“Music is a weapon against man’s inhumanity towards man” (A música é uma arma contra a desumanidade humana contra outros humanos), expressa Max Roach no alvorecer deste filme peculiar que se inicia com um solo de bateria e termina com o lamentoso e revoltado grito de uma mulher negra, Abby Lincoln. Juntos, através de uma peça musical minimalista mas poderosa, propulsionada só por voz e batera, eles insistem que a libertação em relação ao colonialismo é pra já (“We Insist! Freedom Now”).
Seguindo nas pegadas de Nina Simone, muitos artistas enxergam como sua tarefa mais crucial aquela de ser um reflexo da época em que vivem, capturando em suas obras as contradições e turbulências da sociedade em que estão imersos. No começo dos anos 1960, o mundo do jazz está em polvorosa, pra todo lado expelindo através de saxofones, pianos, trompetes, guitarras, baixos e microfones os sinais de uma turbulência planetária que envolve o que hoje chamamos de Descolonização da África.
“Colonialism is not dead, it’s dying” (O colonialismo não está morto, está morrendo), dispara Sukarno, então presidente da Indonésia, o país asiático que com muita dificuldade conseguiu se independer do império holandês após a Segunda Guerra Mundial, discursando diante da Assembléia Geral das Nações Unidas em NYC em uma das cenas deste estrondoso Soundtrack For a Coup D’État, indicado ao Oscar de Melhor Documentário em 2025 (derrotado para No Other Land, sobre a Cisjordânia ocupada por Israel).
Em outro momento notável, o chefe-de-Estado soviético Nikita Khrushchov persuade a mesma assembléia a acolher uma resolução em prol do fim do colonialismo, aprovada com ampla maioria em Dezembro de 1960 (EUA e Bélgica, pra surpresa de quase ninguém, se abstiveram), conclamando que o colonialismo precisa ser enterrado – e bem fundo.
Hoje poderíamos dizer coisas bem semelhantes a estas proferidas por Sukarno, por Krushchov, ou por Fidel Castro, por Malcolm X etc. – o colonialismo segue sendo esta besta-fera que agoniza mas não morre. E que ainda não soubemos enterrar a sete palmos do chão.
O impressionante filme dirigido pelo belga Johan Grimonprez é um denso, frenético e turbulento documento histórico focado sobretudo nos acontecimentos no Congo no início dos anos 1960 que culminaram com o assassinato de Patrice Lumumba em 1961.
É também um retrato muito interessante e bem informado sobre a mobilização de nações ditas “não-alinhadas” aos dois blocos hegemônicos da Guerra Fria, que descreve eventos relevantes como a Conferência de Bandung em 1955 e os primórdios da constituição de uma solidariedade internacionalista entre países da África, da Ásia e da América Latina (em iniciativas assim aí se enraízam os primórdios tanto dos BRICS quanto a atuação de entidades como o Instituto Tricontinental).
Eu já tinha assistido com muito gosto à biopic dirigida um dos mais importantes cineastas contracoloniais do planeta, o haitiano Raoul Peck, lançado em 2000 (o mesmo diretor também realizou o doc Death of a Prophet, disponível na Criterion); agora, este contundente documentário nos concede vastos elementos a mais para a compreensão do complô para a derrubada do regime que Lumumba comandava após a independência do que veio a ser República Democrática do Congo.
A maior originalidade deste filme está em seu pulsante ânimo musical: ao assisti-lo, ficamos com a impressão de que se trata de free jazz fílmico, de um experimento audiovisual de rara audácia, que convoca centenas de trechos musicais para construir sua complexa tapeçaria de textos, imagens e sons. Qualquer um que se interesse pela arte da montagem, um dos elementos cruciais do cinema, tem aqui um cativante espécimen, com um nível de elaboração tão sofisticado que os próprios Dziga Vertov e Sergei Eisenstein possivelmente aplaudiriam.
Convocando Nina Simone, Louis Armstrong, Dizzy GIllespie, Max Roach e Abbie Lincoln, Miriam Makeba, Thelonious Monk, Art Blakey, John Coltrane, dentre muitos outros músicos menos conhecidos da música africana, o filme é um banquete para os ouvidos com um impactante final cacofônico. A edição de som é primorosa, assim como a sincopada, frenética montagem das imagens.
Também gosto das abundantes inserções de textos, ainda que para parte do público isto possa soar como dispositivo intelectualóide, que conduz o doc aos domínios do filme-tese cheio de citações e referências bibliográficas completas. Os textos coletados são parte de uma polifônica história oral, e chamá-los de “textos” talvez seja errôneo pois a maioria das letras em tela são acompanhadas pelas vozes que as proferem; este é um filme muito mais da parole do que da écriture – tô explicando pra confundir, e a quem sacar francês…
Stuart Jeffries, autor de Grande Hotal Abismo, escreveu um excelente artigo para o The Guardian em soube dar voz ao diretor do filme sobre um tema de alta relevância: porque contar esta história da Guerra Fria importa para nós vivos em 2025:
“The Congo was long raped and plundered for its raw materials. It still is. You wouldn’t have your Teslas or your iPhones without raw material from the Congo”, afirmou Grimonprez. “And I don’t mean rape just metaphorically. If you made a map of the east Congo showing where the mining is and the statistics of how many women are raped, it’s a one-on-one correlation.” (GRIMONPREZ, apud JEFFRIES, 2025) [1]
Está aí um dos cernes da excruciante contundência do filme: a exposição do quanto o extrativismo / mineração conduz há séculos o Congo a ser este inferno produzido pelo colonialismo / imperialismo, já denunciado pela obra-prima do escritor polonês Joseph Conrad, Heart of Darkness, que depois tornou-se um dos melhores filmes já feitos, o Apocalypse Now de Coppola.
A desgraça maior do Congo é possuir uma riqueza estonteante de minérios que os cabeças do capitalismo ocidental sempre quiseram pilhar: não apenas o mundo não conheceria a abundância de celulares, notebooks e carros elétricos que hoje existem sem as minas do congo; até mesmo as bombas atômicas com que Hiroshima e Nagasaki foram massacradas em Agosto de 1945 só foram possíveis com o urânio que os EUA extraiu do Congo. E isso o Oppenheimer de Nolan não nos contou né gente…
A espoliação do Congo, primeiro pelo Império Belga, depois pelo capitalismo corporativo globalizado de raízes nos EUA, é uma tétrica constante que é obliterada de nossas consciências: todo mundo quer gozar com o celular 24h por dia, 7 dias por semana, recarregável na tomada com nossas queridas baterias de lítio, em gadgets repletos de metais pesados como cobalto, sem ligar para as criancinhas africanas em estado análogo à escravidão que estão extraindo os componentes destes dispositivos, sem dar a mínima para as mulheres estupradas em massa ou para os impiedosos bombardeios que sempre chovem, história afora, sobre os rebeldes Lumumbistas, ou seja, os freedom fighters que lutam pela libertação e plena soberania do Congo.
O filme pulsante de Grimonprez é uma grave acusação lançada sobre os EUA e o OTANISTÃO, reunindo fartas evidências de que, sob a presidência do general Eisenhower, esta velha hiena golpista chamada CIA, junto com altas autoridades da ONU, sujaram juntos as mãos de sangue para assassinar Lumumba e eviscerar o Lumumbismo no Congo, tudo em prol do controle yankee dos minérios do país.
Para isto serviram-se até mesmo do Rei do Jazz, a estrela do trompete Louis ‘Sachtmo’ Armstrong, que estava fazendo concertos na região congolesa mais rica em minérios, servindo como cavalo de Tróia e como cortina de fumaça para este coup d’état da OTAN que – surpresa nenhuma – teve a complacência e a cumplicidade das Nações Unidas.
Certamente outro dos méritos maiores deste documentário é a maneira que aborda a questão étnico-racial nos EUA, concedendo a devida estatura histórica a Malcolm X e também a vários ativistas do Harlem. Malcolm é mostrado como perceptivo e sagaz crítico das similaridades entre as vidas dos afro-estadunidenses submetidos à Lei Jim Crow e tratados como subcidadãos e a dos africanos em suas lutas por soberania e independência anti-colonial.
Ele já havia se alçado a grande personagem fílmico através das 4 horas do épico joint de Spike Lee estrelado por Denzel Washington, mas aqui Malcolm X é abordado por outros ângulos, destacando seu pan-africanismo, sua simpatia pela iniciativa que chegou a unir Gana, Guiné e Congo na planejada constituição de uma federação pan-africana, The United States of Africa. É estranhíssimo, no entanto, que o filme não estabeleça paralelos entre os assassinatos de Malcolm X e Lumumba, omitindo completamente o primeiro para enfatizar somente o segundo (com ênfase também na disruptiva invasão da sessão da ONU logo após a execução do Primeiro Ministro da R.D.C).
O filme nos recompensa fartamente, apesar de algumas omissões graves (o Rei Leopoldo II da Bélgica não tem as entranhas de seu regime genocida expostas como seria devido em prol de justiça, verdade, reparação, e a importância do Lumunbismo enquanto contestação radical dos horrores cometidos pelo “leopodismo” poderia ter sido melhor explorado), provendo-nos com um explosivo mix geopolítico que nos leva de volta ao coração das crises mais tensas da Guerra Fria. Como expressou Jeffries:
“It takes us back 64 years, to a time when Black African nations were shaking off the colonial yoke and simultaneously figured as proxies in the cold war. Lumumba had the misfortune to be regarded by the US state department as a dangerous red. The film quotes US President Dwight Eisenhower’s reported hope that “Lumumba would fall into a river full of crocodiles” (…) Soundtrack to a Coup d’Etat opens a new perspective on the cold war in which the west is afraid not of reds under the bed, but Black Africans running their own contras. (…) Novelist In Koli Jean Bofane, author of Congo Inc, points out it in the film that without Congolese raw materials, the US would not have been able to bomb Hiroshima and Nagasaki, nor fire bullets in Vietnam.” (JEFFRIES, The Guardian) [2]
Na revista Far Out, outro elemento é destacado por Emily Ruuskanen sobre formas de arte como a música e o cinema: estas “nunca existem no vácuo”, mas sempre impregnadas pela matéria sócio-política em que estão imersos os artistas criadores. Quem tenta ser “neutro”, apolítico, só reforça assim uma tomada de posição que também é política – afinal, a “arte pela arte” ou o esteticismo pretensamente puros também são fenômenos sócio-políticos. O filme de Grimonprez é brilhante na maneira como politiza toda a arte que toca, ainda que se possa questionar a maneira como faz a mixagem de certos trechos musicais com certas imagens de arquivo, produzindo novos sentidos que podem ser acusados de serem infiéis ao “sentido originário” da obra-de-arte (será mesmo que John Coltrane ou Charles Mingus concordariam de ver suas expressividades no sax ou no baixo inseridas em tal contexto é uma questão válida). De todo modo, Emily Ruuskanen tem minha concordância quase plena quando faz a apologia do filme nestes termos:
“Every piece of art is inextricably linked to the political and cultural landscape in which it came from, with some of our greatest creative minds making work that is in conversation with and responding to the events that shape our world. From the melancholic yearning for freedom in the songs of Nina Simone to the hyper-realism of Nathan Fielder, art that is most personal inevitably becomes political, with those who intend to remain passive and apolitical naturally becoming more entangled in the political. A number of films have articulated the relationship between both forces, but in Johan Grimonprez’s latest documentary, Soundtrack to a Coup d’Etat, he has created an explosive cacophony of history and sound that follows the assassination of Patrice Lumumba, the first prime minister of the Democratic Republic of Congo, and the musicians who unknowingly accompanied a country’s downfall. The level of artistry on display from Grimonprez is staggering, showing an incisive understanding of history and meticulously curated archival footage that is forensically layered to guide us through a story.” (RUUSKANEN, Far Out) [3]
Tudo considerado, o filme convence-nos fartamente de que a independência do Congo não foi bem-sucedida e estava rotten at the roots, ou apodrecida em suas raízes, já que as potências imperiais ocidentais não suportavam perder os trilhões de dólares em minérios que o país no centro do continente africano detêm. Lumumba precisava morrer para que a espoliação colonial pudesse continuar; Lumumba precisou ser assassinado para que Elon Musk e outros senhores tecnofeudais pudessem amealhar suas fortunas sem-precedentes montados nas costas da escravidão neo-colonial conectada ao extrativismo minerados imposta ao povo congolês.
Tem sangue escondido dentro do smartphone e escravidão oculta dentro do capô dos Teslas; mas quem se importa é quase ninguém. Com este estrondoso jazz fílmico, indicado ao Oscar de Documentário em 2025 e distribuído no Brasil pela Pandora, temos um convite irrecusável para nos importarmos e nos engajarmos na luta contra a besta-fera que em sua agonia arrasta toda a biosfera para o abismo. Como afirma Malcolm Ferdinand em Uma Ecologia Decolonial, a crise ecológica planetária tem tudo a ver com um “habitar colonial do mundo”, e este está enraizado na podridão caduca do racismo e das práticas de supremacia de casta. Colonialismo, teus sobrenomes são genocídio e ecocídio. Colonialismo, não há lugar pra ti no futuro a ser forjado onde caibam todas as vidas.
Performático, quase histriônico, o russo Khrushchov também é mostrado em uma cena histórica memorável descalçando seus sapatos para usá-los como uma espécie de baqueta com a qual expressar sua discórdia em relação ao imperialismo – seja belga ou estadunidense. O diretor do filme, um belga que não é conivente com a auto-cegueira do patriotismo quando este significa esconder os crimes cometidos pelos líderes políticos do próprio país, ao pesquisar mais sobre tal evento performático, encontrou outras camadas de significado que vão muito além do desejo do líder soviético de incomodar as hienas capitalistas no recinto com seu chulé – com seu percussivo sapato, ele remetia à borracha que foi tão essencial à Bélgica:
“the slamming and the banging of the shoe was actually because of the history of my country. Rubber money is what built Brussels, you know, and it’s seeped into the soul. The history of Belgium was the history of Congo. It was part of that colonial hold on that continent. And although it defined a lot of what Belgium is about, it was never blown in the open that we were so composite in smashing that independence movement and slashing that sense of hope, that solidarity that was popping up all around the world in the global south as a non-alignment movement.” (GRIMONPREZ, entrevista à Far Out) [4]
Queria terminar este texto com uma breve evocação autobiográfica de uma vivência que pude ter em 2024, enquanto doutorando em filosofia da arte e documentarista independente, em período de “sanduíche” em Amsterdam; na ocasião, decidi fazer uma viagem para conhecer a Bélgica, partindo de Amsterdam num trem rumo a Bruxelas e à Antuérpia, em minha primeira jornada nesta região do mundo conhecida como Flandres, de língua flamenga e de vastas glórias no campo das artes visuais.
As duas cidades geraram em mim uma perturbadora sensação de entremescla entre a admiração e o horror: é quase inevitável não sentir profunda veneração pelas belezas arquitetônicas e museológicas de Bruxelas, a capital da União Européia, e da Antuérpia, que possui alguns dos museus mais magníficos da Europa, mas há também, respirável no ar ao redor do Atomium, algo de muito opressivo e assustador, a presença de uma imensa magnitude de capitais e riquezas que foram brutalmente espoliadas do continente africano. A Bélgica, neste sentido, é mais assustadora do que venerável; e também a Holanda, para quem quer que ouse ir para além da Amsterdam do cartão postal, também horroriza aqueles que conhecem o que foi a tentativa de violenta obliteração do movimento de independência da Indonésia após a II Guerra Mundial.
O filme de Grimonprez me levou a um turbilhão de rememorações sobre os dias em que conheci pessoalmente uma Bélgica marcada por estas dilacerantes contradições: território que detêm algumas das mais belas obras-de-arte do planeta, muitas delas roubadas de povos colonizados e espoliadas; Bruxelas, metrópole que supostamente é a “menina dos olhos” da Nova Europa, e de onde comandaram-se alguns dos piores crimes contra a humanidade já cometidos, e a população do Congo que o diga; Antuérpia, maravilhosa cidade portuária de vastos encantos, que muitas vezes nos dá a impressão de caminhar a pé ou de viajar de tram por dentro não de uma cidade mas de uma obra-de-arte em formato de urbe, mas que também assusta pela quantidade de belezas roubadas, de obras-primas arquitetônicas que foram pagas com o farto sangue congolês derramado.
Soundtrack to a Coup D’État é um documentário pulsante, perturbador, forte e contundente: free jazz fílmica de audácias peculiares e que honra a luta por libertação e auto-determinação dos povos espoliados e oprimidos da terra, ainda que sem vender esperanças baratas. Longe de nos dopar com hopium, este filme é ele próprio um concerto cacofônico, um reflexo da turbulência interminável da história.
Eduardo Carli de Moraes
Visto no Cinecultura, Goiânia, 10/03/2025
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REFERÊNCIAS
1, 2: JEFFRIES, Stuart. Coups, colonialism and all that jazz: the film that unravels extraordinary cold war truths. In: The Guardian: URL: https://www.theguardian.com/film/2024/nov/13/coups-colonialism-and-all-that-jazz-new-film-unravels-cold-war-truths-johan-grimonprez-soundtrack-to-a-coup-detat
3, 4: RUUSKANEN, Emily, Johan Grimonprez on reclaiming our voices through rebellion: ‘Confrontation is necessary’. In: Far Out: https://faroutmagazine.co.uk/johan-grimonprez-on-reclaiming-our-voices-through-rebellion/
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Publicado em: 11/03/25
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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