POR QUÊ?
Por Marta Vitória de Alencar
Por volta dos 4 anos de idade, a criança começa a bombardear os pais com perguntas sobre as coisas. Elas querem saber o que é, como é e por que é. Apropriam-se do entorno e são tomadas de admiração que as move no sentido de questionar.
Perguntam por que chove, o que é o Sol, o que é a Lua, por que há dia e há noite, como ela e o irmãozinho nasceram e por que os bichinhos morrem.
Fazem perguntas que a humanidade um dia já fez e num primeiro momento foram respondidas simbólica e magicamente, à moda da história da cegonha.
A criança aceita essas respostas durante certo tempo. Mas, uma vez que sua razão se desenvolve, ela encontra uma maneira de levar adiante seus questionamentos e volta a perguntar: por quê?
Persiste nela uma inquietude – nem tudo faz sentido, ela percebe que há erros de conexão nas explicações e suas perguntas permanecem à espera de uma resposta satisfatória. Esse tipo de postura diante do que nos é dado é o que chamamos de atitude filosófica: ser tomado pelo pasmo, pelo sentimento de espanto e a partir dele indagar.
E chegamos ao xis da questão: por que, quando crescemos, deixamos de indagar? Por que nos acomodamos às explicações que nos são oferecidas e nos incomodamos com quem insiste em nos tirar dessa situação? Temos aqui uma questão filosófica.
Nossa vida está repleta de filosofia, colocando-nos questões existenciais, íntimas e outras que se referem à nossa relação com os outros – meu amigo, meu inimigo, a natureza, o universo e até mesmo deus.
PENSAMENTO E MÉTODO
De tanto se perguntar, o homem inventou a filosofia, tomou consciência de si e de sua capacidade de refletir sobre tudo que o cerca. O passo seguinte foi questionar sobre o próprio pensamento e sobre a melhor forma de realizar tal questionamento. Assim, a filosofia ganhou corpo, organizou-se, sistematizou-se, desenvolveu técnicas discursivas, métodos de investigação, tornou-se especulação, análise, reflexão e crítica.
Abriu as portas para o surgimento de todas as ciências e permanece junto a elas como um espírito que anima um corpo. Ela é aquela pergunta que toda criança guarda consigo à espera de uma resposta. É a recusa a uma adesão imediata, é o adiamento de uma resposta para dar lugar ao lançamento de um olhar para além da aparência. Assim, a filosofia são aquelas perguntas provocantes que nos permitem olhar para o mesmo sob outra perspectiva, nos chacoalhando e dizendo: abra os olhos.
A diferença das respostas filosóficas é que, diante de uma dada situação, a filosofia não produzirá uma resposta instantânea, e sim um novo problema. Ao frenesi pós-moderno, quase que agonizante, a filosofia opõe-se com seu paciente questionar. Isso não quer dizer que ela seja puramente contemplativa, mas a atenta observação é a maneira pela qual ela nos permite descobrir um modo particular de entrada no mundo.
Para que a utilidade da filosofia seja percebida, precisamos entender que atribuímos significados a tudo e que conferimos valor a cada uma de nossas experiências. A filosofia é uma das formas pelas quais os homens compreendem de que maneira dão significado às coisas, como articulam e constroem uma realidade, é um modo de se compreender e se colocar no mundo. E sua marca é a maneira crítica como faz isso. Constitui-se como um instrumento de orientação, como uma bússola que indica o lugar aonde se quer chegar.
PAPEL DE FILÓSOFO
Ao longo da história da humanidade, alguns homens têm percebido, com base em suas experiências pessoais e históricas e das contínuas transformações sociais, que não há um ponto final absoluto, uma verdade ou conhecimento absoluto, e que a filosofia é uma forma de pensamento que põe o homem no mundo e o ajuda a se desvendar. Esses homens são os filósofos. Filosofar é estar no mundo, é ser propriamente humano – um ser ativo, pensante, autor consciente das próprias ações e capaz de transformar a própria realidade.
Hoje supervalorizamos a tecnologia e seus produtos. Com os critérios que regem esse universo é que temos definido a utilidade das coisas. Mas essa valoração se dá sem nos questionarmos em que sentido concentramos nossos esforços e qual é a posição do homem diante da técnica. Acreditamos nos benefícios do progresso e, orientando-nos por ele, agimos sem avaliar quem realmente está sendo beneficiado, se existem prejuízos e de que ordem. Alimentamos a ideia de “quanto mais, melhor” e, à medida que esse quanto aumenta, perdemos nossa capacidade de articular a torrente de informações e utensílios que se renovam a cada instante, abandonando aquela nossa genuína pergunta: por quê?
Fica para você pensar se essas questões realmente existem ou se não passam de um falso problema, pois como declarou Kant “não se ensina filosofia, mas ensina-se a filosofar”. E é pelo próprio filosofa que gradativamente vamos compreendendo o que é a filosofia e onde mora sua utilidade. Para os que dizem que a filosofia “é uma ciência com a qual ou sem a qual o mundo permanece tal e qual”, podemos responder que as ciências pragmáticas são o espelho d’água, o senso comum, os respingos, e que nas profundezas das águas movimenta-se a mãe de todas as ciências, a filosofia – aquela que especula e busca os fundamentos para o conhecimento.
Já dizia Shakespeare: “Existe mais entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia.” Assim, a questão é saber quem somos, onde estamos e o que fazemos com isso. Caso contrário, continuaremos a ter vertigem.
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Este artigo foi publicado na revista Discutindo Filosofia, número 2, pg. 39-40. Marta Vitória Alencar é professora de filosofia da Escola de Aplicação da Faculdade de Educação da USP.
Publicado em: 10/05/15
De autoria: casadevidro247
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