“Se a paz não for para todos,
Ela não será para ninguém”
Estrela D’Alva
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ALERTA – O texto a seguir contêm spoilers.
Não seremos varridos do mapa com tanta facilidade como gostariam aqueles necropoderes que queriam nos dizimar como se não passássemos de pixels num videogame. Esta é uma das traduções possíveis das atitudes dos oprimidos-em-resistência que sangram, penam e se insurgem na obra de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Marco na história recente do cinema brasileiro, Bacurau ressoou mundo afora, inclusive consagrando-se na Europa em festivais (venceu o Prêmio do Júri em Cannes) e revistas (esteve na capa da Cahiers Du Cinéma como exemplo supremo do fazer fílmico no “Brasil de Bolsonaro”).
Como escreveu Ivana Bentes na Cult, Bacurau é a “síntese do Brasil brutal”. Um microcosmo fílmico onde se entrechocam ogros malévolos – semelhantes aos que hoje seguem a ideologia mortífera de Witzels, Moros e Bolsonaros – e os campesinos que se revoltam com uma radicalidade que se explica pois estão saturados de tantos lutos, tantas perdas, tantas injustiças, tanta dignidade arrombada. Película repleta de homenagens ao western (à maneira de Sergio Leone ou Sam Peckinpah, com um tempero Tarantinesco…), flertando também com o cinema de horror à la John Carpenter, Bacurau fez escola e conquistou até mesmo um surpreendente espaço no mainstream (foi exibido na Tela Quente da Rede Globo…).
Lançado em uma conjuntura sinistra, em que o país estava desgovernado pelo neofascismo bolsonarento, viu a luz do dia com a Amazônia em chamas e fez sua trajetória nas salas de exibição no período histórico em que 700.000 cidadãos perderam a vida em uma pandemia gerida de maneira criminosa pelo governo federal. Para além disso, Bacurau chegou enquanto rios de lama tóxica avançavam para varrer do mapa muitas vidas nas regiões de Mariana e Brumadinho (em Minas Gerais), de modo que este filme distópico fica parecendo como obra do mais puro realismo. Pois o Brasil é a distopia encarnada.
Nossas tragédias socioambientais e nossa violência epidêmica não estão desvinculadas jamais dos legados do imperialismo que nos colonizou. Bacurau, de modo esperto, tematiza este conflito: imperialismo vs comunidade local; em termos mais populares, aqui são os gringos sangue-nos-olhos contra a comuna aquilombada.
O filme transforma um museu histórico em um bunker de resistência onde os bacamartes dos oprimidos vomitarão pólvora em vendeta contra seus ofensores assassinos. Em sintonia com outra obra magistral da arte brasileira contemporânea que emergiu do Nordeste, o álbum Brutown do The Baggios (do Sergipe), Bacurau é um raio-X da brutalidade que em terra brasilis há séculos é normalizada a ponto de nos parecer banal.
Bacurau, por isso, me parece ser um filme capaz de evocar várias de nossas tragédias recentes: como o Rio Doce, lançado ao “coma” (como diz Ailton Krenak) pelo brutalismo de nosso extrativismo. O rio teve sua vida dizimada na outrora próspera comarca repleta de ouro das Minas Gerais, território que durante a colonização portuguesa foi espoliado – ou seja, onde o imperialismo estrangeiro afundou seus caninos para dali sugar riquezas fáceis, a custa de muito suor e sangue imposto às vítimas da espoliação e do escravismo.
De maneira muito significativa, o filme inicia com o caminhão pipa, cheio de água, encontrando obstáculos na estrada: caixões de madeira que acabam atropelados. Em breve, o mesmo caminhão pipa estará varado de balas. Estamos em plena descrição de uma distopia da água escassa em meio a estruturas antropocênicas como barragens e represas. A questão da água, ou melhor, do controle políticos dos fluxos de uma água escassa pelos tórridos trópicos do aquecimento global, faz deste Sertão pernambucano de Bacurau uma versão nossa de um Mad Max do Capitalismo Gore. O que era distopia tornou-se nossa realidade – melhor dizendo: nosso real é que está virando um splatter movie.
No cinema de Mendonça e Dornelles, ressurge um Nordeste insurgente e inconformista, que chega a evocar batalhas pretéritas e mártires de outras lutas: Bacurau pode remeter o espectador conhecedor da história de seu país a episódios como a guerra de Canudos, as histórias do cangaço e de seus heróis míticos como Lampião. Através de Bacurau, uma nova geração vê abrir-se diante dela o convite a redescobrir os filmes-manifesto do Cinema Novo, sobretudo de Glauber Rocha (Deus e o Diabo na Terra do Sol, Terra em Transe, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, O Leão de Sete Cabeças…). Em Bacurau, à maneira glauberiana, está uma alegoria de nossa desgraça coletiva e uma profecia impiedosa: do jeito que vamos, o sangue seguirá esguichando. E nem venham com band-aids pois a hemorragia é demasiado extrema.
Um filme como Bacurau emerge do pântano da Nação Pau-Brasil em 2019 todo coberto de sangue e com mensagens de resistência, pondo muitos dedos nas feridas abertas de nossos tempos pós-democráticos. Somos hoje um paradigma global da desgraceira ocasionada pelo neoliberalismo neofascista, submisso aos interesses imperiais. O governo de Temer, e depois o de Bolsonaro, aprofundaram a bárbarie entreguista e vende-pátria, lambendo as bolas de Trump enquanto passam empresas públicas para o capital privado estrangeiro. A “Doutrina Guedes” aplica-se sem pudor nem misericórdiacomo versão truculenta daquela Shock Doctrine tão bem esmiuçada e criticada por Naomi Klein.
O personagem Tony Jr., prefeito de Serra Verde, município a que Bacurau pertence, é a encarnação caricata do riquinho engomadinho, vestindo roupa de marca, exalando o fedor pútrido dos privilégios de classe. O prefeito só sabe ganhar eleição com demagogia barata para depois abandonar o povo que deveria representar na miséria, na sede e no desabrigo. Pior: o político deixa a população exposta à fúria genocida de tubarões imperialistas em transe psicótico. Em um episódio de alta carga irônica, ele entrega mantimentos (quase todos com data de validade vencida), remédios tarja preta (pílulas da submissão acéfala) e livros (que ele despeja, de dentro de um caminhão de lixo, no chão de terra do vilarejo com todo o desmazelo que o elefante do provérbio tem com as louças).
Já o personagem do ator alemão Udo Kier aproxima-se de uma caricatura da vilania extrema: um alemão que emigrou pros EUA, onde vive há mais de 40 anos, parece um psicopata de sadismo gratuito, que pensa estar numa caçada, atirando em seres humanos, de longe, como quem gozasse com seu status de sniper. Ele age como chefe de uma milícia doentia de tão militarista. A força da resistência inspirada por Bacurau está também no quanto muitos de nós, indignados diante de atitudes tão vis, nos identificamos com o ímpeto do povo de Bacurau em se unir para chutar a bunda destes gringos fascistas e armamentistas pra longe daqui: “Trigger-happy Yankees, go home!”
Udo Kier é de fato um ator assustador, e talvez não faça sentido exigir de um filme de ficção que contenha vilões com motivos críveis. Em uma cena bem interessante, o personagem fica todo ofendido quando um dos milicianos mercenários que o acompanha lhe chama de “nazista”. Ele não quer ser ofendido com clichês assim. No entanto, este psicopata impiedoso parece sim uma versão contemporânea de um nazi que tivesse sido mentalmente colonizado pela atual ideologia armamentista e Ku Klux Klanesca do Trumpismo.
Ele parece matar por esporte mais do que por interesse. Um serial killer que evoca o American Psycho do filme de Mary Harron ou <o personagem de Matt Dillon em A Casa Que Jack Construiu de Lars Von Trier>. Ironicamente, este assassino impiedoso expressa seu item único de “ética” pessoal assim: “eu não mato mulheres.”
Vilões que expressam toda sua falta de empatia, toda a extensão de sua desumanização, lançam a população de Bacurau na necessidade incontornável de uma guerrilha que, longe de ser revolucionária, é reativa, defensiva, desesperada. Talvez esteja aí uma das falhas principais do filme: na motivação das hienas assassinas que caem sobre Bacurau, não se descrevem com clareza os interesses materiais que pudessem estar por trás da intentona de rapina. Não se fala no desejo dos gringos de controlarem recursos naturais. Faria mais sentido se, ao invés de psychos sedentos por sangue como vampiros, estes vilões tivessem motivações econômicas explicitadas – por exemplo se estivessem buscando domínio de um território para desmatamento e posterior instalação de pastos cheios de gado exportável ou vastas lavouras de monocultura.
Bacurau mobiliza suas caricaturas de vilania de modo a lançar sua cidadezinha numa rota necessária para a revolta armada. Os gringos vão ter que perder as cabeças diante da vendeta destes sertanejos que encarnam os Condenados da Terra de Fanon. As cabeças cortadas que Lunga carregará para fora do Museu Histórico de Bacurau são também um signo do pagar com a mesma moeda ao opressor que historicamente também cortava cabeças de cangaceiros.
Os gringos, depois de terem abusado da húbris, caçando nordestinos como se fossem bichos num jogo de caçada hightech, depois de terem manejado drones e metralhadoras automáticas ao mesmo tempo demonstrando que deixaram a sensibilidade moral adormecida na Idade da Pedra Lascada, sentirão toda a fúria da vingança dos “oprimidos”.
Este filme se parece de fato com uma espécie de panfleto anti-imperialista para uso dos Lampiões e Marighellas do futuro próximo – tudo empacotado num western cheio de thrills. Tudo se passa no “oeste de Pernambuco”, por volta do ano 2022, e do western made in USA emprestam-se vários elementos de gênero. Mas já há muita gente percebendo que, em termos de ideologia, Bacurau é o avesso do western ocidental e busca sua força numa “narrativa anti-imperial” que chega a evocar cineastas como Glauber Rocha, Gillo Pontecorvo (sobretudo o clássico Quemada!) ou Werner Herzog.
“Exaltando a cultura do nordeste, Kleber e Dornelles evocam também os cangaceiros, principalmente na figura de Lunga (Silvero Pereira), um foragido da Justiça que vive com seus comparsas em uma represa desativada e que volta para ajudar seu povo. Nesse sentido, não é por acaso que Lunga, que atua como a liderança principal da resistência contra o ataque à cidade, é personagem transgênero.
É justamente na reação ao ataque estrangeiro que reside o cerne do filme. Cabe à própria comunidade, abandonada pelo poder público, instituir seu próprio modelo de democracia radical, em um quase flerte com o anarquismo. Cabe a Bacurau também resistir, preservar sua cultura e sua memória, tarefa árdua já conhecida pelas milhares de comunidades tradicionais pelo Brasil.” – NONADA
Há muito de alegoria neste filme que também é capaz evoca um magnum opus do cinema contemporâneo: a obra-prima Dogville de Lars Von Trier. Dogville e Bacurau são duas cidades tão pequeninas que estão vulneráveis a um tipo de ataque visando ao extermínio coletivo total. Um tipo de massacre que, apesar de não subir aos níveis de atrocidade de um genocídio ipsis literis, motivado por limpeza étnica e atingindo um território amplo, é manifestação dos mesmos males que conduzem às práticas genocidas.
A anti-heroína de Lars Von Trier, a Grace encarnada por Nicole Kidman, após passar toda a película sendo a forasteira inerme que os citadinos exploram de mil maneiras, quando re-ganha o seu poder de fogo, com a chegada à vila de seu powerpapai e seus milicianos, revela-se como uma genocida. Sua vendeta é o extermínio. Ela diz: “se há alguma cidade no mundo que não vai fazer falta, esta é ela”.
Grace ordena que Dogville e todos os seus habitantes humanos sejam varridos do mapa. Já Bacurau, nem no mapa hightech está: o Google Mapas e seus satélites não se dão ao trabalho de conceder informações sobre um “cu-de-mundo” tão irrelevante… Isolado, o povoado vive na vulnerabilidade extrema, com escasso acesso à água potável, fora do radar de quaisquer organismos de defesa dos direitos humanos, no abandono por parte do poder público no que diz respeito à educação, saneamento básico, acesso à água. O prefeito, manipulador ao extremo, só quer caçar votos – e abrir Bacurau para ser parque-de-diversões para gringos violentos. Muito das atitudes dos vilões imperiais no filme evocam também os visitantes do parque Westworld, na série da HBO.
Os gringos exterminadores talvez pensem assim: eis uma cidadezinha tão irrelevante que, se for aniquilada por inteiro, o mundo nem sentirá sua falta, a não ser por uns poucos gatos pingados que chorarão por seus mortos até que morram eles também. O niilismo dos vilões, capazes de matar crianças em uniforme de escola, revela um mundo onde qualquer senso de solidariedade se perdeu.
Dois emblemas da situação descrita pelo filme são: 1) o caminhão-pipa com água potável todo furado de balas, uma evocação de um cenário distópico à la Mad Max, e 2) o busão escolar sem pneus que enferruja inútil na comunidade onde também as escolas são alvo da chuva de balas dos invasores (o que evoca também a situação das escolas periféricas no Rio de Janeiro atual).
Ivana Bentes assinala:
“Antes de mais nada Bacurau trata de um rural contemporâneo. Um Brasil das cidadezinhas do interior completamente conectadas com o urbano. Atravessadas por redes de celular, tecnologias de vigilância e controle, telas de LED, drones, carros e motos possantes, distribuição de psicotrópicos e remédios que controlam o humor, uma cidade rústica, mas que poderia protagonizar um episódio de Black Mirror e que querem apagar do Google Mapa.” (Revista CULT)
Esta aí uma boa síntese: Black Mirror no Sertão, Bacurau é um retrato do Capitalismo Gore num Brasil desgovernado pelo fascismo Bolsonazista. É verdade que no Festival de Cannes, onde foi vencedor do Prêmio do Júri, a equipe de Bacurau não armou um escarcéu de protesto como havia feito a equipe de Aquarius, o filme anterior de Kleber Mendonça (também responsável por O Som ao Redor e por curtas-metragens como Recife Frio). Mas isto se explica pela própria mensagem do filme, que de certo modo dispensa protestos extra-filme, como relata a reportagem do UOL:
“O protesto, desta vez, está em meu filme.” É assim que Kleber Mendonça Filho explica a ausência de manifestação política no tapete vermelho de “Bacurau”, filme que ele e Juliano Dornelles apresentaram na noite de ontem em Cannes, na disputa pela Palma de Ouro. Diferentemente de quando esteve no evento em 2016, quando a equipe de “Aquarius” levou cartazes contra o impeachment de Dilma Rousseff, o red carpet de ontem não teve nenhum grito contra Jair Bolsonaro; foi marcado pela serenidade e alegria dos diretores e elenco do filme. Mendonça tem razão: “Bacurau”, mesmo que tenha sido concebido bem antes que Bolsonaro fosse sequer cotado para assumir a presidência do Brasil (o roteiro começou a ser pensado em 2010), fala do país de hoje como quase nenhum outro. E é um filme que prega a resistência a qualquer tipo de opressão, por meio de uma trama barroca, com um pé no fantástico e outro no realismo.
A trama se passa “daqui a alguns anos”, no sertão do oeste de Pernambuco. A cidadezinha (fictícia) de Bacurau sofre com sabotagens diversas: não recebe mais água, enquanto comida e medicamentos se tornam raridade. O sinal de celular está cortado, e a cidade literalmente sumiu de todos os mapas oficiais. Quando assassinatos começam a acontecer, a população local se une para resistir, mesmo que, para isso, precisem ser tão violentos e sanguinários como os grupos interessados em dizimar a cidadezinha.” (UOL)
É óbvio que o filme merece ser criticado a fundo pelo que expressa sobre violência e luta de classes pois pode ser lido de modo simplificador e reducionista. Até mesmo convida a isto com suas caricaturas da vilania. Digo isto pois neste faroeste no sertão os gringos invasores são caricatos – um pouco como psicopatas “desenhados” por quem não estudou de fato as psicopatologias da barbárie fascista. Seria preciso desenhar melhor, na narrativa, no roteiro, as determinações sociais desta vilania que o filme expõe de maneira tão hiperbólica, a ponto da reação extremada do corta-cabeças final nos sacie um senso bem distorcido de justiça: nos sentimos vingados por Lunga e sua trupe, chegamos a concordar que não, não foi exagero, pois diante de monstros humanos assim toda vingança sangrenta seria justificável. Aí está o cerne do problema.
Dirão alguns que no nosso real atual não faltam os vilões caricatos – como Witzel comemorando como se fosse um gol quando um sniper abateu um sequestrador de ônibus que carregava um arma de brinquedo. Estamos na era de um governador que manda a polícia “mirar na cabecinha e atirar” e de um presifake que trata o Torturador-em-Chefe Ustra como herói nacional. Parece que o real está invadido de fato por vilões caricaturais com poder demais.
No filme, lá estão eles: são psychos que matam crianças gratuitamente; que atiram em cães que repousam quietos na tranquilidade da tarde; que sentem tesão e adrenalina em experimentar os thrills de uma missão militar assassina… O filme fica mais interessante quando pontua, para além da monstruosidade dos vilões, os métodos do capitalismo shock-doctrinesco, aquele que apela para mercenários e os chama de private contractors. Tudo a ver com o capitalismo selvagem e miliciânico de Bolsonaro.
No geral, porém, a motivação por trás dos crimes dos vilões fica sem evocação crítica, de modo que os vilões acabam parecidos com caçadores, killing for sport. Ainda que, para fazer justiça ao roteiro, uma das principais cenas de Bacurau deixa as personalidades vilanesca se manifestarem de modo mais explícito e aprofundado.
Estou pensando naquela cena em que os dois brasileiros sulistas, que fingem estar turistando de motorbike e fazendo trilhas pelo sertão, são também friamente exterminados pelos gringos em uma tensa reunião” em que são questionados sobre terem “atirado em sua própria gente”.
Uma cena de bullying se manifesta ali cuja essência está no racismo dos “brancos” estrangeiros se manifestando contra aquilo que eles chamam de pseudo-brancos. O Sul do Brasil, descritos pelos sulistas como repletos de “colônias de alemães e portugueses”, vomitou no sertão de Bacurau aquele casal de sulistas que se acham os fodões diante dos campesinos pernambucanos.
Arrogantes com a crença em sua superioridade sobre os nordestinos, aprendem uma amarga lição antes de serem metralhados: para os racistas estrangeiros, eles não são “brancos puro sangue” porra nenhuma, não passam de “latinos”, de tipinhos meio “mexicanos”. São uma “sub-raça” a partir do viés racista dos que se proclamam a “raça superior” autêntica.
Pouco antes de morrer, tinham recebido também duras lições cantaroladas pelo “gaiato” cantador-violeiro, que os critica como deve ser: com arte e palavras farpadas que só ferem por dentro.
Quando a gangue chefiada pelo personagem de Udo Kier resolve assassinar os sulistas, Bacurau se alça, enquanto cinema, a uma aventura de interpretação sociológica mais ousada – que infelizmente o filme não recupera nem aprofunda, desperdiçando uma rara oportunidade de debater mais a fundo o problema do racismo no Brasil.
Fica sugerido que os crimes dos psychos gringos são motivados por ideologias racistas, por um “arianismo”-nazi requentado nos EUA de Trump. Mas o filme de Mendonça e Dornelles prefere desviar todo o foco para a guerrilha chefiada por Lunga, a “bicha Che Guevarista”, uma espécie de Lampião afeminado mas feroz, numa irrupção um pouco arbitrária das temáticas de gênero que o filme em nenhum momento avança.
Respondendo à violência brutal dos invasores com a violência reativa dos oprimidos sob risco de extermínio, os habitantes de Bacurau não fornecem solução alguma para os problemas estruturais do país. São uma irrupção de rebeldia que nasce das vísceras de uma condição de acuamento extremo. Há quem descreva este processo como “o Nordeste resistindo à barbárie fascista” e como “emblema de que chegou o tempo do revide“.
No filme, os seres humanos, forçados a tremerem de pavor diante do poderio de um genocídio racista, são obrigados a levar ao extremo o desencadeamento das violências destruidoras. Vingam-se em desforra lampianesca ao fim de um filme onde o prefeito demagogo e playboy é banido para o deserto. Já o gringo psicopata, que mata como se estivesse ao videogame, é enterrado vivo numa cova. Não sem antes prometer, em seu inglês com sotaque germânico, que a violência não vai parar: ele diz que ninguém ali imagina a quantidade de gente que eles já mataram. O ciclo interminável da violência fratricida irá prosseguir sem cessar.
A Nação Pau Brasil, onde Bolsonaros e Witzels se elegeram, seguirá com sangue esguichando e manchando de vermelho nossa bandeira e nosso solo. Na barbárie que atravessamos, vão faltar até caixões pra tantas vítimas da necropolítica. O que a pandemia de coronavírus em 2020 só reforça.
Neste filme repleto de mortos e caixões, de conflitos binários entre racistas e campesinos, entre gringos imperialistas e enraizados sertanejos, Lampião e seus cangaceiros são reanimados da tumba, seus feitos heróicos retrazidos à sala de jantar para serem apresentados à família tradicional brasileira. A horda de “cidadãos-de-bem” provavelmente vai preferir ficar bem longe do cinema, aderindo à estupidez do “não vi e não gostei”, e irá aplaudir quando Bolsonaro fizer movimentos no sentido de censurar Bacurau e Marighella. Afinal, o cidadão-de-bem quer ir ao cinema ver a cinebiografia de Edir Macedo, para depois lamber as botas sujas de sangue indígena e quilombola das botas de seu tirano-de-estimação…
A mensagem dos oprimidos de Bacurau, escrita na linguagem das cabeças cortadas, fala alto sobre a violência reativa dos que tiveram seu direito à vida destroçado. A guerrilha desesperada dos que estão na mira de uma necropolítica racista é um recado para a tirania pós-golpe no Brasil. Mas não fornece nenhuma réstia de luz que pudesse nos conceder a esperança de paz. Afinal de contas, como escreve belamente Estrela D’Alva, “se a paz não for para todos, ela não será para ninguém”.
Bacurau, síntese do Brasil brutal, só promete o sem-fim do sangue a esguichar. Parece sugerir que, do jeito que a coisa vai, sempre degringolando mais, a reação guerrilheira à barbárie fascista não é só um possível que seria muito improvável de se realizar, mas sim algo que vai se desenhando como o necessário, o inevitável, aquilo a que estamos, de novo, condenados.
De todo modo, o filme é um marco e deixa funda cicatriz na história do cinema brasileiro – este que ganhou novas páginas turbulentas e intensas nestes anos de 2019 e 2020, ano em que chegaram ao mundo, com estrondo estético e político tremendo, Bacurau e Marighella. Em tempos pós-democráticos como os nossos, em que a censura vai levantando de novo os seus cornos, alguns de nossos melhores artistas se mostram à altura das urgências da época.
Enquanto isso, o tirano neofascista que ocupa o Palácio do Planalto, após ter extinguido o MinC e submetido a Secretaria de Cultura ao Min. do Turismo, quer controlar com rédea ditatorial a Ancine, descontruir a Cinemateca, proibir filmes do teor de Bruna Surfistinha, boicotar o lançamento do filme de Wagner Moura sobre Marighella, enquanto vai dando aval pra uma milionária cinebiografia de pastor evangélico trambiqueiro…
Diante disso, muitos de nós, cinéfilos, bradamos: queremos filmes libertários como foram os de Glauber Rocha outrora, como são os de Cláudio Assis hoje em dia, como é Bacurau! Pois o cinema que se conforma é um cinema moribundo e que apodrece em vida. Queremos de novo um cinema que vá pro confronto contra os tiranos e que se saiba instrumento coletivo de luta contra todas as opressões. Luta que envolve, na experiência coletiva compartilhada de uma sala de cinema, a necessidade incontornável de sermos afetados por imagens organizadas e narrativas comoventes capazes de explicar, esclarecer e refletir sobre nossa realidade fraturada e nossa “democracia blindada” (Felipe Demier)
O cinema luta ao nosso lado quando é trampolim pr’um salto de consciência rumo a outras percepções do nosso possível, outras compreensões da nossa desgraça. Queremos de novo um cinema que não tema confrontar-se com as múltiplas fraturas que expõe os ossos quebrados da Nação Pau-Brasil. O que queremos de fato é que os filmes voltem a ser perigosos. Um cinema que nos abra vias libertárias que prefiguram um melhor mundo possível, um “inédito viável”, como dizia Paulo Freire. Com isso em mente, penetremos na escuridão do cinema, boquiabertos diante da telona, rumo a nossos encontros com Bacurau, na certeza de que a tirania jamais varrerá do mapa a resistência, de que toda opressão encontra a maré montante de uma revolução que a confronta, de que a vida, bem supremo, não é ameaçada e destruída sem que os viventes se insurjam contra os necropoderes.
Eduardo Carli – A Casa de Vidro
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Espreita de alto jirau
Não vê cotia nem paca
Só vê jaguara e babau
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Todo esse mundo tão mau
Picando a sombre da noite
Pinica o pinica-pau
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Publicado em: 30/07/20
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia
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