Se o Tempo é um compositor de destinos, que ele escreve com nossa carne e nosso sangue, no caso específico de Walter Benjamin a composição foi realizada sob o signo de uma extrema má sorte. A sina desgraçada do pensador que fez “a opção pelo suicídio, em 1940, como forma de escapar da violência da Gestapo hitlerista” (GIORGI, na Revista Cult) faz pensar nos versos daquele blues de Albert King:
“Born under a bad sign
I’ve been down since I began to crawl
If it wasn’t for bad luck
You know I wouldn’t have no luck at all
Hard luck and trouble been my only friends…”
Com a ascensão ao poder do III Reich, a partir de 1933, o destino Benjaminiano é cada vez mais trágico. O autor das Passagens poderia ter dito, com Augusto dos Anjos: “um urubu pousou em minha sorte”. Ele sentia-se como alguém que tenta fazer morada nas mandíbulas de um crocodilo: antes mesmo de ser obrigado a fugir da França rumo à Espanha, já havia sofrido duros reveses em seu exílio parisiense em tempos de guerra e ocupação nazi-fascista. Como relata Heberlein em Arendt – Entre o Amor e o Mal:
“A visita feita pela Gestapo a seu aparamento em Paris, antes de ele conseguir fugir, deixou-o profundamente abalado e arrasado. A Gestapo confiscou seus livros e os textos nos quais trabalhava, e sua dor por ter perdido o mais fundamental de sua vida era grande. Qualquer pessoa pensante e de letras pode entender seu desespero. Uma biblioteca é mais do que uma coleção de livros: é um mundo inteiro. Os livros que lemos, com pontos de exclamação nas margens, grifos e dobras, formam um universo intelectual que leva tempo, talvez uma vida inteira, para construir. Como ele aguentaria iniciar uma biblioteca do zero mais uma vez?” (HEBERLEIN: 2021, p. 98)
É bem conhecida a avaliação feita por Hannah Arendt em Homens Em Tempos Sombrios sobre o destino do amigo: sua morte foi também consumada sob o signo de sua má sorte – esta foi tanta que “apenas naquele dia específico foi possível a catástrofe”. Mas é preciso compreender que o dia fatídico do suicídio é precedido por uma série de episódios que revelam um judeu alemão apátrida que se desespera desde a eclosão da guerra em 3 de setembro de 1939.
Segundo Heberlein, o início da 2ª Guerra Mundial fez com que Walter Benjamin se apavorasse: “ele teme que Paris seja bombardeada e (…) pondo-se a caminho do norte, com destino a Meaux, um lugarejo a alguma distância da capital. Essa acaba sendo uma péssima decisão, pois lá há uma base militar que está na mira dos alemães. Nenhuma bomba cai sobre Paris, mas Meaux sofre ataques aéreos. Walter volta correndo para a capital que, por enquanto, é poupada das bombas. (…) Hannah Arendt relata ternamente o episódio, descrevendo-o como típico de Benji: em sua tentativa de escapar às bombas, ele consegue fugir para o único lugar na França que de fato foi bombardeado no outono de 1939. Hannah retrata Walter como uma pessoa cuja vida e cuja morte foram caracterizadas por azar, por uma infeliz capacidade de estar no lugar errado na hora errada.” (HEBERLEIN, op cit, p. 74)
A partir destas vivências, Benjamin formou um conceito sobre a história humana que rompe radicalmente com as ideologias do progresso, isto é, com uma concepção do Tempo como caminhada rumo ao melhor. No horizonte de Walter Benjamin, o futuro não aparecia como o tempo de realização de um mundo melhor, de instauração de uma utopia de fraternidade e harmonia, mas como uma câmara de gás para onde estavam sendo empurrados, aos milhões, como gado, os exterminados pelo nazifascismo.
Compreender a vida de Benjamin é essencial para a compreensão de seu texto derradeiro, as Teses Sobre o Conceito de História, onde ele evoca o Angelus Novus de Klee para falar de um “progresso” como uma ventania irresistível e catastrófica que arrasta o anjo, de costas para o futuro, enquanto este observa o crescimento de um amontoado de escombros.
Benjamin era desconfiado em relação ao progresso e seus ideólogos – em seu texto “Surrealismo”, destaca de maneira visionária os vínculos entre o avanço tecnocientífico impulsionado por mega-corporações capitalistas, em conluio com o Estado burguês, e o retrocesso humanitário medonho que já se anunciava desde o massacre que derrotou a revolução alemã de 1918-1919, quando as milícias da Freikorps assassinaram Luxemburgo e Liebknetch, agindo como precursores das SS nazistas.
Benjamin destaca que a empresa IG Farben, sediada em Frankfurt, pujante e rica corporação capitalista, é aquilo no quê a galera frankfurtiana têm confiança. De maneira ingênua, muitos alemães celebram o “progresso” constituído pelo desenvolvimento da indústria petroquímica, por exemplo, sem enxergar a outra face da moeda, a distopia real escondida por detrás da imagem utópica aparente: fabricante do Zyklon B, o gás da morte que seria utilizado nos campos de extermínio, a famosa empresa Frankfurtiana ajudaria o III Reich a assassinar, apenas em sua cidade-sede, mais de 11.000 judeus frankfurtianos que foram vítimas do Holocausto (cf. Jeffries, pg. 77). Que belo progresso é este, hein Senhora IG Farben?!?
Longe de ser um caso isolado, IG Farben faz parte de uma legião de empresas que tiveram relações de cumplicidade ou colaboração com a escumalha do III Reich em seus quase 16 anos de império sinistro. Como aponta o estudo de Stuart Jeffries, “as principais empresas de Frankfurt ajudariam Hitler a cometer genocídio. (…) O casamento de Hitler com o mundo dos negócios dificilmente seria algo forçado – era um caso de amor entre dois parceiros compatíveis.” (p. 81 e 85)
Benjamin não estava sozinho em sua recusa obstinada das ilusões impostas pela ideologia do progresso: Theodor Adorno escreveu em Dialética Negativa que “nenhuma história universal leva da selvageria ao humanitarismo, mas há uma que leva do estilingue à bomba de megatons” (apud JEFFRIES, p. 340).
Diante da discrepância entre o avanço tecnológico (da criação da roda até a possibilidade de utilizar um avião para despejar a bomba-H ou napalm sobre o território inimigo, que progresso! ) e a catástrofe contínua das relações humanas e internacionais (é uma maravilhosa realização do “progresso” quando os trens para Auschwitz saem todos no horário?), Adorno formula um novo imperativo categórico para nossos tempos: “que Auschwitz nunca se repita”.
Para a composição de nossos destinos o Tempo tem predileção por lançar em seu caldeirão (ou liquidificador, para aqueles que preferem a era da eletricidade) a civilização e a barbárie, entremesclados. Não é possível criar uma linha divisória ou uma fronteira murada entre os domínios da Civilização e da Barbárie – nunca mais, depois do III Reich, podemos ser ingênuos a ponto de acreditar que uma das nações mais civilizadas da Europa não pode se tornar capaz do extermínio em massa de seres humanos através de “massacres administrativos” (Arendt). Na tese 7 de “Sobre o Conceito de História”, Walter Benjamin escreve:
“Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são os que chamamos de bens culturais. Todos os bens materiais que o materialista histórico vê têm uma origem que ele não pode contemplar sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corvéia anônima de seus contemporâneos. Nunca houve um monumento de cultura que também não fosse um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo.”
Em seu comentário desta tese Benjaminiana, hoje presente no túmulo do filósofo, Marilena Chauí elucida os sentidos comunicados por Benjamin e adiciona um exemplo do século 21 (a Guerra do Iraque):
“Essa passagem de Benjamin é rica em sentido, mas aqui ela nos interessa por um motivo particular, qual seja, o de situar a barbárie no interior da cultura ou da civilização, recusando a dicotomia tradicional, que localiza a barbárie no outro e o situa no exterior. Pelo contrário, a tese de Benjamin coloca a barbárie não só como o avesso necessário da civilização, mas como o pressuposto dela, como aquilo que a civilização engendra ao produzir-se a si mesma como cultura. O bárbaro não está no exterior, mas é interno ao movimento de criação e transmissão da cultura, é o que causa horror àquele que contempla o cortejo triunfal dos vencedores pisoteando os corpos dos vencidos e conhece o preço de infâmia de cada monumento da civilização.
A atualidade da tese de Benjamin, cujo pano de fundo histórico foi o nazismo, não é metafórica, mas encontra-se literalmente afirmada em nosso presente: em março de 2003, menosprezando a Organização das Nações Unidas e pisoteando a idéia de direito das gentes ou de direito e ordem internacionais, as tropas dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha invadiram o Iraque, em nome da civilização, contra a barbárie…” (MARILENA CHAUÍ: in: Civilização e Barbárie. Ed. Cia Das Letras. Organizador: Adauto Novaes. Compartilhe no Facebook).
Outro pertinente comentador brasileiro do pensamento benjaminiano, Leandro Konder (1936-2014), destaca:
“Benjamin tem uma visão agudamente crítica daquilo que a história da luta de classes ‘cristalizou’ na tradição: o legado que nós recebemos, segundo ele, está profundamente marcado por ‘expurgos’ promovidos pelos opressores, por exigências reprimidas, pelas esperanças dos oprimidos que foram sufocadas. À consciência revolucionária cabe reexaminar o passado, resgatando nele o que foi mutilado; cabe-lhe, como diz Jeanne Marie Gagnebin – ‘arrebatar ao esquecimento a história dos vencidos’. Além de recuperar a memória do que aconteceu, a dialética revolucionária, nas palavras do próprio Benjamin, ‘provoca a explosão da carga de dinamite que ficou depositada no passado.'” (KONDER, O Marxismo Na Batalha Das Idéias, Ed. Boitempo, p. 74. Click e saiba mais.)
Publicado em: 18/07/21
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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