“O auto-engano na vida prática pode ser trágico. O fervor religioso, por exemplo, com frequência mobiliza aquilo que um homem tem de melhor e de mais elevado para colocá-lo a serviço do que há de pior e mais abominável. Da mesma fonte sincera de onde brota o sacrifício e a abnegação genuína pelo próximo parece nascer, também, a espantosa e atroz cegueira que santifica, aos olhos do crente, a brutal perseguição e extermínio do semelhante. Combinação análoga de grandeza e perversidade parece acompanhar, mutatis mutandis, os casos mais aberrantes de entusiasmo ideológico e fanatismo político. O grau de cegueira, nesses caos, é função direta da força do acreditar.
Um padrão de conduta recorrente nos tempos da Lisboa inquisitorial revela até que ponto pode chega o auto-engano do fanatismo religioso. As sentenças dos autos-de-fé continham uma cláusula pela qual os hereges que fizessem uma retratação convincente recebiam o “privilégio” de serem enforcados antes de serem lançados às chamas. Para o público devoto, contudo, tamanha indulgência era descabida. Tomados de uma fúria divina e de um sentido irreparável de justiça, os fiéis frequentemente atropelavam a decisão das autoridades, sequestravam o herege e garantiam a todos o espetáculo público e incomparável da queima do penitente em carne viva.
Haverá exemplo mais patético que este de como o prazer diabólico e inconfessável com o sofrimento alheio pode se fazer passar, na subjetividade do crente, pela mais piedosa e imaculada boa-fé? Não deixa de ser sombriamente irônico e perturbador que Himmler, o dirigente nazista responsável pela execução de ações criminosas em larga escala, como o programa de extermínio na Polônia, fosse conhecido por seus pares na alta cúpula nazista como “nosso Inácio de Loyola”.
O que dizer diante da monstruosidade insana de tais atrocidades? O melhor, talvez, seja lembrar sempre que a distância que nos separa da repetição de situações extremas de perseguição, opressão e crueldade pode ser menor do que gostaríamos de imaginar. Há um fio secreto ligando o auto-engano trágico de coletividades tomadas por imagens delirantes de justiça, regeneração e superioridade, de um lado, e o auto-engano pedestre e prosaico do cotidiano individual, de outro. Ambos parecem ter muito a ver com as inumeráveis parcialidades que afetam, em maior ou menor grau, as percepções que temos de nós mesmos e os juízos que fazemos sobre nossas motivações. O auto-engano coletivo em grande escala é a resultante trágica e grotesca de uma multidão de auto-enganos sincronizados entre si no plano individual.” (Pg. 109-110)
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“O que de fato surpreende na convivência humana é a frequência das situações em que o mal não só não é o fim diretamente perseguido, como também não aparece para o indivíduo que o perpetra como o mal que é. É o que constatamos, para ficar no terreno da história, nas espantosas atrocidades cometidas em nome da fé política, ideológica ou religiosa. “Filipe II e Isabel, a Católica”, já se disse com razão, “infligiram mais sofrimento obedecendo às suas consciências do que Nero e Domiciano obedecendo às suas taras.” (*) A boa consciência sincera de alguns dos maiores opressores e terroristas na história humana é o mais enigmático e espantoso capítulo nos anais do auto-engano. Se o mal não viesse tantas vezes íntima e estranhamente ligado à visão do bem, parece razoável supor, a trama de nossas vidas em sociedade seria menos ambígua e perigosa, mas perderia também naquilo que a faz rica em mistério…” (p. 176)
(*) Isabel de Castela e seu marido, Fernando de Aragão, foram os principais arquitetos do estabelecimento da Inquisição espanhola no final do século XV e da política de perseguição racial – “limpieza de sangre” – que levou à expulsão de cerca de 165 mil judeus e 275 mil mouriscos da península Ibérica. O rei Filipe II, monarca absoluto do vasto e poderoso império espanhol na segunda metade do século XVI, notabilizou-se pela frieza e determinação implacáveis com que perseguiu seus objetivos, descartou aliados e eliminou inimigos – inclusive por meio de falsas acusações de heresia e cruel perseguição de não-católicos -, sempre justificando seus crimes e o irrestrito apoio à máquina burocrática da Inquisição com elaborados pretextos teológicos e razões de Estado do Reino de Deus. Marcado por um zelo irretocável e um temperamento ascético, Felipe II costumava passar horas a fio ajoelhado diante de santos e relíquias católicas.
EDUARDO GIANNETTI (1957- )
Auto-Engano
(Ed. Cia das Letras, 1997.)
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Publicado em: 19/09/13
De autoria: casadevidro247
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marielfernandes
Comentou em 21/09/13