaram chegando e encorpando o que se transformou em uma noite daquelas com poder para ativar em suas testemunhas a frase “Eu estive lá!”.
O último ritual pagão do diretor só acabaria por volta das 12h30 da sexta-feira. Uma fala de encerramento coube a Márcio Telles, ator do Oficina e pai de santo. “Zé Celso deixa de ser o nosso grande mestre para virar uma eternidade. Estamos aqui celebrando a vida, porque não acreditamos na morte – somos artistas”, disse ele. O deputado estadual Eduardo Suplicy ajudou a levar o caixão até o carro da funerária. De lá, o corpo de Zé Celso seguiu para outra cerimônia, a de cremação – exclusiva para familiares e amigos.
Zé Celso começou a cavar sua importância na história do teatro brasileiro no final da década de 1950, quando fundou o Oficina com outros artistas, como o então namorado Renato Borghi. Em 1963, encenou Pequenos Burgueses, de Máximo Górki. No ano seguinte, Andorra, de Max Frisch – ambas com imenso sucesso de público. Mas só entrou para o rol dos grandes transgressores em setembro de 1967, quando encenou pela primeira vez O Rei da Vela, de Oswald de Andrade. O cartaz da estreia já avisava: “Atenção: quadrados, festivos, pudicos, não venham.” A montagem entrou em cheio no bololô que daria no Tropicalismo, movimento estético que chegou ao cinema (com Terra em Transe, lançado quatro meses antes por Glauber Rocha), à música popular (com a turma de bambas puxada por nomes como Rogério Duprat, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé que, no ano seguinte, lançaria o disco Tropicália ou Panis et Circensis) e às artes plásticas (com Hélio Oiticica).
Em 1968, Zé Celso esticou mais ainda a corda de sua capacidade de provocar perplexidade com a peça Roda Viva, de Chico Buarque. Em cena, o elenco fazia críticas à família, à propriedade, à religião e eliminava qualquer distância do público, lançando insultos à plateia e respingando sangue nas primeiras filas, ao morder pedaços crus de fígado de boi – o que arregalou os olhos da ditadura militar e mobilizou os extremistas de direita, que invadiram o teatro e espancaram o elenco. Em 1972, com a montagem de Gracias, Señor, o diretor mergulhou de vez em seu caminho altamente ritualístico, que viraria um traço de seu trabalho.
Em alguns momentos, a fusão de teatro com ritos sagrados chegou a extremos, como no famoso episódio de 1996, em que atores e operadores de luz entraram em um transe coletivo de oito horas, depois de tomar chá de ayahuasca no ensaio da tragédia As Bacantes, de Eurípides. Apesar da viagem geral, ninguém errou falas ou marcações – ou se alguém errou, ninguém notou. Quando foi apresentada no Rio de Janeiro, a peça causou frisson depois que uma atriz arrancou Caetano Veloso da plateia e o deixou nu como um bebê, em cena aberta.
“No Teatro Oficina, esse lugar sem coxia, com tudo aberto, o Zé até o fim mostrava cada passo do rito da encenação. As pessoas viam os atores trocando de roupa para entrar em cena, mergulhavam nesse tempo alongado e específico da liturgia do teatro – que é sempre um ritual, porque a gente incorpora personagens, do mesmo jeito que acontece nas religiões de incorporação. E o teatro do Zé era isso, era o entusiasmo, no sentido etimológico de ‘ter um Deus dentro’”, diz o diretor, dramaturgo e ator Marcelo Drummond, viúvo de Zé Celso.
O casal se conheceu em 1986, andando pelas ruas do Baixo Gávea, no Rio de Janeiro. Pararam para conversar e, no minuto seguinte, foram para a cama. “Nos anos 1980 era assim, a gente se pegava”, diverte-se Drummond. Aos 24 anos, ele acabou mudando para São Paulo e debutou em grande estilo: com o consagrado ator Raul Cortez, foi um dos protagonistas da peça As Boas, montagem de 1991 que marcou a volta do Teatro Oficina depois de um longo recesso – desde que voltara de quatro anos de exílio, em 1978, Zé Celso ficara longe dos palcos.
Dali em diante, Drummond participou de todas as montagens e ajudou a girar a roda do Oficina, além de ser o companheiro de vida do dramaturgo por 37 anos. “Fui muito apaixonado por ele e isso se transformou num amor imenso, numa coisa que não tem igual”, diz. Um mês antes da morte de Zé Celso, os dois se casaram, em uma “festa orgiástica” na passarela do teatro. A cerimônia rendeu cenas lindas, com ambos vestidos de branco, sorridentes. “Não foi nada romântico. Teve uma intenção de fazer essa coisa inaceitável para o etarismo, esse abuso que é um cara de 86 anos e outro de 60 se casando. Mas foi a coisa prática, de poder levar adiante a obra dele, que definiu o casamento oficial.”
Transgressor, ritualístico, com uma honestidade intelectual feroz – só fazia o que queria, apesar de ter passado boa parte da carreira às voltas com uma falta crônica de dinheiro –, muitas vezes rodeado por jovens atores que nutriam uma admiração messiânica por sua personalidade, Zé Celso acabou carregando uma imagem com força suficiente para assustar as pessoas. “Vários artistas com quem ele trabalhou disseram que no início tinham medo dele, mas chegando perto viram como era amoroso”, diz Drummond. Na noite de uma quarta-feira, doze dias depois do velório, sentado na varanda do apart-hotel onde foi hospedado por amigos, no bairro do Paraíso, ele conversou com a piauí sobre o “Zé Celso das internas”: “As pessoas não imaginam, mas ele era extremamente ligado à família, aos irmãos – é uma gente incrível, fora de série e que sabia valorizar o tamanho e o valor dele”.
O avô do diretor, Celso Martínez Carrera – um espanhol radicado em Araraquara, interior de São Paulo – projetou a cama patente, considerada uma das joias do mobiliário nacional. O pai, Jorge Borges Corrêa, que chegou a ser vereador e prefeito interino na cidade, era um professor louco por literatura e por cinema – e cevou a imaginação dos sete filhos com filmes caseiros e uma biblioteca numerosa. A mãe, Angela Martinez Corrêa, a dona Lina, era linha dura e sangue quente. Zé Celso cresceu próximo e manteve ligações estreitas com os familiares – a não ser no auge do desbunde dos anos 1960, quando irritou alguns deles. Dois irmãos já morreram, a professora Maria Helena, também autora de peças, e Luís Antônio Martinez Corrêa, o talentoso diretor de teatro musicado que estava em plena ascensão quando foi assassinado, em 1987, no Rio de Janeiro, com mais de cem facadas, mãos e pernas amarradas em uma cama. O crime, cometido por um surfista, foi tão brutal que quase levou Zé Celso, arrasado, a desistir de fazer teatro.
Em 1994, em uma terça-feira de Carnaval, Zé Celso sofreu um infarto. “A gente ficou numa merda total, sem dinheiro nenhum. O Oficina ainda voltando, sempre polêmico. O demônio era o Zé, muitas pessoas e boa parte da imprensa tinham um grande bode dele. Atores que iam para a televisão até se afastavam do Oficina”, lembra Drummond. Zé Celso resolveu se mudar com o marido para o mesmo prédio no bairro do Paraíso em que já moravam, há anos, duas de suas irmãs, a historiadora e professora Anna Maria – responsável por levá-lo para o teatro na juventude – e a artista plástica Lala. Foi um arranjo perfeito. O dramaturgo alugou o apartamento 63; Drummond ficou no do lado, o 62. No andar de baixo, as irmãs. Aos domingos, até a morte de Zé Celso, todos se reuniam para almoçar e recebiam outro irmão também muito próximo, o arquiteto João Batista – que, entre outros projetos, assina o do túnel brutalista da estação de metrô Cardeal Arcoverde, em Copacabana. Agora herdeiro da obra de Zé Celso, Drummond planeja abrir uma fundação. Além do legado do diretor, quer juntar também os escritos, projetos e obras de arte produzidos por todos os seus irmãos.
Pelos olhos domésticos de Drummond, o dramaturgo, ator, diretor e militante Zé Celso, sempre associado às provocações, era mais silencioso do que barulhento. Tomava banhos demoradíssimos – e, às vezes, chamava quem estava em casa quando um deles resultava em uma nova ideia. Foi notívago até o fim, jantava por volta de uma da manhã e ouvia música alta na madrugada – o que provocava reclamações das irmãs no andar de baixo. Sempre esteve às voltas com perrengues financeiros, mas não se deixava amedrontar por isso. Só teve certo sossego depois que passou a receber, a partir de 2010, uma pensão vitalícia como indenização por ter sido preso, torturado e exilado durante a ditadura militar – um dinheiro fixo que lhe permitia pagar o aluguel, os remédios e o salário de um secretário.
Foi profundamente afetado pelos anos de reclusão durante a pandemia de Covid. Ficou com passos vacilantes e, por isso, andava de mãos dadas com alguém, para se garantir. A partir desse período, Drummond passou a fazer e servir suas refeições, arrumar seu quarto, tomar as decisões da casa. Aproveitava que o companheiro dormia até tarde e resolvia as coisas na rua no período da manhã. Às vezes achava que os olhos de Zé Celso estavam perdendo um pouco de sua faísca – mas, nos últimos meses, o vigor voltara com tudo durante os preparativos do projeto da vez, a peça A Queda do Céu, baseada no livro de Davi Kopenawa, líder yanomami, e do etnólogo francês Bruce Albert.
Ainda assim, reclamava dos lapsos da idade. “Ele perguntava a mesma coisa, várias vezes seguidas, e se esquecia da resposta. Ficava preocupado e me perguntava: Será que estou com Alzheimer? Eu respondia: ‘Não, Zé, você só fuma maconha há muito tempo.’” Drummond já sente muitas saudades de como debochava de Zé Celso – e de como ele ria disso. “Mas a gente brigava muito também. Acho que o conhecia muito bem, justamente porque era a única pessoa que nunca concordava imediatamente com o que ele falava.”
Nos últimos meses, os apartamentos que funcionavam como uma casa só passaram a hospedar dois amigos, os atores Ricardo Bittencourt, que havia acabado de voltar da Alemanha, e Victor Rosa, um jovem que perdeu o pai para a Covid e, como morava em Guarulhos, tinha dificuldades para ir embora depois das longas peças do Oficina, que chegavam a durar até seis horas. Bittencourt passava madrugadas conversando com Zé Celso. De seu quarto, Drummond ouvia os papos de longe, enquanto pegava no sono. Na noite fria de 4 de julho, uma terça-feira, a casa foi dormir depois de uma dessas longas conversas. Todos acordaram repentinamente pela manhã, confusos e cobertos de fuligem, com um incêndio se alastrando pelo quarto de Zé Celso e o vulto dele tentando sair, segurando um andador. Com metade do corpo queimado, o diretor morreu dois dias depois. O laudo do Instituto de Criminalística apontou como causa provável “o contato entre um aquecedor e materiais de fácil combustão, presentes no cômodo”.
Semanas antes da morte de seu companheiro em tempo integral, ainda em junho, Drummond foi escolhido em assembleia vice-presidente da Associação Teatro Oficina Uzyna Uzona, nome formal do Oficina. E, poucos dias depois de perdê-lo, diz que vai continuar tocando o teatro como sempre, com decisões tomadas em colegiado. Mas tem batalhas dramáticas pela frente. Não bastasse o desafio de tocar um teatro adiante, já anda evocando as forças dionisíacas para conseguir ventos a favor na briga que já dura 43 anos com o Grupo Silvio Santos, que resiste a transformar o terreno que circunda o Teatro Oficina em um parque que, entre outros benefícios, libertaria o Rio Bixiga, que corre por ali, 4 metros abaixo do solo.
No dia de seu casamento, Zé Celso e Drummond foram impedidos por uma liminar judicial de plantar no terreno, como haviam anunciado, um pé de ipê enviado de presente pelas atrizes Fernanda Montenegro e Fernanda Torres. Sete dias depois do velório do dramaturgo, a companhia foi à forra. Conseguiu autorização da prefeitura para plantar a árvore na calçada diante do terreno em disputa – onde Silvio Santos planeja construir três torres, uma delas bem na frente do imenso painel de vidro na lateral do Oficina, por onde se pode ver o movimento da cidade durante as peças.
Às 16h35 do dia 13 de julho, uma quinta-feira, a terra de um pequeno canteiro foi revolvida. Meia hora depois, a muda de ipê estava lá de pé – rodeada também por seis rosas brancas, duas espadas-de-são-jorge e cinco antúrios vermelhos plantados por artistas. Com música, choro e gente tocando na árvore como se fosse a personificação de Zé Celso, o plantio foi uma cerimônia, claro, cheia de rituais.
Publicado em: 08/08/23
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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