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FLUXO – Em entrevista concedida à Bruno Torturra e gravada na FFLCH-USP, no dia 6 de dezembro, o cientista político, jornalista e professor André Singer trata da atual fase da crise política brasileira à luz de seu mais recente livro – “As contradições do Lulismo – a que ponto chegamos?” (Boitempo, 2016, R$ 52,00) – uma compilação de artigos sobre o ambivalente legado dos anos do PT no poder federal e de como a conciliação de classes entrou em colapso no segundo mandato Dilma. Assista abaixo:
LIÇÕES DE MILITÂNCIA: Florestan Fernandes e a escola pública
In: “Mutações do cativeiro: escritos de psicologia e política”,
de Maria Helena Souza Patto (São Paulo, Hacker/Edusp, 2000.)
Portador da palavra de despedida da USP a Florestan Fernandes, o professor do Departamento de Sociologia, José de Souza Martins, falou em agosto de 1995 da dificuldade de dizê-la, “porque nos despedimos de alguém que permanece e permanecerá.” (…) Conheço a coragem e a clareza com que esse “não-especialista longamente engolfado nas lutas pedagógicas”, como ele próprio se define, examina os descalabros crônicos da política educacional brasileira.
A crítica de Florestan Fernandes não é leve, condescendente, conciliadora ou epidérmica como costumam ser os diagnósticos dos problemas da educação escolar pública feitos por cientistas pouco críticos ou por tecnoburocratas que fazem carreira e defendem interesses particularistas em órgãos públicos que gerenciam o sistema educacional. Ele não soma com a idéia de que bastam mudanças técnicas superficiais aqui e ali para transformar o quadro desastroso da educação… Ele identifica os problemas pela raiz, nomeia-os e os combate de frente, sem meias palavras, sem eufemismos, embora sempre com intenção construtiva…
Em 1988, quando o governador paulista joga a polícia contra professores das 3 universidades estaduais em greve, a insolência de Florestan não fica atrás da de Marx em O 18 Brumário. O sentimento dominante em seus escritos sobre a escola é a indignação, pois “numa sociedade em que o Povo sempre foi zelosamente afastado dos direitos cívicos da cidadania”, a impostura de governantes e de suas equipes garante uma política educacional profunda e continuamente comprometida com a reprodução desse estado de coisas. (…) O compromisso de Florestan com os “de baixo” torna frequentes em seus textos expressões de combate: ele fala em “intransigência cívica”, “batalha sem quartel”, “protesto coletivo”, “luta com unhas e dentes”…
Ele sabe, como Agnes Heller, que quando se trata de fazer frente à injustiça, o oposto da personalidade autoritária não é a personalidade tolerante. É este traço que Antonio Candido exalta ao saudar no grande homem “a rara capacidade de criar o escândalo necessário e salutar, passando por cima do temível respeito humano quando se trata de afirmar o que é justo e verdadeiro.”
Silenciado pela violência policial-militar durante a década de 70, continuou a falar lá fora, incansável na análise e na denúncia da situação política do país, para voltar à carga aqui dentro nos anos 80 e 90, então como deputado federal constituinte, entre 1987 e 1990, e deputado federal reeleito para o período 1991-1994, no qual se prepara uma nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
Palestras, conferências, artigos de divulgação e entrevistas dos tempos da Campanha e da volta ao país estão reunidos, retrospectivamente, em duas coletâneas: Educação e Sociedade no Brasil, publicada em 1966, e O Desafio Educacional, de 1989. As bases teóricas que articulam as idéias de Florestan nesses livros são radicalmente diversas, mas a causa é uma só: a luta intransigente em defesa da escola pública de boa qualidade em todos os níveis, sempre ameaçada pela tendência permanente – e tão atual – à “privatização do público”, que se concretiza em leis que desviam verbas públicas destinadas à educação escolar gratuita pela ação de um Estado “mecenas da escola particular e coveiro de suas próprias escolas”, que cede aos interesses comerciais de donos de escolas privadas, tidos por eles como “parasitas mal-intencionados”.
(…) No interior da reabertura política e do renascimento da organização operária nos anos 1980, a esperança de transformações sociais radicais se renova, e Florestan define a educação como meio da auto-emancipação coletiva dos oprimidos, para o que precisam de “uma consciência crítica e negadora do passado, combinada a uma consciência crítica e afirmadora do futuro.”
A escola de boa qualidade é um dos caminhos pelos quais as classes subalternas poderão adquirir consciência da espoliação. Não se pode defender a “educação para a liberdade” nos mesmos termos dos educadores liberais, uma vez que é preciso assinalar os limites da educação no mundo capitalista, o que as autoridades educacionais não fazem… Sem explicitar que numa sociedade de classes não se educa para a liberdade – pois que ela inexiste no plano social – entra-se no terreno da pura hipocrisia. “Educar para a liberdade”, no sentido socialista de Florestan Fernandes, significa lutar contra a exclusão do proletariado da esfera do ensino, não para incluí-lo numa escola qualquer, mas numa escola que veicule conhecimentos escolares voltados para a consciência social de classe e que tenha nos princípios democráticos o padrão da relação social entre professores e alunos.
Quando valoriza a escola como arma na luta de classes, Florestan não quer dizer que uma pedagogia socialista possa existir antes da sociedade socialista. Ele sabe que a sociedade capitalista impõe limites históricos à vida escolar e que a escola capitalista não pode ser incompatível com os interesses do capital. O que ele quer dizer é que “é possível operar na escola com valores socialistas”, ou seja, existe um âmbito maior ou menor de liberdade relativa que permite antecipar certas mudanças em direção a uma educação para a liberdade.
Ele também não quer dizer que a formação da consciência crítica do filho do trabalhador caiba à escola; ela cabe principalmente ao partido político e ao sindicato operário, podendo o professor juntar-se ao esforço sistemático de educar o trabalhador para que ele seja capaz de criticar a ordem social existente, isto é, de “manter posição ofensiva nas relações de classe, (…) superar a ‘capitulação passiva’ presente no dicionário de todos os brasileiros.”
Ao defender essa concepção de ensino, Florestan aproxima-se dos princípios da pedagogia do oprimido, a qual, para ele, “dialeticamente só pode ser uma pedagogia da desopressão”; aproxima-se também da educação para a resistência e a autonomia, tal como pensada por Adorno, com quem compartilha a preocupação com a desumanidade social: “o objetivo último da educação não está em ‘fazer a cabeça do estudante’, mas em inventar e reinventar a civilização sem barbárie.” São estas as palavras que encerram O Desafio Educacional…
(MARIA HELENA SOUZA PATTO: Edusp, 2000, pgs 119-123-138)
FLORESTAN FERNANDES: O SOCIÓLOGO MILITANTE,
por Vladimir Sachetta
“Antonio Candido, muito mais que um amigo de Florestan, distingue três momentos predominantes em sua trajetória: o primeiro, que se situa nos anos 40 – o momento do conhecimento – é o da construção do saber, com que Florestan constrói o seu e a possibilidade de saber dos outros; o segundo, nos anos 50 – o momento da pesquisa aplicada – é o da paixão pela aplicação do saber ao mundo e à sua compreensão; e o terceiro, a partir dos anos 60 – o momento do combate, o do saber transformado em arma.
É, portanto, a essas três etapas que ouso acrescentar uma quarta: o da radicalização plena, em que o cientista social, educador e pensador, assume a identidade de tribuno e publicista.
Desde os anos 40, Florestan sempre esteve ligado aos movimentos sociais e reivindicatórios, legais ou ilegais, às organizações políticas de esquerda, clandestinas ou não. Cerrou fileiras ao lado de portugueses e espanhóis antifascistas, fez agitação e propaganda em campanhas memoráveis, como a da Escola Pública, trabalhou com o movimento negro.
Pagou um alto preço por isso. Foi preso após o golpe militar em 64, acabou afastado da Universidade cinco anos depois. Partiu para o exílio e, lá fora, continuou a fustigar a ditadura em meetings de protesto ou através de conferências. Retornou ao país e recusou-se a solicitar sua reintegração à USP, de onde não pedira para sair. Voltou a este campus pela porta do Diretório Central dos Estudantes com um curso sobre Cuba e sua revolução.
Percorrendo-se sua obra é possível perceber no livro “Nova República?”,editado em 1986, o último trabalho de cunho ensaístico. A partir dali, topamos com uma série de coletâneas de artigos de imprensa – só na Folha de S. Paulo foram mais de trezentas colunas na página 2, entre 1989 e 1995 – que revelam um publicista vigoroso, agudo, implacável e coerente. Cumpriu uma pauta de questões candentes, tratando dos assuntos mais variados. Aperfeiçoou seu estilo e, com a humildade dos grandes homens, o velho professor despiu-se dos vezos da academia para tentar falar uma linguagem mais próxima do povo. Dos de baixo, como dizia.
Filiado ao Partido dos Trabalhadores, Florestan tornou-se deputado federal constituinte em 1986. Seria reeleito em 1990. Nas campanhas, paupérrimas em recursos financeiros, reuniam-se, sob sua inspiração aglutinadora, as mais diversas tendências do arco ideológico de esquerda. Irmanadas em torno de um mesmo sonho: o da construção de uma sociedade nova, com igualdade e, principalmente, felicidade, como frisava Florestan. “Contra as idéias da força, a força das idéias”, foi o mote da campanha em 86. “Sem medo de ser socialista”, a palavra de ordem em 1990.
Assumiu a atividade parlamentar numa perspectiva da oposição de esquerda e procurou defender convicções socialistas durante todo o período em que desempenhou os dois mandatos que lhe foram conferidos. Como sociólogo militante, nunca perdeu de vista a busca de transformações profundas para o país.
Na Comissão de Educação logrou fazer o que foi possível em favor do projeto pelo qual sempre lutou: expandir, modernizar e, em especial, fortalecer a escola pública. Participou ativamente da elaboração da Lei de Diretrizes e Bases, à qual procurou dar o máximo de si.
Referência para todo o campo da esquerda petista, nunca se ligou a qualquer tendência interna do partido, dialogando com todas elas, principalmente as comprometidas com o socialismo revolucionário. Colaborava, ao mesmo tempo e de forma generosa, com outros partidos e organizações de esquerda, do país e de fora dele.
Militante fiel e disciplinado, aceitava algumas tarefas partidárias de forma crítica, sem jamais deixar de manifestar suas posições, em geral à esquerda da direção. Preocupava-se com os rumos do PT – ou a falta deles – em especial com a ausência de um conteúdo programático de caráter marcadamente socialista.
Apontava os perigos da política profissional, do excesso de institucionalização, da burocratização. Conquistar o poder ou simplesmente ocupá-lo? Ser um partido da ordem ou colocar-se contra ela? Estas eram as grandes indagações de Florestan Fernandes com relação ao Partido dos Trabalhadores.
A natureza selvagem do filho de uma imigrante portuguesa explica sua postura e sua personalidade forte, ao mesmo tempo independente e rebelde. Cresceu entre os excluídos – sua maior escola de aprendizado sociológico, como dizia – e nunca perdeu a perspectiva de classe. Nem a crença no socialismo.
Bastante debilitado, driblou a doença até onde pôde. Transformava dor em indignação. Para sobreviver, lutou com a mesma garra daquele menino vindo da ralé, e a convicção de alguém que ainda tinha muitas tarefas a cumprir. Morreu seis dias após ter enfrentado, com a coragem que era sua marca, um discutível transplante de fígado, talvez a cirurgia mais violenta e agressiva a que um ser humano possa ser submetido.
Em nome de sua família, de seus amigos e de seus companheiros, aproveito a oportunidade desta homenagem para, na presença do magnífico reitor da Universidade de São Paulo, solicitar ao diretor da Faculdade de Medicina que leve à Congregação o debate sobre as questões médicas, éticas e morais que a operação envolveu. Que o caso possa trazer subsídios à pesquisa no país – em que Florestan acreditava e tanto prestigiou – aprimorando técnicas e procedimentos, democratizando a própria instituição e as relações médico-paciente. E que sua morte não tenha sido em vão. Afinal, Florestan Fernandes era, fundamentalmente, um educador.”
Apresentação por Vladimir Sacchetta: “Um dos mais importantes cientistas sociais brasileiros, com dezenas de livros publicados, Florestan Fernandes veio de família humilde e desde os 6 anos trabalhou duro para sobreviver e estudar. Da mãe de origem camponesa herdou o caráter combativo, independente e rebelde. Preso pela ditadura militar e aposentado compulsoriamente da universidade pelo AI-5, foi obrigado a se exilar. De volta ao país, retomou a luta pelos excluídos, em defesa da escola pública e do socialismo. Exemplo de pensador fiel aos seus princípios e à sua classe, fez do conhecimento científico um instrumento de transformação da realidade e deixou escritos para jamais serem esquecidos.” – COMPRAR LIVRO
Imagem: 17 de Junho de 2013. Congresso ocupado por manifestantes.
Em meados de março de 2013, uma pesquisa realizada pelo instituto Ibope revelou que a popularidade da presidente brasileira Dilma Rousseff havia alcançado um patamar histórico de aprovação: 63% dos entrevistados consideravam seu governo ótimo ou bom e 79% aprovavam seu desempenho pessoal. [http://bit.ly/RfwupJ] Mesmo comparados à aprovação popular de 59% conquistada pelo ex-presidente Lula da Silva no final de seu segundo mandato, os números da presidente eram realmente espetaculares.
No entanto, apenas dois meses após a publicação desta pesquisa, fato inédito na história do país, a popularidade do governo tinha despencado para 30% dos entrevistados [http://glo.bo/1RNeopL]. Ao longo do mês de junho de 2013, em pouco mais de duas semanas de protestos nas ruas, um verdadeiro terremoto social chacoalhou a cena política brasileira, deixando um rastro de destruição da popularidade de inúmeros governos municipais, estaduais, assim como do governo federal.
Contando com 75% de aprovação popular, segundo o Ibope, as “Jornadas de Junho”, como ficou conhecida a onda de protestos inicialmente motivados pelo aumento das tarifas do transporte público, levaram às ruas, em seu ápice, isto é, no dia 17 de junho, mais de dois milhões de pessoas. Sempre segundo o Ibope, protestos foram registrados em 407 cidades, espalhadas por todas as regiões do país.
17 de Junho de 2013. Brasília-DF. Congresso Nacional.
Dispensável dizer que os grandes meios de comunicação foram totalmente surpreendidos pela escala monumental deste movimento espontâneo. Em sua maioria, os analistas políticos contemplavam exclusivamente as enquetes de opinião, negligenciando importantes tendências subterrâneas que desde 2008 já afloravam em pequenos sismos.
Imediatamente após o início das grandes passeatas, alguns jornalistas alinhados ao governo federal apressaram-se em sustentar que as Jornadas de Junho não passavam de uma tentativa de golpe de Estado trama da mídia conservadora. O reposicionamento da cobertura jornalística em apoio aos protestos e a presença nas ruas das classes médias tradicionais descontentes com o governo petista confirmariam a suspeita.
No entanto, esta hipótese falhou em explicar tanto a natureza massiva e popular dos protestos, quanto a defesa de investimentos para a educação e para a saúde públicas. Finalmente, os protestos não visavam especificamente o governo federal, mas atingiam praticamente todo o mainstream político brasileiro.
Ciente da fragilidade desta elaboração, a cúpula do PT ajustou o calibre do petardo, transitando do “golpe da direita” para o “sucesso do atual modelo de desenvolvimento”. Segundo a reelaboração petista, as políticas públicas do governo federal teriam redistribuído tanta renda, elevando de tal maneira as expectativas populares em relação à qualidade dos serviços públicos, que a “nova classe média” criada durante os anos 2000 teria ido às ruas exigir ainda mais iniciativas do governo federal.
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Sem entrar na questão da existência ou não de uma “nova classe média” no país, a verdade é que esta hipótese não explica o timing dos protestos. Afinal, o que teria acontecido especificamente no mês de junho para detonar a maior revolta popular da história brasileira? Porque razão uma elevação das expectativas populares desaguaria numa onda de mais de dois milhões de indignados nas ruas?
A terceira hipótese buscou localizar as Jornadas de Junho no mesmo diapasão do ciclo de protestos que enlaçou Espanha (2011), Portugal (2012) e Turquia (2013). Em suma, um enrijecido sistema político hierarquizado, fundamentalmente refratário à participação popular, estaria se chocando com uma vibrante cultura política democrática fermentada desde baixo pelas redes sociais eletrônicas.(Ver Marcos Nobre. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo, Companhia das Letras, 2013.)
Largamente convincente em sua generalidade, a excessiva dependência heurística desta hipótese em relação às metamorfoses da cultura política deixou na penumbra tanto o evento detonador quanto a abrangência nacional das Jornadas de Junho. Afinal, um protesto repentino em larga escala poderia ser compreendido numa chave tão fluida quanto a do amadurecimento de uma cultura política alternativa?
Aos nossos olhos, todas estas hipóteses contém um grão de verdade: sem dúvidas, muitos foram às ruas convocados pela mídia conservadora, as expectativas com os serviços públicos aumentaram no rastro da desconcentração de renda entre os que vivem dos rendimentos do trabalho e uma nova cultura política democrática desenvolveu-se no Brasil na última década.
Desde 2008, o Cenedic – Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania – publicou livros e artigos argumentando, por meio de etnografias de trabalhadores vivendo em bairros populares e periféricos, de análises das modificações recentes da estrutura sócio-ocupacional brasileira e de estudos de caso de trabalhadores precarizados, que, ao invés de consolidar a hegemonia política do Partido dos Trabalhadores (PT), a reprodução do atual modelo de desenvolvimento alimentava um estado mais ou menos permanente de inquietação social capaz de transformar-se em indignação popular. (Ver Robert Cabanes, Isabel Georges, Cibele S. Rizek e Vera da Silva Telles (orgs.). Saídas de emergência: ganhar/perder a vida na periferia de São Paulo. São Paulo, Boitempo, 2011.)
Herdeiro de uma tradição investigativa orientada pelo diálogo crítico com os movimentos sociais urbanos, em especial, o movimento sindical, o Cenedic foi criado em 1995 pelo sociólogo Francisco de Oliveira para estudar os efeitos econômicos, políticos e ideológicos do “desmanche neoliberal” promovido pelo governo de Fernando Henrique Cardoso sobre as classes sociais subalternas brasileiras.
No Cinedic, a articulação totalizante destas dimensões da crítica social vertebrou tanto os diferentes projetos coletivos de pesquisa do centro de estudos levados adiante nestes quase vinte anos de existência – tais como Os sentidos da democracia (1996), A era da indeterminação (2001), Hegemonia às avessas (2005) e Desigual e combinado (2012) –, quanto influenciou a relação politicamente explosiva de Francisco de Oliveira, um dos fundadores do PT e um de seus mais renomados intelectuais, com o partido que ele ajudou a criar.
Além disso, este projeto crítico balizou igualmente os vínculosdos pesquisadores com os movimentos sociais, em especial o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), o Movimento Urbano Sem-Teto (MUST), o Movimento dos Trabalhadores da Cultura (MTC) e a Central Sindical e Popular (CSP-Conlutas). O diálogo crítico do Cenedic com os movimentos sociais é um traço constitutivo não apenas da identidade do centro de estudos, como do tipo de investigação realizada por seus pesquisadores.
Talvez por essa razão as Jornadas de Junho tenham surgido para o Cenedic como o resultado bastante previsível de uma situação histórica marcada pela inquietação social dos grupos subalternos com os limites do atual modelo de desenvolvimento. Em 2006, inspirado pelo desafio proposto por Francisco de Oliveira, isto é, investigar as microfundações da macrohegemonia do PT, o Cenedic já havia se lançado à campo, sobretudo, no bairro paulistano de Cidade Tiradentes. Localizado no extremo leste da capital paulista e contando com cerca de 300 mil moradores, a região abriga, além de uma grande favela, um dos maiores conjuntos habitacionais da América Latina.
Em suma, trata-se de um bairro que permite observar o modo de vida dos que conhecem como poucos os reveses do “outro lado” da hegemonia petista. Nas palavras de Francisco de Oliveira, as etnografias realizadas pelos pesquisadores do Cenedic na zona leste de São Paulo revelam, para além da aprovação eleitoral: “o cotidiano de pessoas (kafkianamente) transformadas em insetos na ordem capitalista da metrópole paulistana.
Cidade Tiradentes / SP
Decifrando o enigma
As vicissitudes cotidianas das famílias trabalhadoras de Cidade Tiradentes, bairro onde 65% dos moradores vivem com uma renda média individual de até US$ 80,00 por mês, revelaram-se abundantemente nas etnografias do trabalho informal, do tráfico de drogas, da subcontratação, da precarização do trabalho doméstico, do comércio ilícito, da violência policial, das ocupações irregulares, da população de rua e das trajetórias das mulheres chefes de família do bairro. Assim, uma miríade de dramas privados foi transformada em fértil matéria-prima para o debate público.
Por meio da descrição etnográfica do cotidiano das famílias do bairro, a pesquisa flagrou a dialética cotidiana entre espaço privado e espaço público movendo-se no sentido da retomada da ação coletiva mediada, não mais pelos sindicatos ou pelos partidos políticos tradicionais, mas pelas igrejas neopentecostais.
(…) Dados colhidos pelo Sistema de Acompanhamento de Greves do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (SAG-DIEESE) mostraram que, em 2012, o país viveu um recorde histórico de greves, inferior apenas aos anos de 1989 e 1990.
Não devemos esquecer que, entre 2003 e 2010, o país criou anualmente 2,1 milhões de empregos formais. No entanto, 94% destes empregos pagam baixíssimos salários (até US$ 430,00). Sem mencionar o fato de que entre 2009 e 2012, o tempo médio de permanência do emprego caiu de 18 para 16 meses, denotando aumento da deterioração das condições de trabalho.[19] Em acréscimo, o estoque de empregos formais diminui ininterruptamente desde 2010, fato este que tende a estressar os jovens que procuram o primeiro emprego formal.
Em suma, desde 2008, o país vive um momento que combina desaceleração econômica, mobilizações grevistas e desgaste de um modelo de desenvolvimento cujos limites redistributivos têm se tornado cada dia mais nítidos. Conforme dados reunidos por André Singer, atual diretor do Cenedic, não foi surpresa descobrir que a maioria dos manifestantes de Junho era formada por uma massa de jovens trabalhadores escolarizados, porém sub-remunerados.
Diferentemente das demais teses a respeito do atual ciclo de revoltas populares, há tempos o Cenedic analisa o “evento detonador” das Jornadas de Junho, isto é, a violência policial militarizada elevada à condição de mecanismo regulador da conflitualidade urbana.
Quer a pretexto da infame guerra às drogas, quer como força de desocupação a serviço das grandes incorporadoras de áreas da cidade ocupadas pelos sem-teto, é notório que a PM brutaliza e mata impunemente, sobretudo, jovens trabalhadores negros e pobres, nas periferias dos grandes centros urbanos do país.
A PM – de todas as instituições criadas pela ditadura civil-militar (1964-1986), a única a permanecer intocada pelo regime democrático – reprimiu com extrema crueldade a manifestação do Movimento Passe Livre (MPL) do dia 13 de junho contra o aumento das tarifas do transporte público na cidade de São Paulo. Inadvertidamente, a violência policial ajudou a transformar um estado latente de inquietação social em uma transbordante onda de indignação popular.
Para o Cenedic, não foi difícil concluir que, ao reprimir violentamente o MPL, a polícia comportou-se na Avenida Paulista como faz diuturnamente nos bairros pobres e periféricos de São Paulo. Desnudada pelos jornais, a brutalidade militar exercida sobre uma reivindicação considerada justa pela população despertou na juventude trabalhadora a consciência de “fazer explodir o contínuo da história” (Benjamin).
De protestos contra o aumento das tarifas do transporte urbano, as manifestações passaram a mirar outros alvos, como os gastos com a Copa do Mundo, a qualidade da educação pública e, sobretudo, a precária situação do sistema público de saúde (SUS). Inadvertidamente, os manifestantes insurgiram-se contra a própria estrutura de gastos do governo federal que, por um lado, reserva 42,% do orçamento do Estado para o pagamento de juros e amortizações da dívida pública e, por outro, apenas 4% para a saúde, 3% para a educação e 1%, para o transporte.
Extrapolando os limites do atual modo de regulação conhecido como “lulismo”, as Jornadas de Junho insurgiram-se contra os fundamentos do regime de acumulação predominantemente financeiro que domina a estrutura social do país. Ao fazê-lo, conquistaram um lugar privilegiado na história das resistências populares do Brasil, passando a exigir uma interpretação à altura de seu legado.
Ruy Braga
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Biografia via Revista Fórum: “Filho de imigrantes russos vindos da região da Ucrânia, Sevcenko nasceu em São Vicente, no litoral paulista. Formou-se em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), em 1975, e se dedicou ao estudo da cultura brasileira e do desenvolvimento de cidades como São Paulo e Rio.
Ele se tornou doutor em História Social pela FFLCH-USP e pós-doutor pela University of London em História da Cultura. Lecionou na USP de 1985 até 2012, ano em que se aposentou. Deu aulas ainda na PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e em Harvard, onde ministrava História e Cultura da América Latina e do Brasil.”
Euclides da Cunha e Lima Barreto são os escritores que Nicolau Sevcenko elege como referência para traçar um panorama dos cruzamentos entre história, ciência e cultura no Brasil da passagem do século XIX ao XX, momento que marcou a entrada do país na modernidade, após a Abolição e o advento da República. Num período – a Belle Époque – de negação do passado escravista e de forte espírito cosmopolita, os dois autores vislumbravam na literatura um projeto de país que levasse em conta as contradições históricas brasileiras. Sevcenko mostra que a permanência das obras de Euclides e Lima se deve a esse sentimento de missão – animado por um impulso utilitário de atuação pública -, assim como à inventividade da linguagem que desenvolveram. A reedição atualizada de Literatura como missão, publicado pela primeira vez em 1983, traz um posfácio inédito em que o autor aponta para a contribuição decisiva de escritores, principalmente Machado de Assis, que, ao lado de Euclides da Cunha e Lima Barreto, também traduziram o desacordo entre o conservadorismo do pensamento dominante e a lucidez visionária da literatura.
Orfeu, herói da mitologia grega, era louvado como o celebrante da música, da exaltação e do êxtase coletivo. Neste estudo sobre o impacto das novas tecnologias nos processos de metropolização, Nicolau Sevcenko usa as imagens dos rituais órficos como um emblema. O cenário é a cidade de São Paulo nos anos 20, quando passava pelo boom de crescimento e urbanização que a transformaria numa metrópole moderna. O frêmito das tecnologias mecânicas de aceleração se transpõe para os corpos e as mentes por meio de celebrações físicas, cívicas e míticas no espaço público. O pano de fundo: a Primeira Guerra, as tensões revolucionárias, a explosão da Arte Moderna e o delírio frenético do jazz. Os personagens: a população de um experimento social em escala gigantesca, na busca de uma identidade utópica.
No sétimo e último volume da Coleção Virando Séculos, o historiador e crítico da cultura Nicolau Sevcenko faz uma reflexão lúcida e perturbadora sobre a passagem para o século XXI. Tomando uma viagem de montanha-russa como sua imagem e inspiração básicas, Sevcenko avalia essa transição como um processo de aceleração contínua, impulsionado pela aplicação dos conhecimentos científicos na criação de novas tecnologias. Iniciado com o desenvolvimento de poderosos recursos energéticos, como a eletricidade e os derivados de petróleo, esse processo atinge um clímax no momento atual, com a revolução microeletrônica e as comunicações por satélite e cabos de fibra óptica. É como se no início do século XX tivéssemos embarcado numa montanha-russa e agora, na entrada do novo século, fôssemos apanhados pela vertigem do loop. Essa aceleração, que é excitante, é também inconseqüente: vai aumentando as desigualdades entre os grupos e sociedades, multiplicando crises e violências e ameaçando o equilíbrio ambiental. Mas Nicolau Sevcenko mostra também que, no limiar do século XXI, surge uma nova geração disposta a lutar para que as prioridades desse mundo globalizado se voltem para os homens, a natureza e a solidariedade.
– Robert Mandrou – Magistrados e feiticeiros na França do século XVII (tradução). São Paulo, Perspectiva, 1979.
– A Revolta da Vacina, mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo, Brasiliense, 1983; Scipione, 1993. Download e-book: http://bit.ly/1v29xVo.
– Lewis Carrol – Alice no país das maravilhas (tradução). São Paulo, Scipione, 1986.
– O Renascimento. São Paulo/Campinas, Atual/ Ed.da UNICAMP, 21.a ed., 1995.
– Primeira Página, Folha de São Paulo, 1925-1985, São Paulo, Gráfica da Folha de S. Paulo, 1995.
– Arte Moderna: os desencontros de dois continentes. São Paulo, Fundação Memorial da América Latina, Coleção Memo, Secretaria de Estado da Cultura, 1995.
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ENTREVISTA NO PROGRAMA PROVOCAÇÕES, DA TV CULTURA:
Quando eu amanheço, é sob o céu de Van Gogh que me pinto flor. Quando entardeço sou nuvem (Toda azul). Pincelada por dentro, eu ardo de um amarelo-ouro: Há sempre uma cor pra cada pedaço de nós.