“Nought’s had, all’s spent,
Where our desire is got without content.
It’s safer to be that which we destroy
Than by destruction dwell in doubtful joy.”
LADY MACBETH
As tragédias de Shakespeare sempre tem um motor diabólico que põe a rodar a máquina de fazer jorrar sangue… Em Otelo, é o ciúme, infundado e furioso, desgraça de Desdêmona e do mouro de Veneza. Em Rei Lear, a demência senil que acomete o monarca e ameaça de desintegração a Grã-Bretanha. Em Romeu e Julieta, a velha rixa de famílias entre os Montecchios e Capuletos, que impossibilita o enlace pacífico dos enamorados pombinhos. Em Hamlet, a vingança exigida do príncipe contra o usurpador do trono, o descarado regicida…
Exímio conhecedor dos vícios humanos e das precipitações na catástrofe causadas por eles, Shakespeare pariu em Macbeth a insuperável tragédia da ambição. Como tudo em Shakespeare, esta ambição do casal Macbeth é desmesurada. E, como tudo em desmesura, ela desregra e dana.
Não há novidade alguma, para quem já se familiarizou com o universo shakespeariano, no apelo à violência nas altíssimas escalas da nobreza e da corte, em que pessoas tão frequentemente são cegadas por uma “thriftless and vaulting ambition” e usam a força bruta ao invés da delicadeza diplomática. Mas Macbeth escancara, como poucas obras de arte que conheço, o quão sanguinário pode tornar-se um tirano ébrio de vontade-de-poder que, à maneira de um vampiro, quanto mais sangue bebe, mais se embriaga e mais sangue derrama… Nietzsche deveria ter sido mais lúcido ao fazer o elogio da “vontade de potência” sem temperá-la com a necessidade da sensatez e da temperança. Macbeth is the will-of-power gone wild.
Há algo de muito podre no reino da Escócia. “Have we eaten on the insane root that takes the reason prisoner?”, pergunta-se Banquo. Sim: alguém andou mordendo raízes de insânia… A paixão pelo trono, a fascinação pela coroa, faz com que Lady Macbeth e seu esposo mancomunem-se para assassinar o Rei Duncan. Espertalhões, concebem um jeito de culpar os servidores-“proletas” pelo crime: velho estratagema daqueles que desejam alçar-se ao topo sem revelarem que têm as mãos sujas de sangue… blame it all on the poor! Pensam ser capazes de dissimular suas culpas, esconder a carne humana que trazem entre os dentes, como lobos famintos após o banquete carnívoro, fazendo pose de cordeirinhos…
Mas sabem eles que mancharão para sempre seus corações tão brancos?…
Antes do crime, Macbeth implora às estrelas que se escondam e não espiem o ato grotesco de traição que está prestes a perpetrar: “Stars, hide your fires; let not light see my black and deep desires!” Depois do crime (“I have done the deed…”), vai progressivamente descobrir que a mancha não é fácil de lavar, ao contrário da ingênua medicina sugerida por Lady Macbeth: “a little water clears us of this deed…”.
Não, Lady Naive! Nem todos os oceanos reunidos seriam o suficiente para apagar este sangue das retinas e da memória daquele que o derramou! Macbeth não saiu incólume do ato: assassinou seu próprio sono (“Macbeth does murder sleep, the innocent sleep…”). E descobriu que para esconder um homicídio será preciso cometer muitos mais. E que todo homem assassinado tem aqueles que o amavam e que prometem vingá-lo. A tirania não tarda em despertar a revolta. A revolta não demora em desaguar na guerra. Da ambição indivual à catástrofe coletiva, há só um mísero passo, que homens políticos irresponsáveis não cessam de dar, para desgraça de todos. Em sua peça mais heavy metal, Shakespeare não poupa nas tintas ao descrever as podridões de seu Macbeth, recorrendo às vezes a frases quase cômicas de tão exageradamente tétricas: “Not in the legions of horrid hell can come a devil more damned in evils to top Macbeth…”.
A única coisa desencadeada pela violência é mais e mais violência, assim como toda mentira simples gera um séquito de mentiras necessárias para sustentar a mentira primeira, numa espiral infernal que só sossegará quando os campos de batalha, entulhados de corpos, exigirem uma troca de regime…
Mas seria muito raso fazer de Shakespeare um moralistinha a dizer que “o crime não compensa” e que há sempre um castigo para todo ato imoral. O que o gênio shakespeareano nos mostra, na verdade, são as complexas maquinações do afeto humano que conduzem ao desregramento sanguinário, às barbaridades passionais, descrevendo na sequência as inelutáveis consequências concretas, tanto no dilacerado mundo subjetivo quanto no domínio sócio-político, destes grandes crimes.
E se as páginas de Shakespeare estão tão repletas de sabedoria é pois ele conheceu a fundo o maligno. Sabe muito bem que a intemperança foi a desgraça de muitos reis: “boundless intemperance in nature is a tyranny; it has been the untimely emptying of the happy throne and fall of many kings…” (p.304). E conhece muito bem os efeitos corruptores do poder absoluto para os escrúpulos morais do sujeito, como a seguinte confissão de Malcolm, quando imagina-se alçado ao trono, mostra tão bem:
“…were I king, I should cut off the nobles for their lands,
Desire his jews and this other’s house;
And my more-having would be as a sauce
To make me hunger more; that I should forge
Quarrels unjust against the good and loyal,
Destroying them for wealth.
(…)
Had I power, I should
Pour the sweet milk of concord into hell,
Uproar the universal peace, counfound
All unity on earth.”
ACT IV, SCENE III
Thom Yorke, em um verso de “Paranoid Android”, transmitiu uma idéia semelhante: “When I am king… you will be first against the wall”. E Grace, ao final de Dogville, dá um chocante exemplo de quão genocida pode tornar-se o poder absoluto oferecido a um sujeito ressentido e ansioso por uma sádica represália. Se há uma conclusão clara a tirar, me parece, é que a percepção de que o poder corrompe é uma ótima razão para que o poder seja dividido, pulverizado, exercido em conjunto e em comunidade, anulando todos os terrores tão conhecidos do “Absolutismo”.
Mas nem todos os aspirantes a reis são tão transparentes quanto Malcolm (ou Yorke) no reconhecimento dos horrores que cometeriam se tivessem em uma posição de poder tão alta que a impunidade fosse quase certa. Macbeth, um dos “vilões” mais sombrios de Shakespeare, nos dá calafrios por lançar-se neste turbilhão fatal da ambição sem a mínima lucidez. Não prevê a própria desgraça e se fia em duvidosas profecias benévolas de bruxas brincalhonas. Quando o exército inglês está prestes a derrubá-lo de seu trono manchado de sangue (para usar a expressão que batizou a adaptação de Kurosawa….), ele enfim percebe que fez tudo em vão e que não escapará do castigo da História.
Num dos monólogos mais célebres de Shakespeare, o tirano sanguinário, às beiras de ser destronado, concebe a vida como nada além de “uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, e significando nada…”. É Macbeth falando, não Shakespeare. Este, imagino eu, era sábio demais para assinar embaixo deste desolador niilismo, e talvez sugerisse que são os turbilhões e torvelinhos do coração humano que enchem de fúria e confusão a silente canção cósmica… Nós, estas breves velas que queimam tão efêmeras, que incêndios não causamos! Incêndios de paixão sobre o lombo de um planeta majestosamente sereno em sua indiferença perfeita, que rodopia ao redor do Sol sempre em harmônica órbita, por mais escandalososamente desarmônicos que se tornem os descalabros humanos…
“Tomorrow, and tomorrow, and tomorrow,
Creeps in this petty pace from day to day
To the last syllable of recorded time,
And all our yesterdays have lighted fools
The way to dusty death. Out, out, brief candle!
Life’s but a walking shadow, a poor player
That struts and frets his hour upon the stage
And then is heard no more. It is a tale
Told by an idiot, full of sound and fury,
Signifying nothing.”
MACBETH
ACT V. SCENE V.
Publicado em: 01/03/11
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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