“Há um vínculo secreto entre a lentidão e a memória, entre a velocidade e o esquecimento. (…) Na matemática existencial, essa experiência toma a forma de duas equações elementares: o grau de lentidão é diretamente proporcional à intensidade da memória; o grau de velocidade é diretamente proporcional à intensidade do esquecimento.” MILAN KUNDERA, A Lentidão
História Real, como cansou-se de frisar, é um filme que destoa bastante do restante da filmografia de David Lynch: nenhuma bizarrice, aberração, perversão sexual, confusão psíquica, extravagância obscena ou vilão cafajeste têm lugar neste sereno e comovedor road movie caipira. Nenhuma ruptura brusca na linearidade tranquila aparece para complicar um enredo que flui adiante como um riacho num suave declive. Nenhuma tentativa de borrar os limites entre o onírico e o real, o objetivo e o subjetivo, a sanidade e a insânia.
A obra parece representar um daqueles momentos no percurso criativo de um grande artista em que a vontade de inovar e surpreender sossega, suas ambições tornam-se mais modestas e os recursos de que lança mão, mais simples. Ornamentos e floreios são preteridos em prol da singeleza sem sinuosidades. É como quando Bob Dylan encontra seu remanso, após a chapada salada surrealista-beatnik-dadá de Highway 61/Blonde On Blonde, na mansidão de Nashville Skyline.
O clima de pesadelo aflitivo e confuso que impregna um Cidade dos Sonhos ou A Estrada Perdida está completamente ausente desta crônica amena e benevolente da jornada de Alvin Straight pelo interior americano em seu cortadorzinho de grama. Algo nos belos olhos azuis e na barbicha branca de Richard Farnworth conquista de imediato qualquer espectador com uma capacidade mínima de empatia. Este é um personagem que ganha nosso afeto com uma facilidade espantosa. Que virtudes são estas, que emanam de sua expressão como uma aura angelical? Como pôr em palavras o que faz deste velhinho uma criaturinha tão amável quanto um vovô querido que ainda não tínhamos conhecido? Talvez a franqueza tranquila, a abertura espotânea, o espanto ingênuo no olhar, a delicadeza e a afabilidade nos modos, a facilidade na confiança… Eis um homem que jamais considerar qualquer ser humano como indigno de se tornar seu confidente.
Para Alvin Straight, um desconhecido é só um amigo que ele ainda não fez. E o filme de Lynch não tem poucas simples mas comovedoras provas de solidariedade e amizade entre pessoas que acabaram de se conhecer, mas que não demoram a se afeiçoar.
Sua viagem pelas estradas da América não deixa de ser também uma viagem pelos trilhos da memória. Ao acaso de seus encontros, ele faz confidências e rememora traumas (por exemplo: matou por acidente um aliado na II Guerra Mundial…), desvelando os motivos de sua extravagante epopéia: o desejo de fazer as pazes com um irmão com quem está brigado há uma década.
É uma viagem realizada com uma lentidão premeditada e escolhida: pois de que valeria viajar sem ter tempo para contemplar as estrelas ou assar salsichas à beira da fogueira? O que pode surpreender o espectador contemporâneo, especialmente se este vive em meio ao frenesi de uma metrópole e jamais conheceu a morosidade da roça ou do sertão, é o fato de Alvin parecer incapaz de entediar-se. A vagarosidade de seu veículo-tartaruga, que faria qualquer um de nós amaldiçoar a chatura da viagem, é algo que ele enxerga com benevolência: pode, assim, observar melhor a paisagem, conhecer gente pelo caminho, sentir na face a brisa suave…
Este é o road movie do common folk, mais próximo de uma novela de John Steinbeck ou William Faulkner do que d’um exercício artaudiano de mergulho nos recantos mais obscuros da psique humana, aventura tão tipicamente lynchiana… But then again: The Straight Story é um Lynch bem atípico, e talvez por isto mesmo tenha um sabor tão especial…
Não se trata tanto de uma afoita correria na direção de um parente adoentado em apuros, necessitado de auxílio. O que parece mover Alvin nesta estrada, mais que os 12 galões de gasolina que ele carrega em seu tosco trailer, é a vontade de pacificar um relacionamento humano gangrenado por uma longa e lenta ferida — tão longa a ferida, talvez, quanto a estrada. É mais um ajuste de contas com seu próprio passado que este velho homem decide empreender ao sentir a morte roçar pelo irmão. A jornada é aquilo que se segue à tomada de consciência de que o fim se aproxima, que o falecimento do irmão é iminente e que logo será tarde demais para a reconciliação.
Há feridas que, se não cicatrizadas em seu devido tempo, irão sangrar até a morte. Alvin Straight viaja em busca da cicatrização, e carregando consigo a vontade de paz e de saúde, por mais tardia que se faça. Ele é um homem que aprendeu que diante de uma tumba que se abre, é difícil (e muito tolo…) manter-se aferrado a ressentimentos mofados e mágoas ancestrais. Alvin viaja com a bandeira da paz hasteada em seu coração. Alvin viaja na lentidão daquele que opera, conforme os quilômetros são transpostos, uma cirurgia nos tumores da memória.
Quando ele atinge seu destino, Lynch é tão discreto e singelo quanto foi o filme todo. Não apela para a verbosidade de um longo diálogo, para o sentimentalismo de um banho de lágrimas ou para o comovimento fácil de um abraço amigo. Encerra sua obra com o simples reconhecimento, da parte do irmão, da beleza de um gesto. Gesto de quem preferiu o perdão à mágoa, a serenidade ao ressentimento, a fraternidade à cisão. Nunca um combalido cortador de grama, judiado depois de uma viagem matadêra, foi um símbolo tão comovente de uma intenção benévola de superação do ódio e consumação da reconciliação. E sobre eles, irmãos enfim reunidos, à sombra do fim, na água fresca do perdão, milhares de estrelas observam, silentes, os estranhos carroséis dos corações humanos…
Originalmente publicado em Cinephilia Compulsiva, Dez 2010
https://cinephiliacompulsiva.blogspot.com/2010/12/straght-story-david-lynch-1999.html#comment-form
Publicado em: 17/01/25
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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