A quem soube aprender, na história da cultura brasileira, sobre as confluências férteis entre a Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire e o Teatro do Oprimido de Augusto Boal, não irá soar estranha a empreitada a que nos propomos neste livro-em-gestação: pensar o que seria um Cinema do Oprimido, comprometido com a libertação humana, pensado a partir do Brasil do século 21, numa perspectiva interdisciplinar. Deste modo, faremos confluir saberes e análises sobretudo das áreas da Filosofia, da Psicologia e da Sociologia, permitindo que nossos pensamentos críticos sejam colocados em movimento sob o influxo de obras-primas desconcertantes lançadas pelos cineastas a partir do ano 2000 – a exemplo de Adeus, Lênin! (2003), de Wolfgang Becker.
Adeus, Lênin! “evoca com humor nostálgico o desaparecimento do socialismo real” e é uma das obras sob o escrutínio crítico do pensador italiano Enzo Traverso em magistral livro. Nele, Traverso se mostra dedicado a “escrutinar o eclipse da esperança socialista e o legado das revoluções vencidas do século passado.” (TRAVERSO: Melancolia de Esquerda – Marxismo, História e Memória, Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2018, p. 191) – Saiba mais: Artigo sobre Adeus, Lênin
Um Cinema do Oprimido no século 21 não poderia ignorar as grandes proezas realizadas por precursores importantes, como Gillo Pontecorvo, compatriota de Traverso, que realizou algumas das maiores obras-primas na história da 7ª arte vista a partir do viés dos oprimidos: Queimada! (1959), A Batalha de Argel (1966) e Kapo: Uma História do Holocausto (1959).
“Lançado quando a onda rebelde dos anos 1960 atingia seu pico, Queimada! parece ser, em retrospectiva, um sismógrafo dessa década que viria a ser tão turbulenta. Foi rodado na Colômbia, 10 anos após a Revolução Cubana e 2 anos depois da morte de Che Guevara na Bolívia. Pontecorvo já havia atingido fama internacional graças a A Batalha de Argel, premiado com o Leão de Ouro no Festival de Veneza de 1966. E esse novo filme claramente evocava a Guerra do Vietnã, que acabara de passar pela vitoriosa Ofensiva do Tet (1968) das forças de guerrilha e também pelos protestos em massa do movimento americano antiguerra.
Na Europa, a França fora desestabilizada pela revolta de Maio de 68, a Irlanda do Norte parecia estar explodindo e a Itália estava prestes a viver sua maior onda de greves pós-2ª Guerra Mundial. Nessas circunstâncias, a representação de uma derrota revolucionária só poderia ser um lembrete da longa, épica e difícil caminhada até a vitória inevitável. Desde suas primeiras imagens, acompanhadas da música de Ennio Morricone, Queimada! se desenrola como uma incitação à luta.
Algumas vezes criticado por seu didatismo, o filme ilustra a história do colonialismo e retrata o processo que transforma um povo oprimido em sujeito histórico. A história de uma ilha caribenha fictícia de nome Queimada, cuja população autóctone fora dizimada pelos colonizadores e em sua maioria substituída por escravos africanos, condensa muitos eventos passados e contemporâneos. Os protagonistas do filme, William Walker (Marlon Brando) e José Dolores (Evaristo Márquez), encarnam a relação entre o Ocidente e o Terceiro Mundo.
Eles também evocam duas figuras históricas reais: William Walker era um aventureiro estadunidense que tentou colonizar a Nicarágua com seus próprios meios, controlando brevemente o país em 1856, e José Dolores – hoje um herói nacional nicaraguense – comandava o exército indígena que expulsou Walker do país.” (TRAVERSO, op cit, p. 206)
Sem jamais engordarmos a lorota maniqueísta de que existam vilões e mocinhos, como certas vertentes do cinema roliudiano insistem em nos fazer crer, ousaremos afirmar que, na história da dita Sétima Arte vista a partir da perspectiva do oprimido-em-processo-de-libertação, há poucos vilões que se comparem a Walker.
Além do Walker magistralmente encarnado por Marlon Brando, há também o sublime e aterrador filme de Alex Cox, Walker – Uma Aventura na Nicarágua, em que Ed Harris intepreta este epígono do imperialismo genocida, este símbolo vilanesco das atrocidades cometidas pelos imperialistas na América Latina que eles tornaram de veias tão transbordantes de sangue… A trilha sonora composta e executada pelo lendário músico punk Joe Strummer (do The Clash e líder dos Mescaleros) só adiciona punch ao retrato das atrozes vilanias de Walker nesta América Latina pelo imperialismo trucidada…
Na história do Cinema do Oprimido destaca-se também a representação Pontecorviana do rebelde José Dolores, herói nacional da Nicarágua, que é “uma espécie de Espártaco moderno, uma representação alegórica de Toussaint L’Ouverture e de Che Guevara”, como argumenta Traverso. Este afirma que Queimada! é um filme que veicula um poderoso retrato do “progressivo desenvolvimento de uma consciência política entre os oprimidos”:
“Dolores sabe que luta pela libertação e ilustra a visão dfe Frantz Fanon do colonialismo como um processo de destruição das culturas autóctones (déculturation), ele entende que, se a civilização é a “civilização do homem branco, então estaríamos melhor se não fôssemos civilizados.” (…) Em muitas entrevistas, Pontecorvo reconheceu que sua visão da violência fora influenciada por Os Condenados da Terra (1961), de Fanon…” (TRAVERSO, op. cit, p. 207)
SAIBA MAIS:
FUSER, Igor. Queimada, a revolução em perpétuo movimento. Jornal Tornado. Click para acessar.
Um notável incremento no interesse pela obra de Fanon manifesta-se também na produção audiovisual recente em filmes como Black Skin White Mask (1995, de Isaac Julien e Mark Nash) e Concerning Violence (2004, de Göran Olsson). A mini-série documental Decolonizações também expande horizontes sobre as lutas anti-coloniais através da História, focando nos movimentos anti-imperialistas no continente africano. Toda esta produção nos faz questionar também em que medida as obras de grandes cineastas da América Latina, como os lendários Glauber Rocha, Luis Puenzo e Patrício Gúzman (dentre outros) também se inserem também nesta abordagem Fanoniana da 7ª Arte.
O cinema chileno vem se debruçando sobre os fantasmas, os ossos, os resquícios e os traumas da ditadura militar encabeçada pelo general Pinochet em obras notáveis do Cinema do Oprimido no século 21, com destaque para Rua Santa Fé (2007, de Carmen Castillo) e Nostalgia da Luz (2010, de P. Guzmán). Neste último, o grande documentarista chileno, realizador do épico A Batalha do Chile nos anos 1970, revela os dramas da memória em pleno deserto do Atacama:
“Lá trabalham astrônomos e arqueólogos: os primeiros porque o deserto abriga um dos telescópios mais potentes do mundo, que se beneficia da extrema pureza do ar e da claridade cristalina do céu; os segundos porque a terra excepcionalmente seca preserva os mais antigos restos de animais e formas de vida humana. Os astrônomos exploram o céu, captando imagens do cosmos que pertencem à vida dos planetas como era milhares de anos atrás; os arqueólogos escrutinam os vestígios de nossos ancestrais pré-históricos. Mas astrônomos e arqueólogos não são as únicas presenças naquele deserto de características lunares. Também há os parentes das vítimas da ditadura militar, que nessa terra perdida chilena montou campos de concentração. No deserto do Atacama, o exército de Pinochet matou secretamente e enterrou muitos de seus inimigos… Todos estão ali em busca de alguma verdade no passado.” (TRAVERSO, op cit, p. 247)
BIBLIOGRAFIA
FANON, Frantz. Racism and Culture (1956). Londres, Pluto, 2006.
TRAVERSO: Melancolia de Esquerda – Marxismo, História e Memória, Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2018
Eduardo Carli de Moraes / Gisele Toassa
Goiânia, Dezembro de 2020
Publicado em: 29/12/20
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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