por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro
Faz tempo que considero o Terra Cabula uma das preciosidades mais valiosas de nossa Cena Cerrado. Nos dias que correm, em que Ailton Krenak assume seu posto de “imortal” na ABL, venho matutando muito sobre o conceito de futuro ancestral e parece-me que ele está ativo no âmago da arte terracabulística. Ao mesmo tempo que mandam um vade retro pros “privilégios de falo”, a banda usa seu lugar de fala e de estrondo para instaurar um cyber-terreiro dionisíaco-exuístico, abrindo caminhos para uma arte autenticamente brasileira, isto é, despudoradamente mesclada e saudavelmente decolonial. Não há futuro no apagamento do ancestral; mas o ancestral não deve ficar congelado ou enrigecido em suas formas pretéritas. Há futuridade para a ancestralidade, e Terra Cabula mostra as vias e fura as bolhas.
Nem estou dizendo que isto seja intencional, ou que a banda tenha publicado qualquer coisa semelhante a uma carta de princípios onde este conceito figure, mas o fato é que no caldo sônico do Terra Cabula há muita ancestralidade mesclada com uma abertura para a exploração de tudo que é do âmbito do futurível (como diria camará Gilberto Gil). Tem atabaque no palco junto com o laptop. Tem transem em que parecem manifestar-se no palco orixás fazendo dos músicos seus cavalos, mas isto também rola em meio a uma guitarrada com muito pedal-de-efeito, uns microfone com reverbs doidera etc.
Para além disso, a banda aponta para uma desconstrução de todo tipo de rigidez na expressão de gênero e flerta deliciosamente com a heresia, ou seja, com afrontas em relação ao horror pervasivo do fundamentalismo religioso, que no Brasil se manifesta sobretudo, no ápice de sua feiúra, nos fanáticos neopentecostais com sua repulsa a toda expressão de afrobrasilidade; neste contexto, é salutar e bem-vinda uma banda que tenha um refrão tão foda quanto “eu já fui Amélia, hoje sou demônia.”
Poder conviver, trocar uma ideia e um abraço, vez ou outra, com os integrantes do quarteto só consolidou a impressão de que, para além de extraordinários músicos, estamos aqui diante de seres humanos que são jóias vivas. Simpáticos, sem estrelismo, mas plenamente cientes de seu valor e da importância do projeto artístico em que colaboram.
No palco, Terra Cabula emana confiança e aparece como entidade sólida pois cimentada pela cola invisível do afeto. Uma banda que aglutina. Um melting pot de confluências, onde a cantiga de domínio público e os “pontos” de candomblé misturam-se sem grandes pudores com um groovão que faz rebolar até o mais exigente fã do Sly & The Family Stone ou do Living Colour.
Lene Black é uma percussionista de cair o queixo, ativíssima no cenário, sempre envolvida com projetos como Mulheres Na Roda de Samba; no princípio da caminhada d’A Casa de Vidro como ponto de cultura, em 2019, ela esteve à frente do projeto Somos Sementes, em que oferecemos vivências de percussão afro aos sábados de manhã para a mulherada.
Emanuel Mastrela é um baixista e programador de parafernália eletrônica que também trilha caminhos na cena faz tempo, integrando o Caboclo Roxo e gerindo por um tempo espaços culturais como o Aruá.
Ingrid Lobo é uma maga da guitarra e também canta que é uma beleza. Também tem uma carreira solo que pude apreciar (e filmar um trecho) num <show que fez no FICA, lá em Goiás Véi, acompanhada pela batera Paula Bernandes>. Aqui no estúdio d’A Casa de Vidro, Ingrid também já esteve <mesclando seus talentos com Cris Couto e Ísis Krisna em homenagem a Cazuza>.
Vinícius Bolivar é bem mais do que um vocalista versátil e vigoroso, com uma voz que sai da goela feito vulcão em erupção. Sua presença de palco potente ata-se com sua atuação teatral e sua vivência no terreiro. Já pude assistir duas vezes à sua performance no teatro em <Por Cima do Mar Eu Vim (do Núcleo Coletivo 22)>, uma peça que assisti no CCUFG e achei tão foda que na primeira oportunidade eu quis assisti-la de novo. Vinícius é esta figura rara que congrega os talentos de cantor, ator, dançarino, performer.
Durante a pandemia, com a impossibilidade da realização de eventos e festivais musicais presenciais, foi preciso muita ginga para adaptar-se à nova realidade: na época, eu trampava na desafiadora posição de Coordenador de Eventos da IFG, e nós da PROEX pudemos trazer para o XV Festival de Artes de Goiás – Risco, versão on-line, destinado a InspirArte com a fina flor da artisticidade goiana, aquilo que é o mais próximo de um Acústico Terra Cabula já lançado, com Vinícius e Ingrid mandando um voz-e-violão maravilindo na época das máscaras anti-covid19:
Não cessa de surpreender os incautos o cenário goianiense de “música alternativa”, em sentido amplo, e o Terra Cabula tem sido, nos últimos 9 anos, uma presença renovadora quando alguns de nós esperávamos um entancamento de novidades após as ondas stoner e psicodélica. A cena vem em ondas, e cada onda tem suas bandas em sua crista – o stoner levou Black Drawing Chalks e Hellbenders para a crista, e depois o rock psicodélico teve na vanguarda os Boogarins… Menos facilmente rotuláveis, mas igualmente relevantes para a criatividade exuberante da cena, temos ainda as carreiras sólidas de Diego Mascate (hoje acompanhado pel’Os Cometas), Mundhumano, Carne Doce e Chá de Gim.
Parece-me que o Terra Cabula, sem ser nenhum corpo estranho em meio a esta riqueza de expressões musicais destoantes do sertanejo e do gospel infelizmente reinantes, é uma banda que tem sua singularidade, seu sabor próprio. Participa, é claro, mais intimamente, do cenário mais afrocêntrico, mais percussivo, de enraizamento diaspórico, é enfim banda irmã e amiga do Coró de Pau, do Caboclo Roxo, dos Passarinhos do Cerrado, do finado Triêro, do Mazombo.
Só o futuro dirá, mas com o lançamento futuro de seu álbum de estréia e a turnê que tende a se seguir, o Terra Cabula pode tornar-se ponta-de-lança de uma nova onda da cena goianiense, com possibilidade de tomar de assalto uma pá de lugares do Brasil (e além), com uma estética mais calcada no maculelê, mas que provou sem sombra de dúvida, no Goiânia Noise, que tem o peso e o impacto suficientes para agradar em cheio aos roqueirinhos e roqueirões.
O grupo – premiado com o 1º lugar no Festival Canta Cerrado 2016 com a música “Mulher Demônia”, e com o 2º lugar na edição de 2017 do Festival com a música “Vários Lagos” – é sobre fusão, transe, desconstrução de dogmas. Um show do Terra Cabula é um rito, uma gira, um transe demandando ogãs, e não muito recomendado para caretas (é também indigesto para os racistas).
Segundo release, “o nome da banda remete à fusão dos elementos sincréticos que marcam a formação da identidade cultural e religiosa brasileira: cabula se refere aos volteios em que os negros escravizados encontravam para exercer sua cultura e crença no Brasil diante das barreiras da colonização cristã.”
No curto espaço de umas poucas semanas, o Terra Cabula propiciou à galerinha antenada de Goiânia pelo menos duas experiências estéticas acachapantes. Além do show no Goiânia Noise, que sucedeu ao showzaço também lindão da Mundhumano, a banda armou seu cyber-terreiro em 26 de Março de 2024, no Centro Cultural da UFG na Praça Universitária, em evento gratuito, em que fizeram um show primoroso no encerramento do projeto “Tocadores de Terreiro”.
Com apoio da Lei Municipal de Incentivo à Cultura da Secult Goiânia-GO, este projeto beneficiou 44 pessoas com oficinas de percussão ministradas por Mestre Alemão e Mestra Geovana, do Coró de Pau, no Terreiro de Umbanda Casa de Caboclo. Em uma noite de celebração da música popular enraizada na matriz africana, o CCUFG esteve repleto de expressividades que fluem no sentido da descolonização de nossa cultura e do aquilombamento de nossa musicalidade.
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Publicado em: 13/04/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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