“O ebola ilustra bem o problema. Um estudo realizado em 2017 mostrou que as aparições do vírus, cuja fonte foi localizada em diversas espécies de morcegos, são mais frequentes em zonas da África central e ocidental recentemente desmatadas. Quando suas florestas são derrubadas, os morcegos são obrigados a procurar as árvores de nossos jardins e fazendas. A consequência é fácil de imaginar: um humano ingere a saliva de morcegos mordendo uma fruta em que ela foi depositada ou, tentando perseguir e matar esse visitante importuno, expõe-se aos micróbios refugiados em seus tecidos. Assim, diversos vírus de que os morcegos são portadores, mas que neles permanecem inofensivos, conseguem penetrar nas populações humanas…” (SHAH, 2020) [1]
Estudiosa da história da ciência e autora de livros como The Fever e Pandemic, Shah tem realizado um esforço midiático considerável, seja através de TED Talks ou de reportagens (como esta no The Nation), para expor os vínculos entre ecocídios e pandemias. Contribui assim para desmontar a farsa que consiste em lançar a culpa por zoonoses nos animais não-humanos que servem de vetores para os vírus e micróbios que acabam por infectar populações humanas. Ora, “criminalizar” os morcegos ou os macacos pelo Outbreak de ebola (tema de um impressionante filme dirigido por Wolfgang Petersen, Epidemia), ou culpabilizar os animais exóticos vendidos nos mercados de carne de Wuhan (epicentro inicial da covid19), é um modo de fugir à responsabilidade humana por aquilo que hoje nos ataca.
O cinema contemporâneo, através de obras-primas como Contagion de Soderbergh e O Hospedeiro (The Host) de Bong Joon-Ho, sondou a fundo as cadeias de transmissão de males contemporâneos como as zoonoses pandêmicas. Ambos os filmes mostram que as ações humanas desastrosas estão gerando sub-produtos monstruosos que se erguem para atacar-nos, sanguessugas de nossas saúdes e vidas.
No monumental ruído das mídias, um tema acaba censurado, sub-debatido, silenciado por excesso de barulho – e é o fato de que nossa vida e nossa morte não são dissociáveis ou separáveis, em nenhum momento, de condições materiais-ambientais que a ciência da ecologia nasceu para estudar. O biólogo evolucionista estadunidense Rob Wallace, autor do livro Pandemia e Agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência (Ed. Elefante, 2020, tradução do original Big Farms Make Big Flus), “busca superar a cisão entre ciências humanas e naturais por meio da crítica radical ao modo de produção capitalista aplicado às atividades agropecuárias”:
“Para o autor, esses micro-organismos são resultado da maneira como passamos a criar animais para consumo nos últimos quarenta anos. Quem já teve a oportunidade de ir a uma granja ou a uma fazenda de porcos sabe do que estamos falando: milhares (milhões) de animais confinados, muitas vezes impedidos de dormir e comendo 24 horas por dia para engordar — e ir para o abate — cada vez mais rápido. Para quê? Para aumentar os lucros das empresas, claro, que se transformaram em grandes conglomerados.
O número de animais criados para alimentação cresce quase duas vezes mais rápido que a população humana. Aves, vacas, porcos separados pelo produto a ser extraído (carne, ovos, leite), em estabelecimentos onde compartilham raça, idade e sistema biológico. E isso, para a natureza, cuja lei mais importante é o equilíbrio na diversidade, significa uma praga gigante. Uma atração inevitável para outros animais, um banquete para micro-organismos. Um experimento permanente de mutações e contágios extremos.” [2]
Diante da gravidade da crise de saúde – com cerca de meio milhão de vidas perdidas para a covid19 -, torna-se óbvio que é preciso fazer a travessia urgente da crítica à civilização atual, no plano teórico, rumo à prática coletiva transformadora do que se quer vender como um capitalismo extrativista e ecocida que não teria alternativas. A atual conjuntura no Antropoceno fervente nos conduz a pensar na necessidade urgente de que se abram novos caminhos éticos a serem trilhados por aqueles que hoje, infelizmente para eles e para todos em seu entorno, insistem na via errônea, catastrófica e desastrosa do obscurantismo que fura os seus próprios olhos para não enxergar a verdade amarga. Hoje, o amargor de uma verdade tabu é que exacerbam-se os sofrimentos humanos acarretados direta ou indiretamente por ecocídios, com toda a intensidade e variedade de dor humana encarnada nela que grita de todos os os poros e cantos da nossa realidade ultrajada.
2 – O DÉFICIT DE EMPATIA NA PSICOPATOLOGIA DE MASSAS: O “e daí?” de Jair Bolsonaro diante das vítimas fatais da covid19 serve de emblema de uma doença civilizacional que se disseminou e tornou-se massiva, o que chamo de déficit de empatia. Livros (como a obra-prima de Roman Krznaric sobre O Poder da Empatia) e reportagens (como esta no site Arré) apontam para este fenômeno da empathy crisis – a muito vastamente espalhada condição que consiste na incapacidade do sujeito se colocar no lugar do outro, sentir o que o outro sente, experimentar o mundo de um viés que transcenda o egocentrismo.
Há séculos, sábios budistas referem-se a isto como uma cegueira que acarreta a incapacidade para a compaixão: situação nascida da avidya (cegueira), isto é, da ignorância dos que foram cegados por outros mas que também cegam a si mesmos, conduzindo à indiferença ou apatia diante da alegria ou da dor de outros seres sencientes. A avidya é uma força de conservação da estreiteza de mente. Age para tornar o eu pétreo, fixado, nada fluido, impedindo o salutar colapso do muro separador erguido pelo eu para manter-se apartado dos outros e do mundo. Segundo Donati Caleri:
“A constatação visceral da relação de interdependência produz uma relação natural e espontânea de cuidado e atenção com todos os seres. O entendimento vivencial de que a vida pulsa em todas as coisas, sem hierarquia ou supremacia. Então, todas as coisas são partes inalienáveis da cadeia produtiva de acontecimentos que irá propiciar, mesmo que de forma provisória, o surgimento de meu eu, do seu eu, de todos os eus que quisermos pensar. Corporalmente cientes da interdependência, o sentimento que se expressa é o de compaixão. Cuidar com atenção de qualquer coisa, pois tudo faz parte da teia que constitui o corpo e a mente do único ser.”
DONATI CALERI, p. 138-139 [2]
É preciso, portanto, falar da potência política do conhecimento, ou seja, a transformação prática e existencial que o conhecimento opera, quando consegue libertar o sujeito de suas servidões antigas. A libertação dos sujeitos não se faz sem o saber que se expande – e hoje seguramente podemos afirmar que o “conhece-te a ti mesmo!”, do Oráculo de Delfos, que tanto fascinou a Sócrates, que tanto influenciou o caminhar da filosofia, conduz a uma resposta onde o eu nunca está só: é impossível conhecer-se no desconhecimento da teia vital que compomos. Somos fios na tapeçaria complexa da vida multiforme. Só a consciência atenta deste fato nos dará aquela ciência da interdependência do qual tão urgentemente depende o despertar de um percurso ético onde sejam forças ativas a empatia, a compaixão, a união solidária de destinos. Pois solidários somos ontologicamente, ainda que separados pelos arames farpados de ideologias e de estruturas de pertença sectárias.
O mal no mundo não é punição imposta de cima para baixo por qualquer furibundo deus. O mal no mundo é cozido nos fornos do próprio mundo. Uma doença devastadora, que alastra-se em epidemias múltiplas, causando milhares de óbitos precoces, ceifando vidas de quem supunha talvez que tivesse ainda muito por viver, obriga o nosso pensamento a sondar as origens do mal presente. É preciso buscar os nexos causais de um processo gerador, espalhado no tempo, que nos permita perceber quando e onde foram plantadas estas evil seeds que agora nos oferecem macabros frutos podres e venenosos. O “e daí?” de Bolsonaro não saiu do nada: foi uma semente má que deu frutos podres, uma semente plantada lá atrás por escravocratas, racistas, elitistas, misóginos, homofóbicos, que não soubemos derrotar e expulsar do palco histórico a bom tempo. A mentalidade escravocrata e alterofóbica sobrevive ainda hoje (o que torna justificável e legítima a argumentação dos que exigem uma Segunda Abolição da Escravatura). Jair Bolsonaro, durante a crise pandêmica, é um paradigma das ideologias e das práticas a elas conexas que manifestam a mente estreita e cega que enclausura os escravocratas.
Não há vergonha, mas sim infelicidade, em estar submetido à escravidão – e tal infeliz sina já recaiu até sobre figuras que hoje alçam-se alto no panteão dos grandes filósofos da História, como Diógenes de Sínope, fundador da escola pós-socrática do cinismo. Estar escravizado muitas vezes não tem nada a ver com a culpa do sujeito que foi submetido a tal humilhação degradante, mas sim com a culposa prepotência do escravizador-do-outro: a vergonha está toda com o escravizador, e não com o escravizado. O levante do escravizado para libertar-se é simplesmente a expressão de uma ânsia de justiça, um protesto rebelde contra a injustiça alheia. Ilude-se quem pensa que há paz social possível sem justiça: quando as injustiças sociais são concretas, atingindo na carne-e-osso os corpos dos humanos a quem a opressão é imposta, não há como refrear uma espécie de lei da Natureza manifestando-se nas comunidades humanas: os conservadores, após a explosão da tempestade humana dos oprimidos em levante, querem culpar aos servos, aos escravos, aos proletários, às mulheres submetidas ao Patriarcado, às colônias submetidas ao Império, pela violência com que os oprimidos enfim se levantam contra as autoridades e os donos do Poder. Mas Brecht perguntaria: por que não dizem do quão violentas são as margens que comprimem um rio quando este arrebenta os diques da represa?
3 – ESTRUTURAS DE PERTENÇA: Explanação sobre as “bolhas” e o “fake”
“A Besta tanatocrática se revelou, totalmente, nas nuvens de Hiroshima”, escreveu Michel Serres em Narrativas do Humanismo. De fato, o bombardeio atômico contra as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, em 1945, acendeu um alerta bem visível sobre a face da Terra: tínhamos em mãos, nós a Humanidade, uma espécie de arma capaz de nos propiciar o poder sinistro do suicídio coletivo. A auto-extinção tornou-se algo passível de ser concebido como realizável. Como pudemos descer tão baixo, rumo à tão destrutiva orgia de esfacelamento em massa de vidas alheias? E por que aquela bestialidade sinistra não foi superada, a ponto de estarmos, em 2020 d.C., diante de novas “Bestas tanatocráticas” nas lamentáveis figuras de Bolsonaros e Trumps?
O extermínio em massa de um grupo humano coloca a questão: como é possível que tantos indivíduos se tornem solidários na destruição de uma alteridade? Talvez aí, neste senso de solidariedade grupal, possamos buscar as raízes afetivas deste apego que muitos têm à pertença-de-seita. Pertencer a uma seita é uma espécie de ânsia humana, que mobilizaria o que Michel Serres em sua filosofia chama de “libido de pertença”. Sobre a tão famigerada e ultra-debatida questão sobre a “Natureza Humana”, podemos seguramente dizer que os humanos naturalmente tem vontade de pertencer. Escreve Serres, sobre a pertença:
“Sem dúvida, não podemos passar sem ela. Amamos em dupla, comemos em família, vivemos em nossa região, colaboramos com os assuntos da cidade ou da profissão, pensamos de acordo com nosso corporativismo, falamos nossa gíria, respeitamos nossa cultura e, por vezes, a pátria, tudo isso na companhia de comparsas, orgulhosos de uma civilização comum. Mas essa paixão, cuja intensidade encanta nossa felicidade e nos enlaça em nossos próximos, a pares, a semelhantes, acarreta também a violência. Querelas entre tribos, guerras entre nações. Luta de classes, a rivalidade opõe, tanto e ainda mais do que as pessoas, os grupos dos quais temos prazer em fazer parte… Mas podemos sonhar em viver sem comunidade? Será preciso, também nesse caso, que o amor se misture ao ódio, e a solidariedade ao assassinato sacrificial?” SERRES. pg. 118 [3]
Pelo nosso desejo de pertença, acabamos às vezes caindo na desmedida, na húbris do excesso, por um exagerado apego a um grupo de pertença. O que está relacionado aos fenômenos super-contemporâneos das bolhas e do fake. Uma bolha é uma metáfora para um grupo de pertença: o indivíduo e seus comparsas, presos dentro de uma bolha que se retro-alimenta pela repetição do mesmo dogma. O tema das fake news e da pós-verdade não é desvinculável de uma credulidade que faz com que o sujeito tenha um apego e uma aderência àquilo que constitui uma espécie de cimento do grupo.
A bolha hiperbólica é composta por gente que perdeu a singularidade e está tão coesa com os outros habitantes da bolha que nem mesmo percebe sua própria des-personalização: minha bolha acredita que a Terra é plana, ou que Jesus nasceu de uma mãe virgem, ou que o partido nazifascista alemão era de esquerda, portanto… isso só pode ser verdade!
Este argumento falacioso, nascido do espírito de manada e da estreiteza de visão, viola toda a lógica e trucida toda ética ao querer fazer da pertença à bolha um acesso privilegiado à Verdade suprema. Crer que sua bolha detêm a verdade sobre o Cosmos inteiro é o suprasumo desta prepotência dos apóstolos do fake. É isso que falta ainda entender a fundo sobre o fenômeno das fake news – como ele é sentido, por dentro, pelos sujeitos que são os crédulos multiplicadores das ditas fake news. Sabemos que, apenas da legião de robôs que emulam milhares de seres humanos, há sim humanos de carne-e-osso que acreditam nas mentiras e ainda as passam para frente, espalhando-as de modo virulento.
As bolhas, como fenômeno humano, estão conectadas não só às epidemias de mentiras, que inclusive decidem eleições presidenciais (Brasil em 2018), mas também ao ecocídio. Seria importante reler e re-estudar a obra de Naomi Oreskes e Erik M. Conway, Merchants of Doubt.
O ecocídio só advém como fenômeno civilizacional quando houve a produção prévia de subjetividades formatadas de maneira tal que o ego está tiranizando o eco. O prepotente eu do ser humano (parte ínfima de um cosmos gigante), esquecido de sua pertença ao nós da teia da vida, alucinado acelera sua máquina mortífera feita de combustíveis fósseis, propulsionando poluentes para uma atmosfera que se torna mais tóxica e caliente. Além disso, delirante de superioridade, autoriza-se e dá procuração a outros para que pratiquem em seu nome e com seu dinheiro todos os crimes vinculados ao especismo e ao carnismo.
Em tal contexto, torna-se salutar para a saúde coletiva poder transcender a costumeira estreiteza de mente para tentar abarcar as complexidades ampliadas de um real revelado como isto: uma teia, fina tapeçaria de que somos fios, interdependentes de todos os outros seres sencientes, efêmeros enquanto agregados singulares mas eternos na composição visceral de nossa indestrutível matéria última. Um sábio indígena, Chefe Seattle, ensinou (e segue a valer….):
4: DO EGO AO ECO – UM INÉDITO VIÁVEL? A tônica no individualismo, no consumismo, no imediatismo, hegemônicos na sociedade capitalista contemporânea, conduziu ao abismo, gerou o que Marcuse chamou de “sociedade obscena”:
“Esta sociedade é obscena em produzir e exibir indecorosamente uma abundância sufocante de mercadorias, ao mesmo tempo que priva largamente as suas vítimas da satisfação de necessidades vitais; obscena em atulhar a si própria de bens, enquanto as latas dos seus desperdícios envenenam o mundo dos explorados; obscena nas palavras e sorrisos dos seus políticos; obscena nas suas orações, na sua ignorância e na sabedoria dos intelectuais que tolera.”
MARCUSE, 1977. Um Ensaio Sobre a Libertação.
Como produzir massivamente uma transformação social que faça os idiotas (no sentido, idiotes), despolitizados e egocêntricos, abrirem-se à perspectiva do oikos, ou seja, a casa comum? Célio Turino, brincando com nossa tendência ao eurocentrismo, ao polvilhar de termos em grego e latim em nossos textos, diz que precisamos fazer à travessia do eu à oka – caras-pálidas, aprendam com a alteridade, mergulhem num devir-Guarani!
Esta “utopia” que consiste em des-converter em massa os humanos do culto-ao-eu, para despertar neles uma travessia rumo ao outrem, ao alter, ao eco, seria aquilo que Paulo Freire chamada de “inédito viável”? É possível de fato que mais gente desperte para a consciência da interdependência da vida, desperte para nossa pertença ontológica e ecológica, à nossa casa comum? Esta tarefa de “alfabetização ecológica”, esta virada ética rumo a temas de justiça socioambiental, não é sobretudo uma provedora de sentido e intencionalidade para as práticas da educação? Sobretudo da educação não só do futuro, mas da educação que desde já trabalha para que futuro vivível aja!
Neste contexto, os saberes decoloniais, as teorias queer, as intersecções das lutas antirascistas antipatriarcais e anticapitalistas, jogam um papel-chave. A travessia do ego ao eco é também a des-construção de si que consiste em despertar cada vez mais para a teia de interdependência que nos une a todos os nossos outros. Humanos ou não. Humanos e além. Todos juntos e misturados no seio pulsante de uma Natureza só. E o que quer que você faça à teia, você estará fazendo… a você.
5: O PREÇO DE TUDO, O VALOR DE NADA
A epidemia de cegueira, exposta na arte pelo romance de Saramago lindamente filmado por Fernando Meirelles, é hoje um problema concreto emergente e urgente de confrontar: os cegos, unidos, são capazes de genocídios. As núpcias sinistras da húbris com a avidya vem gerando aquela doença de que muitos padecemos: nesta sociedade, sabemos o preço de tudo e o valor de nada (parafraseando Oscar Wilde). O que significa esse não saber o valor de nada é esclarecido com rara maestria pelo livro de Raj Patel.
O Valor de Nada (The Value of Nothing), um livro que considero uma das obras-primas do pensamento crítico contemporâneo, centra seu foco numa leitura subversiva da história de cercamento do comum. Patel ensina que a propriedade privada tal como hoje a conhecemos tem uma história recalcada e censurada, o “roubo” dos espaços comuns que foi sendo perpetrado pelo processo histórico das enclosures. Neste jogo de conceitos entre o commons e os enclosures, Raj Patel expõe as entranhas, as vísceras do status quo. “Com o cercamento dos espaços comuns nasceram dois tipos novos de pagamento – aluguéis e salários.” (PATEL, p. 95) [6]
Se hoje estamos diante do capitalismo neoliberal globalizado aparecendo em todo o horrificante perfil da “Besta Tanatocrática”, vide o genocídio pandêmico perpetrado pelo Bolsonarismo no Brasil, é preciso enxergar no passado a raiz dos males presentes: a cerca e o arame farpado são, para Raj Patel, as correntes que nos prenderam à opressão. Não é por outro motivo que as correntes de cercamento do comum eram conhecidas como “vísceras do Diabo”. Ora, quando falamos no comum estamos também falando do espaço natural, daquilo que a artificialidade da tecnê humana “coloniza” para dominar: “Quando uma floresta nacional é vendida para a retirada de madeira, a biodiversidade é patenteada ou os direitos minerais são leiloados, ocorre o cercamento, a privatização daqueles recursos que permite a alguém lucrar à custa do público.” (op cit., pg 72) [7]
Apoiando-se nos estudos de Linebaugh e Silvia Federici, Patel faz os links entre as mulheres que foram mortas por acusação de feitiçaria (a “Caça às Bruxas”) e o processo histórico de cercamento do comum.
“A reprodução dos trabalhadores exige mais que a produção de bebês”, escreve Raj Patel, “trata-se de um longo processo de criação dos filhos, alimentação, vestimenta, moradia, educação, socialização e disciplina, sendo que estes custos representam, talvez, a fonte da mais fundamental desvalorização no mundo todo – o tratamento dado pelo mercado ao trabalho que as mulheres fazem dentro de casa”:
“Numa série recente de artigos meticulosos e provocativos, a historiadora e cientista social Silvia Federici sugeriu que a ressurgência da feitiçaria na África, numa época de apropriação e privatização de terras, não é acidental. A mesma coincidência pode ser observada nas grandes caças às bruxas que varreram a Europa,, do século XV ao XVII. O número de europeus que foram mortos em consequência das acusações de feitiçaria é impossível de determinar. Na Savoia, celeiro de caça às bruxas, os documentos do julgamento eram pendurados no pescoço das mulheres condenadas e queimados com elas… Estimativas conservadoras estabelecem o número de mortos, em toda a Europa, entre 40 e 60 mil. A maioria desses mortos era de mulheres. Federici alega que a perseguição a elas coincidiu com a mudança drástica de seu lugar na sociedade.
Ela mostra de que modo a política que estava por trás da caça às bruxas se ligava a uma nova visão de mundo, na qual as mulheres que insistissem em seu direito de estabelecer o valor sobre a terra e em sua liberdade para compartilhar não tinham lugar. As mulheres foram assassinadas como bruxas por causa de sua defesa da experiência em comunidade. Os cercamentos, naquela época, não eram apenas o fechamento de pedaços de terra – eles constituíram uma forma de eliminar processos políticos… Embora nem todas as caças às bruxas tenham sido respostas a alguma tentativa de proteger determinados direitos comuns, elas sempre foram sinais de lutas políticas mais profundas…
A labuta diária de criar os filhos, manter o lar e se engajar em trabalhos comunitários – as parcelas de trabalho não pago que as feministas denominaram tripla jornada – permanece sem preço em todo o mundo. Caso todos os trabalhos não pagos tivessem de ser remunerados, estimou-se em 1995 que a cifra seria de 16 trilhões de dólares. Desse montante, 11 trilhões de dólares constituíam o referente ao trabalho não pago das mulheres. Lá em 1995, era mais do que a metade da produção mundial total. E o pior é que esse erro de cálculo não é inocente. É justamente porque esse trabalho reprodutivo tem sido naturalizado como trabalho feminino, e porque o trabalho feminino não é pago, que pode existir tamanha economia remunerada.” (PATEL, p. 100, p. 71) [8]
Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro
Goiânia, Junho de 2020
Escrito ao som de Beethoven e Beatles.
REFERÊNCIAS
[1] SHAH, Sonia. Le Monde Diplomatique Brasil. 2020. Originalmente publicado em The Nation.
[2] Apresentação do livro de WALLACE, Rob, Editora Elefante.
[3] CALERI, Donato. Espinosa e o Zen Budismo. 7Letras, 2017.
[4] SERRES, Michel. Narrativas do Humanismo. Bertrand, p. 118.
[5] MARCUSE, Herbert. Um Ensaio Sobre a Libertação. Lisboa: Bertrand, 1977.
[6] [7] [8] PATEL, Raj. O Valor de Nada. Zahar, 2010.
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ANTIBIÓTICOS, MORCEGOS E A PRÓXIMA PANDEMIA – Por Soledad Barruti em Outras Palavras
GEORGE MONBIOT – The Guardian: https://www.theguardian.com/commentisfree/2019/mar/28/destruction-earth-crime-polly-higgins-ecocide-george-monbiot
Reflections of Native-American Indigenous Culture in Brazilian Indigenous Authors
Publicado em: 28/08/20
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia