Se as árvores pudessem gritar, ao serem transpassadas por motosserras, talvez soassem como Mark Lanegan cantando um grunge? Aos 57 anos, um dos mais expressivos cantores do rock alternativo contemporâneo – uma espécie de Tom Waits do cenário de Seattle? – calou-se para sempre neste 2022.
Com sua voz rouca, soturna e encharcada de uísque, Lanegan foi um cantor ímpar, alguém cuja desaparição também encarna um senso de desespero e agonia que sua voz veiculava como poucos. Encontrou enfim a Sweet Oblivion – o “doce esquecimento” de todas as agruras e dissabores da existência – e que foi a expressão com a qual este artista imenso batizou uma das obras-primas da música do anos 1990.
Como informou o UOL: “Mark Lanegan lançou em 2021 o livro ‘Diabo em Coma’, em que conta a sua trajetória e relata a luta contra a covid-19. Após ser infectado, o artista relatou em comunicado à imprensa que chegou a ficar ‘completamente surdo’ e entrou em coma várias vezes durante o tratamento contra a doença.
Para além de seus problemas de vícios e rehabs, após infectar-se com a covid19 e sofrer efeitos como a surdez quase completa, o líder dos Screaming Trees – que foi um delinquente juvenil antes de encontrar seu espaço no explosivo cenário artístico catapultado ao mainstream pelo estouro de Nevermind em 1991 – deixou a companhia dos vivos. Uma vida sofrida e uma obra que nos assombrará por muito tempo são alguns dos ecos de Lanegan que entre nós ressoam.
Lanegan emprestou seu vozeirão de timbre gutural também a 11 discos-solo (alguns em parceria com Isobel Campbell, do Belle & Sebastian) e colaborou em grupos como: Mad Season (em que dividiu os vocais com Layne Stanley do Alice In Chains); Queens of The Stone Age (sua relação com Josh Homme remete à época de dissolução do Kyuss e de formação do Q.O.T.S.A.), Gutter Twins (em que somou forças com Greg Dulli dos Afghan Whigs), Soulsavers, dentre outros. Em seus últimos anos de vida, dedicou-se à escrita de livros memorialísticos: Sing Backwards And Weep e Devil in a Coma.
Na imprensa, em reportagens e videocasts, necrológios vem relembrando a trajetória do artista, com frequência destacando a amizade colaborativa que o uniu a Kurt Cobain; muito se têm frisado sobre toda a carga de culpa que Lanegan carregou por ter comprado heroína para Cobain em várias ocasiões, e por não ter respondido às ligações do líder do Nirvana no dia de seu suicídio em 1994 (Leia mais: NME – AMG – New Statesman).
Minha relação com os Screaming Trees remete a uma época pré-Napster onde o acesso a obras de bandas assim era muito mais dificultoso. Na minha adolescência, tendo sido capturado na teia de aranha do movimento grunge, encontrando alguma guarida para minha teenage angst através das obras de Pearl Jam, Soundgarden, Mudhoney, Nirvana etc., acabei descobrindo “as árvores que gritam”.
A banda havia participado da trilha sonora do filme Singles – Vida de Solteiro (1992), de Cameron Crowe, com seu single de maior sucesso, “Nearly Lost You”, carro-chefe do álbum Sweet Oblivion. O estrondo e o rugido dos Screaming Trees sempre me pareceram tão impressionantes que o nome da banda, admiravelmente poético, fazia pensar numa floresta que geme sob a pressão de motoserras desmatadoras. Como se Lanegan estivesse emprestando sua voz a um queixume da natureza oprimida tal qual se manifesta em sua própria carne consciente e angustiada.
Só a memorialística autobiográfica explica meu tesão por este disco. À época, algumas lojas de discos no ABC Paulista, onde minha adolescência transtornada se passou, tinham bons acervos de CDs importados, de incrível raridade no mercado nacional, destinados aos roqueiros aficcionados pelas jóias obscuras que estavam saindo no cenário gringo. Assim conheci, a duras penas, bandas que hoje são minhas prediletas.
Frequentador assíduo das lojas de disco de Santo André, além dos sebos de livros usados que estavam então em processo de franca multimídialização, eu fazia aos 12 anos de idade uma “pesquisa musical” que hoje soa retrô aos internautas, pesquisadores-de-Spotify, “fuçando” nas lojas da Rua Álvares de Azevedo e arredores. Às vezes era preciso pegar o busão – ou melhor, o trólebus que saía da escola em São Bernardo – e ir até um certo local, como a Galeria do Rock em Sampa, onde as pérolas mais raras estavam reunidas.
Foi assim que, um belo dia, deparei com Dust, dos Screaming Trees, valendo na época o equivalente ao preço de uns 3 CDs nacionais (eu estava numa caso de amor com a Trama e tentando comprar com as parcas economias a discografia do Morphine). Namorei Dust por muito tempo antes de poder comprá-lo com a grana que eu, com uns 13 anos de idade, havia economizado ao evitar comer no recreio da escola. Barriga roncando em prol dos deleites da musicofilia.
São 10 canções que compõe este que é um dos álbuns mais fascinantes de toda a Era Grunge, e que pude ouvir e re-ouvir em uma época onde fazia muito mais sentido escutar a uma obra de cabo a rabo e sem interrupções. Antes dos algoritmos que rodam os I.A.s do Spotify e do Deezer, era muito mais costumeiro colocar nosso CD de estimação na primeira faixa e viajar em sua companhia até o silêncio final, numa imersão que Dust recompensa quando a fazemos de maneira recorrente. Este foi, literalmente, um dos discos que mais passei tempo-de-vida escutando e que deixou muitas marcas na memória.
Dust estava destinado a tornar-se um dos discos mais importantes da minha vida. Por razões que são evidentemente eivadas de subjetividade, eu descobri neste CD importado, em sua fisicalidade hoje eclipsada pela digitalização de tudo, um objeto de apego sentimental. Lançado pela EPIC em 1996, o último álbum dos Screaming Trees é uma obra de encantos infindáveis, ainda que não seja exatamente palatável para ouvidos acostumados às popices. Um álbum sublime e atormentado, com uma lírica que espalha um senso de mistério por tudo – music that makes you wonder.
Eu já amava este disco como poucos outros em minha modesta coleção de CDs quando encontrei, nos primórdios da Internet, quando eu comecei a utilizar uma conexão discada sobretudo para alimentar minha musicofilia, alguns camaradas que amavam Dust quanto eu: o portal Dying Days.net – que homenageava uma das lindas canções presentes no álbum – foi talvez a primeira revista eletrônica devotada ao cenário grunge. Atando diálogo com seu fundador, Fabrício Boppré, comecei – muito tempo antes de ter um diploma de jornalista – a escrever para lá sobre alguns dos artistas que eu mais curtia – Jeff Buckley, John Frusciante, Teenage Fanclub, …And You Will Knows Us By The Trail of Dead e, é claro, os Screaming Trees.
Os primeiros adjetivos que me ocorrem para falar sobre o disco Dust são injustiçado e subestimado – no período em que foi lançado, já vivíamos sob a inundação de bandas, muitas delas caça-níqueis, rotuladas de pós-grunge. O grunge autêntico e excêntrico dos Trees acabou ignorado diante do fuzuê que faziam no mainstream o Bush, o Silverchair, os Stone Temple Pilots, os Nixons…
Trata-se de um álbum de alta carga poética, que remete aàs magnum opus do Echo & The Bunnymen nos anos 1980, como Ocean Rain e Porcupine. O croon de Lanegan se assemelha ao de Ian McCullogh, mas com uma guturalidade que remete a Tom Waits e uma capacidade de traduzir afetos de angústia em piercing wails que tornaram Lanegan um dos poucos cantores que Cobain podia sentir como uma Psiquê-irmã.
Não se compreende o Nirvana, o jeito de Kurt cantar, sem compreender o fascínio que Lanegan exercia sobre o amigo. Mais do que estarem simplesmente ripping off the Pixies, os caras do Nirvana estavam também investindo pesado em poéticas insurgentes, em expressão de afetos extremadamente intensos, numa “escola” que inclui os Screaming Trees e o Echo & The Bunnymen, mas que certamente tem predecessores desde os anos 1960, com os Doors e com Janis Joplin.
Dust começa falando sobre “vestir um halo de cinzas” (“Halo of Ashes”), mencionando uma garota espectral que fascina o eu-lírico. Diante de sua musa, Lanegan derrama poesia sobre promessas juradas e não cumpridas (“Sworn and Broken”), sobre andar na ghosttown que costumava ser sua cidade (“Dying Days”), sobre “deixar este mundo para trás” (“Make My Mind”). Era difícil dizer exatamente sobre o quê eram as canções, mas a imersão afetiva que o álbum nos permitia acachapava pela intensidade de uma roller coaster ride que tem em “Witness” um auge de voltagem:
Esta música sempre exerceu um fascínio sombrio sobre mim desde que a descobri. A mais “Nirvanesca” das faixas de Dust insiste nas imagens do testemunho e da solidão. De algum modo, Lanegan parece estar explorando suas angústias religiosas através da canção da qual emanam luzes solitárias: “shine your lonely light on me / I’ll be there to hold the mirror / I can take you down with me / Show you’re lonely lonely lonely.”
Como cantor, Lanegan também se insere na tradição blueseira, tendo se tornado um mestre ímpar na arte de entoar sorrowful tunes. Seu álbum I’ll Take Care Of You, de covers, é um dos melhores exemplos do vínculo de Lanegan os folksters e blueseiros como Tim Hardin, Skip Spence, Syd Barett. Em Dust, esta veia folk-blueseira aflorou fortemente na trinca de canções que encerra: “Traveler”, “Dime Western” e “Gospel Plow”.
Porém, as melhores são aquelas em que o power-pop faz os Screaming Trees atingir o estrondo palatável que notabilizou Nirvana e Pearl Jam – e é perfeitamente legítimito dizer que, com “All I Know”, “Make My Mind” e “Look At You” a banda fez canções tão belas quanto “Heart-Shaped Box”, “Even Flow” ou “Alive”. É uma beleza torturada, um angústia sublime, que torna Dust uma morfina musical, uma heroína sônica, que nos deixa entrever as trevas e delícias que trespassam o homem-árvore, fazendo Lanegan cantar.
Os apóstolos da positividade tóxica adoram silenciar a arte daqueles que desafinam o coro dos contentes, Torquatianamente. Uma voz de lamento de rara expressividade se calou para sempre com a morte de Lanegan. A imensidão de seu legado ainda é sub-reconhecida, e o triste destino post mortem pode muito bem ser a oblivion. Se depender de mim, porém, os Screaming Trees e todos os outros galhos da árvore de Lanegan, seguirão sendo celebrados, as canções retocadas, tocando-nos nos meandos menos iluminados de nossas vidas. Afinal, como diria Samuel Beckett: “When you’re in the shit up to your neck, there’s nothing left to do but sing.” (“Quando você está com merda até o pescoço, não resta nada a não ser cantar.”)
Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, 28/02/22
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Publicado em: 25/02/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
Olá Muito obrigado pelas postagens.
Continue com esse trabalho de divulgar a boa musica.
Nos agradec emos. Luiz
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luiz carlos
Comentou em 04/10/24