Não são poucos os brasileiros que se sentem na atualidade como que confinados dentro de um irrespirável pesadelo. Perplexos diante de uma barbárie que marcha.
Os livros de Bernardo Kucinski tem sido um dos mais impressionantes repositórios destes afetos consternados, destas preocupações angustiantes.
Com lastro nos fatos, mas dando asas à sua imaginação, os livros interpelam a consciência daqueles que não tiveram seu senso crítico totalmente triturado e tornado inútil. Os livros falam, às vezes aos gritos, com aqueles que não se prestam a ser gado de manobra ou cobaia de lavagem cerebral. Aqueles que não descolaram da realidade e ainda enxergam com olhos e mentes sãos. Aqueles que sentem e sabem: o bolsonarismo nos tranca numa distopia fodida, joga a chave fora e aposta, como ensina o filósofo político Marcos Nobre, no caos como método.
Revelando mais faces da maestria literária de um dos maiores intelectuais do país, os livros mais recentes de Kucinski lidam com uma distopia entre nós encarnada no bolsonarismo, mas exposta em tintas hiperbólicas, Kubrickianas, e que também honram Orwell, Zamiatín e Kafka.
Jornalista com 5 décadas de experiência, ex-assessor de comunicação de Lula em seus primeiros anos na presidência, Bernardo transformou-se em um dos mais celebrados escritores do Brasil após ultrapassar o limiar dos 70 anos de idade. Foi laureado com o Jabuti por K – Relato de Uma Busca, em que honra sua irmã Ana Rosa Kucinski, professora da USP assassinada pela Ditadura que Bolsonaro e os seus tanto louvam.
Mesmo antes da presidência de Jair iniciar em 2019, a publicação do romance distópico A Nova Ordem veio para “escancarar o Brasil dos canalhas” (Rede Brasil Atual). Bem definido como “caricatura do Brasil sequestrado pelo agronegócio, pelos militares e por uma fatia da sociedade para quem projeto nacional e povo são desnecessários”, A Nova Ordem mereceu uma continuação em que Kucinski aborda o tema da pandemia.
Escrito em 2020, publicado em 2022, O Colapso da Nova Ordem mostra a impiedosa lucidez e tenaz clarividência do autor em seu labor de imaginação satírica empiricamente embasada. Peço perdão por estes palavrões concatenados em linguajar pedante e cheio de “academiquês” – trocando em miúdos, o que Bernardo fez foi tirar sarro de um regime que não difere tanto assim deste em que ainda estamos imersos, apesar da vitória de Lula nas urnas em 30 de Outubro de 22.
O que estou tentando expressar é que Kucinski sempre escreveu baseado em fatos reais, ou seja, sua ficção sempre esteve sendo informada por uma confluência de historiografia e jornalismo. Agora, quando ele se aventura na senda da ficção especulativa, quando adentra um campo inédito de criação e pensamento, estes dois livros que nasceram são ainda profundamente tributários do real, mas que neles é distorcido por uma lente caricatural, satírica.
Na live do Conde (assista acima) o que mais me surpreendeu na fala de Kucinski foi o adjetivo que ele usou para descrever O Colapso da Nova Ordem – “engraçado”. Não se trata de nenhuma comédia, mas algo do espírito de Swift ou Ambrose Peirce marca a pena de Bernardo. A leitura do livro dificilmente arrancará risadas de 99% dos leitores – pois a prosa é um tanto soturna e os milhões de cadáveres que este livro abriga não ajuda em nada a tornar sua ambiência leve e descontraída.
Mas Kucinski está sim em modo satírico, fazendo troça, na verdade promovendo um carnaval de ridicularização dos milicos. Há algo nestes livros do clima cômico que Kubrick instaurou em Dr Fantástico, quando os senhores da guerra, a quem o apocalipse atômico está na ponta dos dedos, discutem num carrossel de atrocidades e absurdismos. Cenas que por sua vez evocam a famosa Reunião Ministerial do Bolsonarismo que vazou, revelando-nos os planos para “passar a boiada” enquanto o vírus comia solto…
Kucinski opera a partir da exploração imaginativa de uma tese sobre a origem da pandemia de 2019-2023, veiculada por Jeffrey Sachs sobre a covid-19 e que supõe que tenha sido criada em laboratório – mais especificamente em Fort Detrick/USA. Não é intenção deste artigo investigar a justeza, grau de probabilidade da tese de um coronavírus disseminado deliberadamente – mas sugiro os seguintes artigos, de leitura altamente recomendada como prelúdio à leitura do livro Kucinskiano de 2022.
Atualmente, são ossos de meu ofício acadêmico no Doutorado em Filosofia da UFG pesquisar sobre o tema das utopias e distopias na arte contemporânea. Neste contexto, a dupla de novelas de Kucinski destacam-se pelo horrorismo impressionante de que estão impregnados – remetendo aqui ao conceito de Adriana Cavarero. Esta filósofa italiana tenta compreender fenômenos intrigantes da atualidade – como as pessoas-bomba que se suicidam em atentados teroristas – mobilizando uma distinção entre horror e terror. Propõe o neologismo horrorismo para explicar situações onde a morte coletiva torna-se banalidade e os cadáveres se amontoam e são postos em covas coletivas ou transformados em fumaça e cinzas em vastos crematórios…
Qual a importância da leitura de romances horríficos como os de Kucinski? Aqui gostaria de avançar uma reflexão sobre as narrativas distópicas, inclusive aquele subgênero ultrapessimista que não pinta final feliz redentor num consolador happy end. Sabem qual o impacto formativo de uma narrativa de worst case scenario? Bem, imaginar as tendências do presente em seu porvir, serve de alerta: pintar o “pior cenário possível” tem seu valor na medida em que pode ajudar-nos a compreender uma situação a evitar com prudência.
Como argumentou o autor: “As distopias, em um certo sentido, são alegorias, você sabe que tudo aquilo é irreal mas é parecido com algo que é real , acaba dando mais relevo a coisas do real que a pessoa não estava percebendo”. (KUCINSKI, entrevista a Brasil 247)
O que impressiona nos horrores descritos satiricamente por Kucinski em suas duas distopias gêmeas é a sugestão de que o bolsonarismo que hoje nos coloniza poderia ter efeitos ainda mais mortíferos do que aquele que hoje manifesta. A ideia de que o banho de sangue que já conhecemos é pouca porcaria perto da perversidade do que virá. Quem viver, verá. Mas vejamos mais a fundo, mergulhando nos dialógos Kuckinskianos, para compreender como se expressa aí esta “distopia tamanho Brasil”:
– A religião pode ajudar, diz o general Feitosa, com essa mortandade toda os templos estão repletos; a ansiedade é muita, penso que os pastores podem exortar os crentes a aceitarem a pandemia como um desígnio de Deus que não deve ser afrontado com nenhuma medicina, devem se conformar.
– Conformados já estão, lembra Torquato, graças ao nosso genial chip, mas os bispos poderiam incutir sentimentos de culpa, coisa que os católicos exploram tão bem; pregar que se trata de expiação por pecados cometidos, nada melhor do que a culpa para induzir à aceitação…
KUCINSKI (2022, pg. 78)
A sátira do autor incide sobre a aliança entre Estado e “clero”. É um Estado totalitário-teocrático e o autor demole criticamente com seu humor mordaz os milicos que põe em cena. O clima sci-fi é fornecido pelos implantes de chips nos cérebros, que os personagens do diálogo que acabamos de citar – Feitosa e Torquato – mencionam. Trata-se do Chip de Customização de Humanos Conformados, através do qual A Nova Ordem
“controlava de modo absoluto as mentes de seus habitantes adultos. Graças à invenção de um nanoprocessador implantado no cerebelo de seus habitantes ao atingirem a maioridade, eles se tornavam dóceis e obedientes. (…) O nanoprocessador era programado com algoritmos que suprimiam paixões e bloqueavam funções críticas e analíticas da mente humana.” (pg. 18)
É óbvio que o colapso da Nova Ordem virá apenas através de uma consequência não prevista da pandemia, um “despertar coletivo” conectado a uma falha em massa nos chips implantados. Kucinski encenará, no fim, protestos, marchas, insurreições, uma revolução em incandescência. Esta nasce a partir dos órfãos da pandemia, dos sequelados do vírus, de todos aqueles que atravessaram a conjuntura virótica e despertaram para a criminalidade inaceitável da “Ordem” que preferimos chamar de Desgoverno. Que produziu, no real e na ficção, um genocídio – só que, na ficção, ela é amplificada para incluir cadáveres aos milhões, enquanto o bolsonarismo – por enquanto… – não colheu ainda seu primeiro milhão de mortos (será?…).
Pousando em 2022 como um OVNI-literário, com “seu humor corrosivo que dialoga furiosamente com o que vivemos neste momento”, como disse Gustavo Conde, estas Kucinskianas Crônicas do Fim do Mundo, assustam também por outras vias. O novo livro nos mergulha na crise climática do Antropoceno e nos põe diante do absurdo Beckettiano. Ao invés de cientistas, biólogos, climatologistas, a crise que pode levar a espécie humana à extinção está nas mãos e sob o comando de milicos que assumem como tarefa a morte-em-massa em prol do controle de excedente populacional. Matar geral é a Solução Final que propõe para o “problema populacional”.
Encontram no vírus um aliado para criar um inimigo imaginário, no caso, a China. O vírus é apelidado de Peste Comunista. Os chineses são defenestrados pela Nova Ordem. Mata-se industrialmente, por decisão tomada nos quartéis e palácios, usando o vírus para matar metade da população brasileira. Com o beneplácito de autoridades religiosas, o chefe dA Nova Ordem, General Santa Cruz, diz aos milicos que com ele conversam nos sigilosos encontros de cúpula:
– Em algum momento vai aparecer um fármaco ou coquetel de fármacos contra a moléstia, assim como foi com a AIDS, não foi? Pois bem, o que fazer para afastar o povo do medicamento? Espalhamos o boato de que o fármaco torna os homens impotentes e as mulheres estéreis, ou algo assim; e ao mesmo tempo alimentamos a crença do povão em mezinhas e ervas milagrosas.
Não tem nada de exagero. É uma guerra e, numa guerra, o único pecado é a derrota. É assim que funciona: mentir, sempre mentimos; matar, sempre matamos, é o nosso ofício. Mas matar simulando que estamos salvando vidas é outra coisa, para simular é preciso muita esperteza. E contar com a cumplicidade do próprio inimigo, no caso, o povo.
KUCINSKI: 2022, pg. 55
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Publicado em: 31/10/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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