O fim dos anos 60 foi um período altamente tumultuado e zicado pros Rolling Stones. Em junho de 1969 é anunciado que o guitarrista Brian Jones, membro fundador da banda e uma das maiores forças criativas do do grupo, havia abandonado o barco.
Após haver perdido seu papel de liderança com a progressiva colaboração de Jagger e Richards na composição, e depois de ter tomado um pé na bunda de sua namorada Anita, Jones acabou deslizando para um estilo de vida repleto de bebedeiras, pílulas e auto-piedade. Não houve alternativa senão despedi-lo.
No dia 2 de Julho do mesmo ano, pouco após sua demissão, o cadáver de Brian Jones é encontrado numa piscina em sua casa interiorana em Sussex com suspeitas de óbito por overdose – ainda que esta morte precoce esteja envolvida em enigmas até hoje. Ele faz assim sua entrada fatal no Clube dos 27 e os Stones sentem seu mundo encharcar de sangue. Poderiam ter se calado, mas fizeram música deste sangue. Música imorredoura.
Mas não foi só. No mesmo 1969, Mick Jagger e sua namorada Marianne Faithfull tinham sido presos pelo Esquadrão de Drogas Britânico em sua casa em Chelsea por posse de maconha, ocorrência descrita em caracteres garrafais em jornais londrinos como o Daily Mirror. O problemático casal foi libertado sob fiança, mas a reputação do parzinho excêntrico ficou permanentemente manchada. No livro de Philip Norman, a relação dos dois serve quase como piada: “Marianne, uma verdadeira intelectual, assumiu a tarefa de educar Mick, apontando a ele que livros ler, apresentando-o ao teatro, à ópera e ao balé, enchendo sua casa em Cheyne Walk com antiguidades. ‘Olha pra essa coisa!’, Mick iria exclamar, apontando para um chandelier. ‘Seis mil paus por uma porra de uma luz!’ Já a jornalista Gina Richardson diria sobre o casalzinho: “Eles pareciam duas crianças deixadas no comando do casa enquanto os adultos tinham saído”. Além da desventura canábica de Jagger e Faithfull e da morte de Jones (este também já havia ido para na delegacia algumas vezes por posse duns baseados), os Stones também tinham amargado, no ano anterior, um fracasso audiovisual. Em 1968, a BBC gravara um especial de Natal com a banda, o The Rolling Stones Rock and Roll Circus, contando com as presenças ilustres de John Lennon e Yoko Ono, The Who, Jethro Tull, Taj Mahal e Ken Kesey – sem falar no cast coadjuvante de domadores de leão, palhaços e malabaristas. Sucesso garantido, certo? Que nada. O programa não vai ao ar e permanece inédito por décadas.
https://www.youtube.com/watch?v=UOMrQqx-my8Bandas já sobreviveram à perda de membros-chave, a problemas com a justiça por causa de entorpecentes e a projetos extra-musicais fracassados, mas os Stones tiveram que lidar com ainda outros contratempos e desventuras além destes. Num festival de rock no autódromo de Altamont (Califórnia), em dezembro de 1969, a coisa ficou ainda mais feia. “Can one death destroy a dream?”, pergunta-se Mark Paytress ao escrever sobre o ocorrido – e responde que sim, uma morte é capaz de estragar todo um sonho, especialmente quando ela ocorre no reduto hippie de São Francisco, nos anos finais do movimento flower power, quando os Beatles estavam prestes a se separar (com Lennon dizendo, melancólico, the dream is over…) e a “família” de Charles Manson estava espalhando por aí o sangue e as vísceras – inclusive de estrelas de Hollywood como Sharon Tate, a esposa de Roman Polanski, assassinada grávida.
https://www.youtube.com/watch?v=vRQaqmP7QGYO festival de Altamont, programado para ser um mini-Woodstock, foi um sonho fracassado. Estavam escalados todos os “aristocratas da Costa Oeste – Jefferson Airplane, Grateful Dead, Santana, CSN&Y e os Flying Burrito Brothers”. Mas o grupo de motoqueiros encrenqueiros dos Hell’s Angels (tema de um livro famoso de Hunter Thompson), contratados para realizarem a segurança do evento, colocaram tudo a perder com um comportamento truculento e violento. Até o vocalista do Jefferson Airplane apanhou. O headliner Grateful Dead, quando ficou sabendo do clima que ali vigorava, virou as costas e se foi. Os Stones, valentes, subiram a um palco após longo atraso, frente a um público irritado e quase em estado de combustão – o cheiro de pólvora parecia pairar no ar. Ao som de “Under My Thumb”, ocorre o assassinato de um jovem negro da platéia pelos Hells Angels, a poucos metros do palco, sob o olhar horrorizado de Mick Jagger – caso registrado para a posteridade no excelente documentário Gimme Shelter. Essas tragédias seguidas tiveram um efeito terrível sobre Keith Richards e foi nesse período que ele aumentou seu consumo de heroína. O décimo álbum dos Stones, Let It Bleed, sucessor de Beggars Banquet, continha ainda gravações realizadas com Jones, mas já contava com a presença do guitarrista substituto Mick Taylor, jovenzinho inocente de 20 anos de idade que antes tocava com o bluesman John Mayall e que entrou para a banda garantindo que não bebia, não fumava e era um vegetariano macrobiótico. A questão de saber se prosseguiu tão careta e natureba depois de ter entrado para a maior banda de rock and roll do mundo está em aberto. https://www.youtube.com/watch?v=RbmS3tQJ7OsQuando Mick Jagger iniciava o disco já a pleno vapor com um dos maiores clássicos da banda, “Gimme Shelter”, berrando no refrão que “a guerra, crianças, está só a um tiro de distância”, parecia fazer uma referência não só à Guerra do Vietnã, que dominava então os noticiários, como às próprias experiências sangrentas que tinham presenciado de cima do palco. Apesar de não estar nada impregnada do espírito otimista e florido dos hippies, a música acabava soando quase otimista quando Mick, modificando o refrão da música, dizia que “o amor, crianças, está só a um beijo de distância”, quase como se dissesse à juventude, antes de Lennon: make love, not war. Na sequência, fizeram uma releitura primorosa de um velho blues de Robert Johnson, “Love in Vain”, sagrando ainda mais um dos bluesman mais revividos por bandas do rock clássico – foi gravado também pelo Led Zeppelin, Eric Clapton e, mais recentemente, White Stripes. Keith Richards estreava nos vocais em “You Got The Silver”, se bem que longe de soar tão poderoso e carismático quanto o inigualável cantor que é Jagger – e que tanto encantou, com suas performances, uma gênia nascente da contracultura punkrocker, Patti Smith, que tanto bebeu na fonte dos Stones. https://www.youtube.com/watch?v=ryRDcE2sB2Ahttps://www.youtube.com/watch?v=Ef9QnZVpVd8O disco fechava com a canção épica, explosiva, “You Can’t Always Get What You Want”, uma espécie de companion piece para o hit anterior da banda “I Can’t Get No Satisfaction”, com um endiabrado Jagger, auxiliado por cantoras gospel, voltando a cuspir com raiva sua insatisfação. Poucos discos na história possuem uma música de entrada e uma música de saída tão poderosas e cruciais quanto Let It Bleed. E poucos possuem um “miolo” tão consistente conectando-as. Sobrevivendo aos duros tempos ao fim da década de 60, os Stones entrariam na nova década, após a dissolução dos Beatles, quase incontestes em seu status de maior banda de rock and roll do mundo – o Led Zeppelin, que acabara de iniciar sua carreira, ainda era uma fresca novidade que não ameaçava este Monstro Róquico mais que consolidado que eram os Rolling Stones. Livres da concorrência invencível vinda de Liverpool, os Stones se sentiriam mais relaxados em sua posição privilegiada – e não fariam feio entrando nos anos 70 com dois álbuns igualmente clássicos, Sticky Fingers (1971) e Exile On Main Street (1972). Tinham chegado ao topo da montanha e olhavam lá de cima todas as outras bandas de rock do mundo, que dali em diante passariam a tentar galgar os degraus para alcançá-los lá, on top of the world. Os Stones deixaram sangrar uma década que se acabava ao som de tiroteios no Vietnã, barricadas em Paris, sonhos acabando-se em meio à ampliação de consciência via lisergia que se disseminava. Mais do que um dos melhores álbuns de rock and roll já feitos, de uma musicalidade fascinante e dotado de uma rítmica tão pulsante que assegura a sobrevida destas canções na posteridade, Let It Bleed é um documento histórico, um testemunho do quanto a Arte é capaz de encapsular sua época.
Eduardo Carli de Moraes
Para A Casa de Vidro
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Publicado em: 26/08/21
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
Excelente texto! Quando mais novo eu não gostava muito desse album em específico, hoje é um dos que mais escuto dos Stones, juntamente com o mais que único Voodoo Lounge!
Vida longa ao rock n roll! Vida longa aos Stones!
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia
Gabriel
Comentou em 15/12/21