O bolsonarismo, esta psicose de massas que se disseminou feito uma epidemia viral, é um sintoma mórbido do capitalismo tardio. Nele, as subjetividades estão sendo condicionadas a um regime de neoliberalismo selvagem que corrói o senso de solidariedade, fazendo cada um sentir-se numa guerra de todos contra todos. Neste contexto, ser “viril”, impiedoso, trollador, desprezador de discursinhos de direitos humanos e justiça social, aparece a muitos como aquilo que destaca o vencedor dos perdedores.
Vivemos globalmente uma onda de “des-democratização”, como diz Wendy Brown, onde certas figuras autoritárias e empedernidas fazem ostentação de posturas anti-democráticas e conquistam a adesão de massas liberticidas que anseiam pela servidão e que gozam com sua identificação com o opressor. O gozo sádico de oprimir passa a ser o sonho de consumo do Bolsominion.
Neste contexto, esta figura truculenta, desprovida de quaisquer virtudes éticas, nanica intelectualmente, inculta e preconceituosa, ascendeu rumo ao empoderamento num cargo para o qual nunca esteve à altura. Uma figura absolutamente inapta para a administração pública, sem o mínimo espírito republicano, como é o caso do Sr. Jair Genocida Bolsonaro, logrou virar ídolo de uma massa que ele sempre tratou como gado.
Sintoma disto é também o fato de que os operadores do genocídio pandêmico utilizaram como justificativa para a carnificina que matou mais de 700.000 pessoas no Brasil o conceito de “imunidade de rebanho”. Bolsonaro e seus cúmplices trataram os seres humanos brasileiros como carne a ser sacrificada no matadouro da pandemia: deu passe livre ao vírus enquanto fazia propaganda de cloroquina, sustentando que era melhor contaminar geral.
Nas eleições de 2022, com os mais de 51 milhões de votos que a figura conquistou no 1º turno, algo de realmente tenebroso foi revelado. No funeral de nossas ingenuidades há muitos cadáveres que agora nos cabe sepultar: chegamos a acreditar, muitos de nós, que a pandemia nos ensinaria algo de precioso através da “cruel pedagogia do vírus”, como disse Boaventura Souza Santos. Mas, nas urnas, vimos que não: o bolsonarismo mostrou horripilante resiliência apesar de seus delitos. O médico Mandetta não foi eleito, o general Eduardo “Nem Sei o Que É SUS” Pazuello sim – eis um emblema entre muitos.
A ingenuidade de achar que o sofrimento da pandemia ensinaria toda nossa população a nunca mais se deixar engambelar por líderes assassinos colapsou: 51 milhões de brasileiros foram incapazes de realizar o devido juízo de responsabilização de seu presidente, seguido pela vontade de impor a ele sanção penal a altura de seus crimes contra a saúde coletiva – que foram crimes contra a humanidade, já que o coronavírus era uma ameaça global a todos os humanos e não apenas aos humanos do Brasil.
A mais chocante das notícias do 1º turno, divulgada pelo portal Metrópoles, foi a de que Bolsonaro venceu em 87 das 100 cidades onde mais morreu gente de covid. É assombroso que uma população submetida a um experimento tão sinistro de necropolítica não se levante em rebeldia contra os crimes de um governante tão péssimo. Nestas 87 cidades devastadas pela mortandade em massa propiciada pela negligência criminosa e pela desinformação deliberada do Capitão Cloroquina e seus cúmplices, a maioria do eleitorado permaneceu “fechadão” com Bozo e não o execrou como o malefício encarnado que foi e que é.
É “psicose de massas” o termo que ocorre para descrever tal fenômeno dificilmente compreensível. Em uma fala célebre, Bolsonaro ofende os eleitores do Brasil dizendo que só servem para uma coisa: para serem manipulados como gado e depois ganharem um diploma de burro para guardarem no bolso. Vale lembrar aqui de Tom Zé e sua provocação: “a burrice está na mesa”. Fartamente servida, a burrice se manifesta em larga medida neste eleitorado imenso que, em número superior a 50 milhões de pessoas, demonstra seu apego a um pseudo-messias cuja especialidade é matar.
Penso que CREDULIDADE é o grande conceito ausente do debate político atual. A disposição para crer, ou mais simplesmente a “fé”, costuma sair limpinha de todos os esgotos que atravessa.
Muitas pessoas que se dizem sentinelas do senso crítico não tem coragem de questionar a fé e deixam-na passar por coisa boníssima, de inquestionáveis benefícios para todes. Mas subjaz à credulidade uma postura subjetiva de demissão da razão, de abandono do senso crítico, de submissão à autoridade entronada como superior – aquele que deve ser seguido. Esta alienação-em-massa, que certamente se deve ao pouco avanço de uma educação cívica e com formação política no país, tem tudo a ver com esta predisposição à crença cega que o conceito de credulidade carrega.
Ser crédulo é quase sempre ser ingênuo, e o crédulo-ingênuo é quase sempre tratado como gado ou marionete pelos tiranos da ocasião. Elogiar cegamente a credulidade, fazer da fé uma grande virtude, corrói a possibilidade do pensamento crítico – inclusive este em sua crucial manifestação voltada à desconstrução e combate contra os que se utilizam da fé das pessoas para manobrá-las com focinheira invisível.
Arte do ilustrador Rodrigo Yokota: https://www.instagram.com/rodrigo_yokota
Publicado em: 19/10/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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