“Se deveras existe um pecado contra a vida,
talvez não seja tanto o de desesperar com ela,
mas o de esperar por outra vida,
furtando-se assim à implacável grandeza desta.”ALBERT CAMUS, Núpcias
O DIREITO INALIENÁVEL DE CAÇAR A VIDA FELIZ
Não são só os filósofos que estão sempre em seu encalço. À caça de felicidade vamos todos, embriagados pelo sonho e impelidos pelo coração (que tem razões que a própria razão desconhece, como dizia Pascal). “A felicidade sempre foi e continua sendo um grande fim, se não a finalidade suprema, em nome do qual se justificam escolhas na vida pública e privada” – escreve Eduardo Giannetti (Felicidade, Cia das Letras, p. 68).
Dizer que a felicidade é a finalidade suprema, oniperseguida, deixa subentendido que os meios escolhidos para atingir este fim podem ser fracassados, ineficazes, desastrosos. Pergunto-me se, talvez, para ser feliz, a gente tenha que insistir e persistir na infelicidade, tropeçando nos percalços de que os caminhos do viver estão repletos e aprendendo com as feridas e os tombos?
Dá pra dizer que não há sociedade, contemporânea ou histórica, onde a busca da felicidade inexista – ela é perseguida em toda parte, deveras, mas em diferentes épocas e contextos socioambientais vai adquirindo múltiplas faces. Ademais, adquire sentidos os mais diversos e contraditórios em diferentes bocas: Santo Agostinho, em sua época, contava não menos que 289 opiniões diferentes sobre o tema; e hoje em dia o mercado editorial registra uma enlouquecedora quantidade de tratados filosóficos, livros de auto-ajuda, sermões de gurus, em uma Babel de diferentes receitas para atingir a beatitude.
Da felicidade, pode-se dizer que é a universalmente perseguida, se pelo termo “universal” entendermos não uniformidade, homogeneidade e monotonia, mas presença em todas as latitudes e longitudes. Tanto indivíduos quanto sociedades estão sob o encanto desta busca pela melhor vida e os problemas da ética não estão limitados aos filósofos mas dizem respeito a todo mundo e qualquer um.
Um bom exemplo da ampla gama de diversas manifestações históricas da perseguição à felicidade é a Europa quando o zeitgeist da Idade Média foi revolucionado pelo Iluminismo. Neste ponto-de-mutação, escancararam-se duas visões-de-mundo antagônicas sobre aquilo que a Declaração de Independência dos EUA (1776) declara então ser um direito humano inalienável: “the pursuit of happiness”. A perseguida torna-se então um direito-do-cidadão, a ser respeitado pelas repúblicas democráticas, nada menos que um pilar da pólis. “Consideramos estas verdades como auto-evidentes: que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes são vida, liberdade e busca da felicidade…”
FELICIDADE: UM PRATO QUE SÓ SE COME QUANDO MORTO?
Na Idade Média, a história era outra: a Cristandade medieval acreditava na pecaminosidade da perseguição aos prazeres e alegrias mundanos; solicitava-se do rebanho de fiéis que carregasse sua própria cruz pelo vale de lágrimas da Terra e que deixasse para depois da morte o gozo de uma paradisíaca felicidade. A tradição judaico-cristã, de seus primórdios até hoje em dia, tende a prometer aos aflitos uma bem-aventurança do além-túmulo, entronando a fé e a esperança como virtudes teologais.
Em radical contraste, a visão de mundo que associamos ao Iluminismo e à Revolução Francesa (e também à Independência dos EUA), tem a ver com uma maré montante de secularismo, de crítica contra as monarquias absolutistas e os pilares teocráticos que as sustentavam. Na França, figuras como Voltaire, Diderot e Holbach ergueram suas vozes, com lábia afiadíssima, para denunciar como farsa a promessa de um paraíso transcendente e criticar como engodo as pregações do ascetismo judaico-cristão, que mandava macerar e torturar a carne para melhor liberar o alma.
Neste ponto-de-mutação, quando a Cristandade Medieval, em sua decadência, vai cedendo lugar aos poucos aos avanços da luz que os Esclarecidos traziam acesa em suas tochas, a felicidade torna-se exigência de algo a ser vivido aqui-e-agora, nesta vida, antes da morte e não mais depois dela. Em seu livro A Euforia Perpétua – Ensaio sobre o Dever de Felicidade, Pascal Bruckner pondera que o cristianismo não negava a aspiração humana à felicidade, mas colocava-a fora de alcance, seja no Éden de antes da Queda, seja no futuro Reino dos Céus, prometido aos fiéis. “O século XVIII iria se contentar em repatriá-la, trazendo-a aqui para baixo.” (Bruckner, pg. 22) De objeto de nostalgia e esperança, a felicidade torna-se agora um imperativo do presente.
Como aponta Eduardo Giannetti, “o século XVIII deslocaria o ponteiro da confiança no progresso e no aumento da felicidade humana ao longo do tempo até o ponto mais extremo de que se tem notícia nos anais da história intelectual. (…) Na aurora do pensamento moderno, sob o efeito inebriante da ‘tripla revolução’ (científica, industrial e francesa), a crença no progresso foi aos céus. A equação fundamental do iluminismo europeu pressupunha a existência de uma espécie de harmonia preestabelecida entre o progresso da civilização e o aumento da felicidade.” (Giannetti, pg. 22)
As ideologias religiosas monoteístas, em especial judaicas e cristãs, diziam que a felicidade era um prato que a gente só come morto, um banquete a que só tem acesso o espírito depois de liberado do corpo; já o iluminismo instaurou outro regime, uma espécie de “terra prometida da razão secular” (Giannetti, pg. 26), que pretendia conduzir à humanidade à felicidade em vida através do progresso material, da dominação ampla e irrestrita da natureza.
A ideia religiosa de que a felicidade é um prato que só se come morto sofreu sob o impacto de saraivada de críticas (não só dos iluministas, mas também de figuras posteriores como Ludwig Feuerbach e Karl Marx), de modo que essas crenças caem em progressivo descrédito, a ponto de Nietzsche, na segunda metade do séc. XIX, diagnosticar na Europa os sintomas da “morte de Deus” e apontar a necessidade de uma “transvaloração dos valores” que tornasse o ideal ascético, enfim, um item de museu.
Mas também o ideal iluminista é amplamente criticado, como esclarece Eduardo Giannetti:
“O ideal iluminista é criticado por dar livre curso a certos impulsos e fantasias dos homens, especialmente no campo das aspirações de ganho monetário e consumo material”; “representa uma aposta monumental na conquista da felicidade pela crescente, violenta e sistemática subjugação do mundo natural aos propósitos e caprichos humanos. (…) Desse modo poderíamos recriar pelo engenho e sagacidade um novo jardim das delícias, um paraíso tecnológico de turbinas, robôs, viagras e disneylândias no qual o homem se faria um deus sobre a terra… Vejam no que deu brincar de aprendiz de feiticeiro na manipulação do meio ambiente e no consumo pantagruélico de recursos naturais. A ameaça de uma catástrofe ecológica não deixa de ser um espantoso paradoxo desta civilização que fez da racionalidade e do progressos os seus grandes princípios unificadores.” (Giannetti, Felicidade, pgs 39-40)
No século XX, mesmo após duas guerras mundiais, mesmo após bombas atômicas e campos de extermínio, prosseguiu-se perseguindo a felicidade, ainda que por outras vias: alguns dos movimentos mais importantes da contracultura dos anos 1950 e 1960, por exemplo, buscavam inspiração no misticismo oriental (zen-budismo, hinduísmo, hare-krishna…), reavivavam um hedonismo de sabor dionisíaco (evocando o espírito livre nietzschiano…), lançavam-se à política sob a influência de maoístas, Black Panthers e Ches… Nos grandes levantes da juventude dos anos 60, sob a influência de Marcuse e Debord (dentre outros), as ruas e os festivais ousavam demandar: que os sacerdotes não venham mais nos pregar que somos pecadores só porque exigimos “gozar sem entraves”, como se reivindicava em Maio de 68! E que os poderes tirânicos cessassem de perseguir e pisotear todos aqueles que, à maneira de beatniks e hippies, cantam e dançam em Woodstocks em louvor à paz, ao amor, à justiça – pra já e não pra depois!
O LABIRINTO DA ESPERANÇA E DO TEMOR
Felicidade
Só a leve esperança, em toda a vida,
Disfarça a pena de viver, mais nada:
Nem é mais a existência, resumida,
Que uma grande esperança malograda.
O eterno sonho da alma desterrada,
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.
Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa, que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,
Existe, sim: mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.
Vicente de Carvalho
A recorrência, na linguagem, de termos como perseguição da felicidade [pursuit of happiness] é um índice da frequência com que a felicidade nos escapa (se não, por que a perseguiríamos?). Vide o filme estrelado por Will Smith, baseado no livro de Chris Gardner, uma saga-da-vida-real que pretende ilustrar-nos sobre o caminho que leva da miséria ao luxo, da pobreza à Wall Street, que chama-se justamente A Busca Pela Felicidade [The Pursuit of Happyness] e é uma epopéia kitsch de sua conquista, ao modo yankee e com propaganda do self-made-man, auto-empreendedor narcísico.
Perseguida sempre pois raramente possuída, a felicidade só parece conceder-nos pequenas fatias de tempo feliz, mas nunca a felicidade duradoura. Não somos poucos aqueles que contam os dias felizes como minoritários, na quantidade total de dias que engloba uma vida de mortal como a nossa. Não somos poucos aqueles que consideram que são mais comuns e frequentes aqueles dias em que padecemos sob o sofrimento, oprimidos por trabalhos estafantes e não-recompensadores, tolhidos por temores e melancolias, incertos quanto ao futuro, insatisfeitos no amor, cegos quanto à significação última de tudo – em especial da nossa função e sentido no conjunto cósmico completo.
Há filósofos que juram que vão chegar ao túmulo sem terem deixado por um único dia de ter coração e mente afligidos por alguma dor, alguma culpa, alguma preocupação, alguma angústia… Da vida, tudo o que se pode dizer é que nela misturam-se e mesclam-se, na imanência concreta do fluxo cósmico, os afetos alegres e os tristes, os prazeres e as dores, os êxtases e as depressões, tudo junto e misturado numa coisa só. Começar a compreender o mundo nestes termos é dar aquele passo que, segundo Nietzsche, é essencial para que a filosofia siga avante: ir além do Bem e do Mal, cindidos em domínios separados, e abraçar a Phýsis e a fate dizendo: “evoé!”. Amor fati.
Se perseguirmos uma felicidade que fosse só alegrias, uma condição purgada de todos os afetos tristes, um êxtase duradouro e sem desdouro, corremos o risco de estarmos perseguindo uma quimera. E infelizes justamente pois perseguimos o que não existe. Às vezes o abismo que nos separa da felicidade é cavado por nós mesmos: imaginamos algo de quimérico e irrealizável cuja ausência continuada nos dilacera. Talvez convenha, pois, distinguir entre a felicidade como vivência/experiência e como ideal/quimera. A felicidade vivida em carne-e-osso, e a felicidade meramente sonhada e perseguida.
O filósofo francês André Comte-Sponville tem vasta obra dedicada a nos esclarecer sobre este problema: em sua obra O Mito de Ícaro, composta por Tratado do Desespero e da Beatitude e Viver, realiza uma crítica filosófica magistral da esperança, que considera um afeto triste, fruto da impotência e da ignorância, sempre geradora de temores e inquietudes. A esperança é como uma idealização da ausência que nos impede de amar o real em sua presença. Quando a felicidade é apenas uma esperança, e não uma vivência, estamos na infelicidade; quando a felicidade apenas esperamos, sentados com a bunda no sofá, ao invés de agir e amar no sentido de inventá-la, estamos na infelicidade.
“Da caixa de Pandora, na qual fervilhavam os males da humanidade, os gregos fizeram sair a esperança em último lugar, por considerá-la o mais terrível de todos. Não conheço símbolo algum mais emocionante do que este”, escreve Albert Camus em Núpcias.
A esperança, para André Comte-Sponville, é apenas uma das modalidades do desejo – e justamente o desejo como falta, como Platão o definia, ou o desejo como sofrimento, para falar como Schopenhauer e Buda. “O que é a esperança? É um desejo que se refere ao que não temos (uma falta), que ignoramos se foi ou será satisfeito, enfim cuja satisfação não depende de nós” (Felicidade, Desesperadamente, p. 58). Donde a definição clássica e sintética: “esperar é desejar sem gozar, sem saber, sem poder”.
“Só esperamos o que não temos, e por isso mesmo somos tanto menos felizes quando mais esperamos ser felizes. Estamos constantemente separados da felicidade pela própria esperança que a busca. A partir do momento em que esperamos a felicidade (“Como eu seria feliz se…”), não podemos escapar da decepção… É o que Woody Allen resume numa fórmula: “Como eu seria feliz se fosse feliz!” (Felicidade, Desesperadamente, p. 37).
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Lembrem-se do que diz a canção de Geraldo Vandré, “Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores”: “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer…”. Pois quem sabe e pode, age; quem ignora e não pode é que espera e reza. Quem espera não goza: teme e sofre. A palavra esperança, que carrega a “espera” em seu ventre, indica o suficiente o erro em que incorremos quando esperamos ser felizes. A felicidade não é questão de espera, mas sim de ação, criação, invenção. Não vem de graça, de mão beijada, mas precisa ser construída – e tem quem diga que não é construção passível de ser erguida a sós. Donde a importância fundamental do amor e da amizade: é impossível ser feliz sozinho.
O sábio, pois, não espera nada: vive no presente, impulsionado pela força alegre de seu desejo, preferindo sempre a ação à espera, a intervenção ativa à reza, o amor à carência, sem temores nem desencantos. Como sintetiza Sponville:
“Como esperar é desejar sem saber, sem poder, sem gozar, o sábio não espera nada. Não que ele saiba tudo (ninguém sabe tudo), nem que possa tudo (ele não é Deus), nem mesmo que ele seja só prazer (o sábio, como qualquer um, pode ter uma dor de dente), mas porque ele cessou de desejar outra coisa além do que sabe, ou do que pode, ou do que goza. Ele não deseja mais que o real, de que faz parte, e esse desejo, sempre satisfeito – já que o real, por definição, nunca falta: o real nunca está ausente -, esse desejo pois, sempre satisfeito, é então uma alegria plena, que não carece de nada. É o que se chama felicidade. É também o que se chama amor.” (F.D., p. 76)
A receita para a infelicidade é justamente sonhar uma vida radicalmente diferente do que aquela que realmente vivemos. Os infelizes não cessam de projetar no futuro uma utopia pessoal que insatisfaz com o presente que se tem – é o real que nunca está à altura do sonho. Por exemplo: aquele que sonha em ganhar 100 milhões na megasena, e tem esperança de que isso representaria um encontro marcado com a felicidade perpétua, não estaria na ilusão, apostando suas fichas em algo de improvável, condenando-se à frustração perene dos perdedores crônicos na loteria? Ao invés de largar tudo nas mãos da sorte, não seria melhor arregaçar os braços e pôr mãos à obra para a construção e invenção da felicidade, ainda que sob restrições orçamentárias?
OS TESOUROS DE DENTRO
Eis uma das controvérsias que opõe os pensadores quando o tema é a felicidade: a intensidade da ênfase que deve ser dada aos elementos ditos “exteriores” ou “objetivos” na determinação concreta de um bem-estar subjetivo durável. O príncipe Sidarta Gautama, é bem sabido, abandonou o luxo do palácio e todos os confortos da vida principesca, optando com os pés por uma existência de buscador-de-sabedoria, nômade e frugal, que declara através de sua atitude que as riquezas exteriores importam bem menos – quase nada! – em comparação com os tesouros de dentro. O Nirvana importa bem mais que um trono.
A atitude do Buda simboliza a muito comum recomendação de desprendimento e desapego, como se feliz fosse aquele que sabe desprender-se dos vínculos entristecedores e dos desejos insuportáveis (pois insaciáveis) de glória, riqueza e poder.
Sob o nome de “ascetismo” – esse fenômeno que, como Nietzsche bem viu, é comum a muitos credos religiosos, e transcende mesmo o domínio das religiões, instituídas ou místicas, deixando sua marca indelével também em algumas filosofias pretensamente seculares (Schopenhauer, Cioran…) – podemos abarcar as doutrinas que desprezam as “exterioridades”. Digamos, esquematicamente, que há uma rixa entre ascéticos versus sensualistas. Nesta controvérsia, um dos elementos mais interessantes no budismo é seu ponto-de-partida: o sofrimento, indubitavelmente real e concreto, que a condição humana comporta, e isso pelo simples fato de sermos mortais e passíveis de adoecimento, inapelavelmente destinados à tumba (seja pela via do envelhecimento ou pela precoce doença ou acidente fatal). A doutrina búdica nasce para ser remédio para males concretos – Buda fisiologista e psicoterapeuta! – que serve como caminho a ser percorrido no processo de superação da ignorância samsárica. Uma terapêutica da vontade, pois, renovadora dos fluxos energético-existenciais. Buda irmão de Epicuro; Grécia e Índia dão-se as mãos, abraçam-se.
A proposta búdica é vencer a tirania dos desejos brutos e cegos, fazendo com que reine sobre eles uma sábia consciência nirvânica. O ponto-de-partida da busca búdica é a descoberta da dor de existir e a vontade de viver menos mal: desta base de angústia, poderíamos dizer, nasce a árvore Bodhi. A semente da árvore debaixo da qual Sidarta atinge a Iluminação precisou, para germinar e erguer-se em galhos, folhas, frutos e flores, do influxo indispensável de esterco, chuva, minhocas e lágrimas…
Em figuras como Thoreau, Gandhi e Pepe Mujica encontramos o elogio de uma união entre sabedoria e frugalidade, que é também fundamental no budismo: mais vale uma cabana de madeira às beiras do lago de Walden, habitada por um sábio escritor, do que uma mansão luxuosa em metrópolis poluída e cheia de apartheids, habitada por um milionário ignoramus.
A riqueza, é claro, permite gozar de certos prazeres sensíveis refinados (vinhos caros, carros de luxo, viagens a ilhas tropicais de beleza exuberante, o que seja), mas nunca se pode afirmar com certeza que o bilionário é mais feliz que o pobretão; há príncipes e reis que se suicidam ou agem como psicopatas homicidas (as páginas de Shakespeare estão deles repletas), e há mendigos e ciganos despossuídos, iluminados, que parecem abençoados por uma intensa alegria-de-viver.
O Iluminado, porém, é uma raridade estatística; a multitude é vasta, ignara e sofrente. Para citar Eduardo Giannetti, não é raro que a gente sinta que “a consciência pesa. Em casos extremos, o tormento da vida ciente de si adquire tal força que o animal humano reflete e contempla com amarga nostalgia a perda de sua inocência animal. O que nos aconteceu? De onde a sina de um viver cindido e aflito, expectante do inalcançável e à míngua de explicações?” (Felicidade, pg. 143)
Se não gera grande controvérsia afirmar que a felicidade é a finalidade suprema que indivíduos e coletividades perseguem, a coisa muda quando saltamos para a conclusão de que o dinheiro é o meio supremo para alcançá-la. Neste ponto, multiplicam-se aqueles que afirmam, por experiência ou raciocínio, que dinheiro não compra felicidade (ainda que te leve para sofrer em Paris). A canção de McCartney sintetiza bem o argumento: “money can’t buy me love.” Apesar das lorotas dos publicitários, é preciso sublinhar que a felicidade não é um item à venda em shopping centers e supermercados.
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Para conquistar a felicidade, que ele concebia como tranquilidade (eutymia), Sêneca recomendava a parcimônia, a frugalidade, uma vida retirada, “uma cama que não seja adornada de modo exagerado”, “roupas que sejam caseiras e baratas”, “comida comum que seja encontrada em qualquer lugar, que não seja pesada nem ao bolso nem ao corpo” (Da Tranquilidade da Alma, L&PM, p. 36-37) – em suma, recomenda que não vivamos uma vida de atribuladas perseguições ao ouro, ao poder, à fama, a tudo aquilo que acende a inveja alheia e provoca distúrbios na placidez da alma. É a maneira estóica de conceber a vida feliz, e que tem certas similaridades com a doutrina epicurista da ataraxia, ou paz-de-espírito, com algumas diferenças importantes: Epicuro – e seu genial discípulo romano Lucrécio – acreditavam que eram também essencial à felicidade o convívio fecundo e mutuamente recompensador entre os amigos seletos que frequentam o Jardim.
Dito isto, podemos apontar ainda que os filósofos podem ser diferenciados em relação à valorização da sociabilidade como meio para uma vida feliz. Não faltaram na história aqueles que supuseram possível um isolamento bem-aventurado, uma feliz auto-suficiência, simbolizada pelo faquir hindu que medita, sereno e imperturbável, quase inteiramente fechado ao contato humano. Em contraposição, o epicurismo, revivido nos últimos tempos por autores como Jean Marie Guyau e Michel Onfray, julga a amizade um elemento indispensável da vida feliz. Bertrand Russell também defendia a necessidade de “eliminar o egocentrismo, o fechamento em si mesmo e nas paixões pessoais” (ABBAGNANO, Dicionário de Filosofia, p. 507).
A controvérsia opõe, portanto, os defensores de um certo ascetismo anti-social que enxerga a felicidade como busca estritamente pessoal àqueles que concebem-na como inconquistável quando desvinculada das relações intersubjetivas. De um lado, a contemplação solitária beatífica, de outro, as delícias da alteridade fecunda.
Será mesmo preciso escolher, ou podemos surfar entre estes dois pólos?
Eduardo Carli de Moraes é filósofo e jornalista
Publicado em: 01/02/15
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
Belo post, Eduardo!
Vou guardá-lo, pois tem muito a ver com o que venho pensando sobre a alegria epicurista, o “amor fati”, etc. (que quero que entre no disco – e, quem sabe, livrinho – do Diego Mascate “D.C.”)
Faltou citar o Espinoza para o qual a alegria era o aumento da potência de agir, na Ética dele.
Um grande disco celebrando a alegria é o “Mafaro” do mestre André Abujamra… https://www.youtube.com/watch?v=y3KYlQ5oygs
Mafaro, na língua falada do Zimbábue, significa “alegria”! :)))
Abraços!
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia
Diego Mascate
Comentou em 02/02/15