por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro
O cinema de horror raramente atinge os cumes de elaboração estética e de provocação cultural conseguidos por The Wicker Man (O Homem de Palha). Emblemático duma clash of civilizations (“choque de civilizações”, para emprestar a expressão de Huntington), este thriller inglês resistiu muito bem ao teste do tempo e segue impressionante meio século depois de chegar às telonas.
Dirigido por Robin Hardy e roteirizado por Anthony Schaffer (o mesmo de Sleuth, filmado duas vezes, uma por Mankiewicz em 1972, e outra por K. Brannagh em 2007), o filme foi um fiasco de bilheteria em seu lançamento em 1974, mas depois se alçaria ao status de cult: em 2010, foi eleito pelo The Guardian como um dos 4 melhores da história do gênero (terror) na sétima arte (superado apenas por Psicose de Hitchcock, O Bebê de Rosemary de Polanski e Inverno de Sangue em Veneza de Roeg).
Sua influência sobre cineastas (e músicos) reverbera pelas décadas e pelo mundo afora – impactando em obras-primas recentes como Midsommar e sendo apontado por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles como uma inspiração determinante para Bacurau – fato notado também por Rodrigo Nunes nesta matéria do El País.
A estranheza em que o espectador mergulha ao assisti-lo tem muito a ver com uma sensação de viajar rumo ao coração do desconhecido, adentrando um território ilhado que está para além do cristianismo e onde os dogmas deste não tem valor nem vigência. Junto com o sargento Howie, um policial profundamente encouraçado na dogmática cristã, o espectador explora uma ilha na Escócia chamada Summerisle onde supostamente a menina Rowan Morrison está desaparecida. Cioso de seu dever, Howie tentará desvendar o mistério deste sumiço, sem notar o quanto está se enredando nas teias de uma conspiração para devorá-lo pelas chamas.
O que a princípio parece uma história de detetive à la Conan Doyle, narrando as peripécias de Howie para descobrir o paradeiro da moleca que sumiu, logo se transfigura em uma espécie de Sherlock Holmes preso na teia de aranha (ou perdido no labirinto). A obra gera uma densa teia de contrastes entre a comunidade retratada (na qual enfatiza-se sempre o elemento heathen) e o forasteiro ignorante que nela penetra (e que encarna o elemento christian). Deste clash saltam faíscas. O fogaréu será memorável.
O espectador, acompanhando a jornada de descoberta (e de “horrorização”) do personagem principal, sente-se penetrando em uma ilha “pagã” onde mulheres dançam peladas saltando fogueiras; onde símbolos fálicos são cultuados e as escolas tem currículos que soam altamente “heréticos” aos ouvidos do bom cristão; onde estranhos carnavais e mascaradas culminam com sacrifícios ao deus da fertilidade.
O aditivo de tensão consiste no fato de que, no presente histórico de The Wicker Man, as safras têm fracassado e a comunidade enfrenta escassez de alimentos (sobretudo frutos) – e não se tratando de uma comunidade cristã que ora a uma deus único, mas sim de uma comunidade “pagã” que cultua outras divindades, o que está no horizonte de ação coletiva são práticas de sacrifício que tentem angariar benefícios junto às potências naturais responsáveis pela “frutificação”.
A estranheza que se espraia pelo filme – e que se adensa quando a suspeita de que a menina Rowan está morta acaba gerando o anti-clímax sombrio de um coelho descoberto em seu túmulo – vai gerando calafrios no espectador. Sem exageros na violência gráfica explícita – não há enxurradas de sangue jorrando, nem cabeças cortadas, nem serial killers, nem “sustos” súbitos ocasionados por irrupções sonoras – a obra constrói uma ambiência afetiva perturbadora. Esta perturbação vem também do fato de que, no microcosmo do filme, o cristão fundamentalista, que além de policial coloca-se como inflexível defensor de um cristianismo que está ausente daquela ilha, não apenas é minoria, é ele mesmo enxergado como o cúmulo do estranho, do bizarro, do fora-da-norma, aos olhos daquela maioria de islanders.
Esta inversão do senso comum, em que o cristão deixa de ser hegemônico para tornar-se uma minoria-de-um, remete a um encontro antropológico entre um civilizado e uma tribo que possui outra cosmovisão, outros ritos e mitos. Também remete à atitude arrogante, cheia de hýbris, dos colonizadores cristãos que buscaram catequisar os “povos sem Deus” (há algo em The Wicker Man, portanto, análogo ao que é narrado no também impressionante A Missão de R. Joffe).
No cemitério, sargento Howie tenta construir uma cruz e impor a imagética cristã ao que aparece a seus olhos como um bando diabólico de heathens, mas sua força é mínima: sozinho no quarto da hospedaria, à noite, é assombrado pela tentação advinda dos seios da loura deslumbrante que é filha do dono do hotel e, incapaz de deixar a ilha, acaba ficando para os rituais de Primeiro de Maio, sem suspeitar de seu equívoco: a menina Rowan não era a vítima escolhida para o sacrifício, outro era o bode-homem expiatório a ser queimado até a morte naquela ocasião, com o beneplácito do lorde que reina na ilha (interpretado por Christopher Lee).
Propulsionado também por muitas canções e atmosferas sonoras que permitem uma imersão na narrativa, o filme gerou ressonâncias em outras artes mas sobretudo na música: The Wicker Man teve repercussões bem diversificadas, sobretudo na Inglaterra, que vão desde o heavy metal homônimo do Iron Maiden, lançado no álbum Brave New World, até o rock alternativo do Radiohead, que faz referência explícita ao filme em um dos melhores video-clipes da banda, “Burn The Witch” (que já tem mais de 40 milhões de visualizações no YouTube), música do álbum A Moon Shaped Pool.
Burn The Witch
Stay in the shadows
Cheer at the gallows
This is a round up
This is a low flying panic attack
Sing a song on the jukebox that goes
Burn the witch
Burn the witch
We know where you live
Red crosses on wooden doors
And if you float you burn
Loose talk around tables
Abandon all reason
Avoid all eye contact
Do not react
Shoot the messengers
This is a low flying panic attack
Sing the Song of Sixpence that goes
Burn the witch
Burn the witch
We know where you live
We know where you live
A trilha sonora original do filme é bem arrojada: composta por Paul Giovanni e executada por Magnet, tem por subtítulo Songs from Summerisle – Ballads of Seduction, Fertility, and Ritual Slaughter. O filme é magistral no modo como propõe paisagens sonoras que não são óbvias, criando vínculos entre a música folk daquele povoado, suas crenças e práticas (inclusive sacrificiais), sem jamais reduzi-los ao status de meros”primitivos”, nem criando simplificações grosseiras a partir da demonização do que retrata. Este bom artigo de Verenna P. Ribeiro explora o “orgânico terror musical” que a trilha veicula através de suas “tensões” e suas entremesclas dos elementos das culturas que no filme tem suas fronteiras atravessadas.
Celebrado pela revista Cinefantastique como “o Cidadão Kane do terror”, The Wicker Man não se restringe ao gênero horror/suspense, mas alça-se ao status de magnum opus do cinema na sua capacidade de cativar espectadores, através das gerações, com sua cuidadosamente construída teia de armadilhas. Como bem escreveu o The Guardian:
“The Wicker Man is influential not just on subsequent horror cinema, but on the thriller genre in general in the way it sets an artfully composed series of traps for its unwitting protagonist, expertly wrong-footing both him and the audience until the devastating ending, set to the world’s most disturbing rendition of the folksong Summer is Icumen In, which makes it clear that Sergeant Howie was correct in assuming there was an island-wide conspiracy – but horribly wrong about its precise nature.”
O filme trabalha com a noção de uma coesão comunitária que se constrói com o cimento da comunhão dos mesmos ritos e mitos mas também do sacrifício do outro, numa espécie de lógica do bode expiatório. No caso, o bode é um policial cristão e a comunidade dança, canta e alegra-se enquanto este queima dentro do gigante-de-palha onde também são sacrificados outros animais como galinhas e leitões. Se há algo chocante no desfecho, talvez seja pelo sabor e teor contra-hegemônico de um cristão queimado vivo até a morte, quando historicamente o contrário é que foi verdade durante os trevosos séculos onde a teocracia cristã sacrificou bruxas/feiticeiras e cientistas nas fogueiras da Inquisição.
Décadas depois, um pouco da ambiência e da temática do filme The Wicker Man ressoa no impactante Midsommar – O Mal Não Espera a noite, de Ari Aster. Há um extenso artigo no The Artifice que interpreta os dois filmes em paralelo, destacando:
“At their core, both The Wicker Man and Midsommar are about religion. Specifically, they attempt to explore what happens when someone from a Christian-normative culture and background visits a pagan community with practices they don’t understand. In both movies, the pagan culture is portrayed as peaceful and laid-back, often in explicit contrast to the Christian culture; but also holds dark secrets. The audience is thus invited to project themselves onto the outsiders and consider how they would behave in their place.
The first scene of The Wicker Man features Sergeant Howie attending a church service with his fiancee, thus illustrating his deep devotion to his faith. When he arrives on Summerisle, he’s shocked and horrified by the locals’ pagan beliefs and lack of interest in Christianity. He particularly despises their casual attitudes toward nudity and sex. For instance, the locals sing cheerful songs about the sexual escapades of the innkeeper’s daughter Willow, teach their children about fertility in elementary school, and jump naked over bonfires. His mistrust of the pagans becomes even stronger as he suspects they intend to sacrifice Rowan Morrison.
The clash between the two types of religions comes to a head when Sergeant Howie visits Lord Summerisle. When Sergeant Howie complains to Lord Summerisle about what he has seen, he touches off the most important conversation in the movie:
Summerisle: It’s most important that each new generation on Summerisle be made aware that here, the old gods aren’t dead.
Howie: And what of the true God, to whose glory churches and monasteries have been built on this island for generations past? Now sir, what of him?
Summerisle: He’s dead. Can’t complain. He had his chance and, in modern parlance, blew it.
Howie: What?!
The filmmakers might have wanted to turn the tables on the historical record, since Christians have, historically, spent much time and energy trying to convert pagans on pain of death. They generally accomplished this aim through superior military might and weaponry. On the other hand, what can a single, unarmed Christian–or even a small group of them–do when confronted by an entire pagan society?” (THE ARTIFICE)
O filme é pertinente também no debate acerca do pânico moral, explorando as maneiras pelas quais as crenças e princípios do forasteiro são sistematicamente afrontadas pela sociedade da ilha em vários de seus espaços: da escola ao cemitério, do cabaré à mansão de Lorde Summerisle. Como escreve o The New York Times (contêm spoilers): “Sergeant Howie beholds, with growing horror, a pagan society in which sexual rituals are practiced openly and village schoolchildren are encouraged to talk about phallic symbols and other topics not in the usual curriculum. The sense of dread hanging over the film builds to a startling discovery when Sergeant Howie realizes he has been lured to his doom. In the film’s final scene, he is burned alive inside a giant man made of wicker, sacrificed to appease the local gods and ensure a bountiful apple harvest.”
O filme também se presta a um debate pertinente sobre ciência e negacionismo. O sargento Howie é veículo de muitas críticas ao povo pagão de Summerisle: vejam, por exemplo, a cena em que uma senhora tenta curar a dor-de-garganta de uma menina ao fazê-la reter um sapo na boca, depois tentando fazê-la crer que o sapo “pegou pra ele” a infecção, uma atitude que o forasteiro cristão qualifica como raving mad. Quando percebi, já tarde demais para fugir, que será sacrificado, Howie também tenta argumentar que não há sentido no sacrifício humano para propiciar uma boa safra de frutas, pois o que se trata de fazer, caso se queiram uma ilha repleta de maçãs, perpassa por conhecimentos de botânica e ecologia, de geografia e ciências ambientais, não tendo nada a ver com um suposto suborno aos deuses da fertilidade através do holocausto de vidas.
Eis um elemento a mais de estranheza criando este charme queer de The Wicker Man: normalmente, não se pode elogiar um cristão por seu respeito à ciência, já que com frequência o dogma criacionista é brandido para afrontar e desqualificar o evolucionismo, e tampouco faltam cristãos mais fundamentalistas que defendem o terraplanismo ou que se apegam cegamente a uma interpretação literal do Gênesis que os leva a tratar professores que ensinam a teoria de Darwin como bandidos (lembram de O Vento Será Tua Herança?). Já aqui, apesar da rigidez de seu apego aos dogmas da Cristandade, Howie é veículo também de uma criticidade em relação aos aspectos anti-científicos do culto neo-pagão.
Nesta matéria do Polygon, destaca-se que aquela ilha, a princípio pouco propícia à agricultura de frutas, foi tornada fértil por uma mescla de inovação científica com introdução de mitos/ritos neo-pagãos, numa intrincada combinação: “Lord Summerisle is the grandson of a Victorian scientist who developed a special strain of apple that could thrive in the island’s harsh climate. In order to cultivate happy but hardworking laborers, he reintroduced the old gods to the townsfolk, bringing pagan light and lust into their hardscrabble lives. After a few generations, both projects were a resounding success. Until the year Sgt. Howie came calling. That year, the crops failed. “Disastrously so,” Lord Summerisle eventually admits.”
A força assustadora de The Wicker Man emana de um “choque de civilizações” que também é um clash entre duas figuras que encarnam dogmáticas distintas, o sargento Howie sendo o defensor inabalável da dogmática cristã, e o aristocrata Summerisle servindo como baluarte inflexível disto que estamos chamando aqui, por falta de rótulo melhor, de neo-paganismo. Para salvar sua vida, Howie tenta apelar para a ciência e convencer Summerisle que as safras, no ano que vem, podem seguir fracassando mesmo com o sacrifício, numa tentativa de convencê-lo de que há um equívoco no estabelecimento da relação de causa-e-efeito. Na supracitada matéria do Polygon, o autor reflete sobre as cenas finais:
“Angry as well as frantic, Sgt. Howie plays his final card. ‘Well, don’t you understand that if your crops fail this year, next year you’re going to have to have another blood sacrifice? And next year, no one less than the King of Summerisle himself will do! If the crops fail, Summerisle, next year your people will kill you on May Day!’
Summerisle’s response is confident, supremely confident, confident to the point of madness:
‘They will not fail!‘
The deluded denialism of Lord Summerisle and his people is made terrifyingly clear. In the nobleman’s piercing, clarion voice you can all but hear him clinging, white-knuckled, to the edifice of ideology he himself helped construct and enforce. He cannot admit that he’s wrong, can’t even brook the possibility. He’s telling himself the sacrifice will be accepted and the crops will return as much as he’s telling Howie or the assembled islanders. He’ll commit murder, doom his community to collapse and his people to starvation, before admitting the truth.
I think about those four words, and Christopher Lee’s perfect delivery of them, a lot. I hear an entire mindset, the complete conservative worldview, in those four syllables. (…) They will not fail! For me, nothing captures the maddening insistence that we believe the unbelievable, support the unsupportable, and become active participants in our own immiseration quite as well as Lord Summerisle’s four-word proclamation.” (SEAN T. COLLINS)
A cena final é tão memorável, tão sinistra, pois estamos diante da execução de um ser humano que ocorre enquanto outros seres humanos dançam, cantam e celebram. Um rito ambíguo, que mescla a morte com a vida, o assassinato com o júbilo coletivo, o queimar-vivo-ao-outro com a esperança de tempos melhores e mais frutíferos. Aprisionado dentro do homem-de-palha, enquanto as chamas vão comendo aquele gigante iluminado pelo Sol, Howie clama em vão a seu Deus para que o salve – e poderia ter dito, como Cristo na cruz, o famoso “por que me abandonaste?”
Seu destino – virar cinzas, ainda virgem, depois de ter tido a intenção benévola de resolver um caso de desaparecimento de uma criança – frisa com fortes tintas o ridículo de sua atitude prévia: tentar convencer com argumentos científicos de ocasião, de maneira oportunista e desesperada, um mindset científico e ecológico que em toda a sua vida pregressa e toda sua atitude na ilha de Summerisle ele não teve, tendo sempre manifestado a intransigência de sua dogmática filiação ao cristianismo.
Este clash of civilizations é também o entrechoque entre duas ideologias dogmáticas, e nenhuma cena demonstra isto melhor do que o primeiro encontro-confronto entre Neil Howie e Lorde Summerisle, como destacado nesta matéria do The Baffler – em que o indignado cristão reclama que as crianças da ilha nunca ouviram falar de Jesus, ao que seu oponente retruca ridicularizando a própria noção de um “filho de uma virgem que foi fecundada por um fantasma”: “At one point, Howie confronts Lord Summerisle, yelling, ‘What is all this? You’ve got fake biology, fake religion! Sir, have these children never heard of Jesus?’ To which the laird replies, smirking, ‘Himself the son of a virgin, impregnated, I believe, by a ghost.’
The Wicker Man é um gigante moinho das boas intenções de que o inferno está cheio e um alerta de interesse perene sobre os perigos do dogmatismo excessivo, as ameaças provenientes do negacionismo da ciência, os horrores advindos de posturas rígidas diante da alteridade cultural. Sem bandidos nem mocinhos, o filme ergue uma tocha gigante no horizonte dos nossos tempos, provocando-nos a refletir sobre os porquês do clash de civilizações (e suas ressonâncias na micro-política, nas relações intersubjetivas mais comezinhas) e assustando-nos sobre a persistência das fogueiras sacrificiais, dos bodes expiatórios e dos holocaustos motivados por inúmeros fanatismos religiosos.
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Publicado em: 09/06/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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