Após a morte de Aldir Blanc (1946 – 2020), o cenário das artes no Brasil sofre uma nova punhalada em época pandêmica: fomos amputados da presença de Sérgio Ricardo (1932 – 2020), cantor-compositor e cineasta. Ele faleceu em 23 de julho de 2020, no Rio de Janeiro, aos 88 anos de idade. Havia sido infectado com o novo coronavírus e batalhou duramente contra a covid19 antes de sucumbir à insuficiência cardíaca. [1]
No jornal El País, aprecie: “Para resistir e deflagrar a mudança, ouça e veja Sérgio Ricardo – de violão em punho, artista desenhou um Brasil, rural e urbano, sertanista e marítimo, tradicional e inovador, oprimido e radicalmente experimental. Ouça playlist preparada pelo curador Diego Matos.”
Figura lendária nos Festivais da MPB dos anos 60, Sérgio Ricardo nos concedeu uma emblemática cena no festival da Record, em 1967, quando destruiu seu violão diante da platéia que o vaiava. Depois lançou os destroços do violão contra aqueles que não fizeram o silêncio que ele demandava para defender a canção “Beto Bom de Bola”. Esta atitude rebelde, à moda do The Who – a banda de rockers ingleses célebres por destruírem instrumentos em certos shows -, entrou para o rol das atitudes antológicas sobre a “Era dos Festivais” em plena ditadura.
Sérgio foi também o compositor de canções imortais que figuram no clássico da 7ª arte mundial, “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1963), de Glauber Rocha (eleito como um dos 10 melhores filmes brasileiros de todos os tempos pela Abbracine) [2]. Ouça todas as canções:
Nos anos 1960, em que estreitou parcerias com Glauber Rocha, compondo também o tema musical para “Terra em Transe” (1967), Sergio Ricardo também aventurou-se como cineasta e deixou marcada sua passagem pelo Cinema Novo: “O Menino da Calça Branca”, curta-metragem, de 1961; “Esse Mundo É Meu”, longa-metragem, de 1964; e “A Noite do Espantalho”, de 1974, estrelado por Alceu Valença, são suas principais obras cinematográficas.
Com marcante interpretação de Antonio Pitanga, “Esse Mundo É Meu” (click e leia a matéria completa d’A Casa de Vidro) rendeu a Sergio Ricardo elogios rasgados de ninguém menos que Glauber Rocha em pessoa: “Moderno, vivo, alegre, carregado de poesia e esperança, o filme demonstra mais uma vez que o Cinema Novo conquista dia a dia sua posição em nosso panorama cinematográfico”. [3]
Na Folha de S.Paulo, Luiz Fernando Vianna destaca que “S. Ricardo “ecoou ebulição social do Brasil da ditadura em músicas” e evoca episódios biográficos significativos:
“No final da década de 1970, Sérgio Ricardo escolheu morar num barraco no Vidigal. Desde então, nunca deixou de ter um endereço no morro da zona sul carioca. Seu ateliê de pintor foi montado num estreito apartamento de três andares. Da mesma janela ele podia ver o mar e a favela, como se um desembocasse na outra —retrato do Rio de Janeiro, do Brasil e de sua própria trajetória.
(…) Nascido em Marília, no interior de São Paulo, em 1932, numa família de descendentes de libaneses, ele começou a trabalhar em São Vicente, no litoral. Ainda com o nome de batismo, João Lutfi, foi discotecário na Rádio Cultura e pianista em boates da cidade praiana. Aprendera a tocar no conservatório de sua cidade natal.
Aos 20 anos, se mudou para o Rio para se dividir entre rádio e noite, atuando em boates próximas à orla. Nesse contexto cultural e geográfico, era praticamente inevitável que se engajasse na bossa nova. Foi ator de radionovelas e programas de TV na década de 1950. O diretor da Tupi, Teófilo de Barros, não considerava João Lutfi nome para um galã. Surgiu Sérgio Ricardo.” [4]
Recentemente, S. Ricardo “renasceu” para a nova geração de brasileiros através da trilha sonora do filme “Bacurau”. Com “Bichos da Noite” (de 1967), Sérgio Ricardo trouxe uma densidade lírica muito forte à obra impressionante de Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. [5]
Pedro Alexandre Sanches, em matéria para Farofafa, destacou que S. Ricardo “desfrutou de um pique discreto de revalorização no ano passado, quando sua música foi incluída na trilha sonora de Bacurau. Entoada pelo elenco em procissão pelas ruas do vilarejo de Bacurau, a densa canção do compositor paulista (de Marília), mais que mero fundo musical, faz-se uma das almas do filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. “São muitas horas da noite/ são horas do bacurau”, começa a canção de meia-noite composta para a peça teatral O Coronel de Macambira (1967) e provável origem para o batismo da cidade nordestina fictícia do filme de revolta e rebelião noturna de Mendonça e Dornelles. Bacurau fez lembrar uma das grandes qualidades de Sérgio Ricardo, o modo como ele entrelaçou harmoniosamente os ofícios da música e do cinema.” [6]
Por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro
REFERÊNCIAS E LIGAÇÕES PARA APROFUNDAR O SABER:
[1] Com informações da Wikipedia.
[2] Os 100 melhores filmes do cinema brasileiro em todos os tempos, da Abbracine. A trilha sonora de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” está disponível no Youtube: ouça na íntegra a trilha sonora original completa.
[3] ROCHA, Glauber. Citado a partir do Fórum Making Off.
[4] VIANNA, L. F. Em Folha de S. Paulo.
[5] A CASA DE VIDRO. Ouça e acompanhe a letra de “Bichos Na Noite”: https://acasadevidro.com/bacurau/
[6] SANCHES, Pedro Alexandre. A Hora do Bacurau. Em: Farofafá, Carta Capital.
Publicado em: 12/08/20
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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