Sábado é um romance literalmente extra-ordinário pois relata um dia que se destaca do cotidiano, que destoa do comum dos dias e que pertence à história recente dos movimentos sociais globais: é 15 de fevereiro de 2003 em Londres/UK e mais de 1 milhão de pessoas tomam as ruas manifestando-se contra a iminente invasão do Iraque. Este evento social tão colossal – um dia em que dúzias de cidades, mundo afora, foram tomadas por protestos – é narrado através das consequências sobre o neurocirurgião protagonista do livro e seu círculo imediado de relações.
“McEwan retrata com agudeza um momento em que o impacto dos atentados de 11 de Setembro de 2001 em Nova York repercute na consciência dos ingleses. O escritor vale-se do ambiente impregnado pelo temor de novos atentados para conferir a detalhes triviais do cotidiano uma carga de tensão que carrega o leitor até a última página”, como bem descreve a sinopse da Companhia das Letras. Trata-se, pois, de uma das obras literárias mais impressionantes dentre todas que tematiza o zeitgeist anglo-saxão neste jovem século 21, que teve como seu marco-zero mais espetacular a colisão dos aviões contra o World Trade Center, reduzido a escombros em pleno coração do ultra-capitalismo em Manhattan.
O protagonista de Sábado, Henry Perowne, pertence a uma classe abastada e privilegiada: neurocirurgião respeitado e bem-pago, com um currículo repleto de cirurgias cerebrais bem-sucedidas, dotado de vasto know-how em sua área de especialidade, Henry dirige um Mercedes Benz que custa os olhos da cara, mora numa casa super-protegida por alarmes, cadeados e trancas, e seu hobby predileto é o squash. A pertença à elite econômica e cultural o transforma em uma figura politicamente reacionária, favorável à invasão que as tropas yankees, respaldadas pela Inglaterra, ensaiavam no começo de 2003 contra o regime de Saddam Hussein.
Na primeira cena do romance, sofrendo de insônia, Henry aproxima-se da janela em plena madrugada e testemunha no céu a passagem de um objeto voador que a princípio identifica como uma estrela cadente ou um cometa. Observando por mais um tempo, conclui que é um avião parcialmente incendiado e que se dirige ao aeroporto de Heathrow. A conclusão que o personagem tira é diretamente motivada pelo “clima” emocional do tempo histórico em que vive, onde o pavor de novos ataques terroristas está amplamente disseminado. Henry teme que fanáticos islâmicos tenham sequestrado a aeronave e que Londres esteja sob ataque – em sua nóia, é como se estivesse começando um tenebroso período semelhante àquele em que a Luftwaffe do III Reich dizimava a Inglaterra com ataques aéreos.
Faz pouco tempo que “metade do planeta assistiu aos sequestrados invisíveis sendo carregados pelo céu rumo à carnificina, momento em que agregou uma inédita associação à inocente silhueta de qualquer avião a jato. Todos concordam, os aviões de passageiros, no céu, hoje em dia, têm um aspecto diferente, predatório ou funesto.” (p. 23)
Perowne é um racionalista inglês que preza pela sobriedade científica; formado no darwinismo, fiel aos princípios das neurociências, observa o fenômeno do fanatismo, em especial em suas manifestações terroristas, com repulsa e temor. Insone diante do avião incendiado na noite de Londres, Henry Perowne é assim descrito pela pena de McEwan:
“Se Perowne fosse inclinado a sentimentos religiosos, a explicações sobrenaturais, poderia experimentar a ideia de que está recebendo um chamado; de que, no fato de ter acordado num estado de ânimo incomum e ter ido à janela sem nenhum motivo, ele devia reconhecer uma ordem oculta, uma inteligência exterior, que desejava lhe mostrar ou lhe dizer alguma coisa importante. Mas uma cidade dessa natureza cultiva insones; ela mesma é uma entidade que não dorme e cujos fios nunca param de zumbir; entre tantos milhões de pessoas, tem de haver gente que olha pela janela numa hora em que normalmente estaria dormindo. Ser ele e não um outro é uma questão arbitrária. (…) O pensamento primitivo das pessoas com pendores sobrenaturais resume-se naquilo que seus colegas psiquiatras chamam de (…) um excesso do subjetivo, a ordenação do mundo em conformidade com as necessidades da própria pessoa, uma incapacidade de contemplar sua própria carência de importância. Na visão de Henry, tal raciocínio pertence a um espectro em cujo ponto extremo, erguendo-se como um templo, está a psicose.” (p. 25)
Este personagem, que considera a si mesmo como alguém capaz de apreciação neutra e objetiva da realidade, e que condena o “pensamento primitivo” e impregnado de “subjetividade”, na realidade encarna uma certa islamofobia que parece ter disseminado quase como uma epidemia no pós-11 de Setembro. Neste Sábado, Henry Perowne não irá juntar-se às massas que tomam as ruas clamando pela paz. Henry está horrorizado com a perspectiva de “homens de fé inabalável com uma bomba no salto do sapato” (p. 25) e de certo modo se coloca entre aqueles favoráveis a uma intervenção militar que livre o mundo, ainda que pela força bruta, daquilo que em seu viés são organizações sanguinárias como a Al-Qaeda e regimes genocidas como o de Sadam. Sua opinião é a de que o cerne do problema não é o niilismo dos terroristas, mas sim seu utopismo:
“Os islamitas radicais não são niilistas, de fato – querem ter, na terra, uma sociedade perfeita, que é o Islã. Pertencem a uma tradição condenada, sobre a qual Perowne adota a opinião tradicional – a busca da utopia termina por autorizar toda forma de excesso, todos os meios cruéis, em vista da sua realização. Se todos estão certos de que, no fim, vão ser felizes para sempre, que crime pode haver em massacrar um milhão ou dois, hoje?” (pg. 43)
Já Sadam Hussein aparece-lhe como um pavoroso tirano, líder de um regime criminoso, a ponto de Henry reclamar de modo rabugento contra os manifestantes nas ruas que, vociferando contra a política imperial intervencionista de Bush e Blair, calam sobre os horrores perpetrados no Iraque por Sadam. Para Henry, “os tiranos tem um ar infantil”:
“estendem a mão para pegar o que não podem ter. Quando encontram a frustração, a fúria que massacra os homens não vai tardar. Sadam, por exemplo, não parece meramente um brutamontes de queixo duro. Dá a impressão de um menino crescido em excesso, frustrado, com cara de um garoto emburrado e gordinho, e com olhos pretos um poucos desconcertados diante de tudo aquilo que ele ainda não pode ordenar.” (p. 48)
Henry, que conheceu um professor iraquiano que denunciou-lhe as torturas, as perseguições e a limpeza étnica do regime de Saddam, olha com ceticismo para as multidões que bradam nas ruas contra a guerra, como se o pacifismo, neste caso, equivalesse a aliar-se a um regime que massacra os iraquianos:
“Pela TV, vê imagens de uma infinidade de ônibus com manifestantes, que acorrem à cidade para o que se espera que seja a maior manifestação de protesto jamais vista. (…) Toda essa felicidade em exibição é suspeita. Todos se emocionam quando ficam juntos, nas ruas. Se elas pensam – e podem ter razão – que a continuação da tortura, das execuções sumárias, da limpeza étnica e dos genocídios eventuais é preferível a uma invasão, deviam ter um aspecto mais soturno. (…) Perowne sabe que, quando um império poderoso – assírio, romano, americano – entra em guerra e alega uma causa justa, a história não fica impressionada. Ele também receia que a invasão e a ocupação sejam uma trapalhada. Os manifestantes podem ter razão. (…) Por definição, nenhuma das pessoas que estão agora nas ruas foi torturada pelo regime, ou conhece ou ama alguém que tenha sido, e nem sequer conhece grande coisa a respeito do país, no geral. É provável que a maioria deles tenha tido notícia dos massacres no Iraque curdo, ou no sul xiita, e agora acham que se importam fervorosamente com a vida dos iraquianos. Eles têm boas razões para apoiar suas opiniões, entre as quais contam os receios com a própria segurança. A Al-Qaeda, é o que dizem, (…) vai sentir-se provocada, com um ataque ao Iraque, a vingar-se contra as cidades frágeis do Ocidente.” (p. 78 – 82)
Em suma: Henry Perowne representa no romance uma tomada-de-posição favorável à bélica intervenção ocidental no Oriente Médio e trata com um certo desdém as “maiores manifestações na história das Ilhas Britânicas”, já que, em sua opinião, “em toda a Europa, e no mundo inteiro, as pessoas estão reunidas para exprimir sua preferência pela paz e pela tortura.” Esta postura do protagonista de Sábado, que não adere ao movimento de massas que clama pela paz, não é a única perspectiva individual mais detalhada que Ian McEwan explora em sua livro – felizmente!
Durante a leitura, é importante não cair no erro comum de confundir as opiniões do autor com a de seu personagem: do mesmo modo que não é legítimo a atribuir a Dostoiévski as opiniões de Raskolnikóv sobre o direito que tem um homem “superior” de assassinar uma velha, também não convêm atribuir a Ian McEwan o que pertence a Henry Perowne. O romance oferece um retrato multi-facetado do tempo histórico, dando voz também a um personagem que encarna a essência da mensagem dos manifestantes: trata-se da filha da família Perowne, a poetisa Daisy. Em um dos diálogos mais arrebatados de Sábado, Daisy, excitada com o clamor das ruas, dá um sermão no próprio pai:
“Ele ouve mais uma vez a estimativa das Nações Unidas de meio milhão de iraquianos mortos pela fome e pelos bombardeios, os três milhões de refugiados, a morte das Nações Unidas, o colapso da ordem mundial se os EUA agirem sozinhos, Bagdá inteiramente destruída… os turcos invadirão pelo norte; os iranianos, pelo leste; os israelenses farão incursões pelo oeste, a região toda em chamas, Saddam encurralado, disparando suas armas químicas e biológicas – se as possuir, porque ninguém provou que existam, de forma convincente, e tampouco demonstraram a ligação entre a Al-Qaeda e Saddam – e, quando os americanos tiverem invadido, não vão estar interessados em democracia… vão tirar o petróleo, construir suas bases militares e governar o país como uma colônia.” (p. 199)
Já se vê por este embate, que opõe pai e filha, que Sábado não é veículo para uma verdade única, mas campo-de-conflito entre perspectivas diferentes. E conflito é o que marca também o dia de Henry Perowne, que se envolve em um acidente de trânsito pela manhã que terá consequências graves à noite. No tráfego londrino caotizado pelas manifestações, o Mercedes de Perowne acaba colidindo com o carro de um certo Baxter, arrancando-lhe o retrovisor. Segue-se uma briga-de-rua em que o neurocirurgião apanha de Baxter e depois sai correndo da cena sem pagar pelo estrago no carro alheio – pois estava atrasado para seu jogo de squash.
Este encontro urbano, que poderia ficar sem consequências, pega a família Perowne de surpresa enquanto estão comemorando o reencontro o pai (Henry), a mãe (Rosalind), o filho blueseiro (Theo), a filha poetisa (Daisy) e o avô poeta (John Gramaticcus).
Baxter e um de seus asseclas invade a fortaleza da familiar para tocar o terror: quebra o nariz do vovô, faz com que a filha se dispa (assim revelando uma gravidez que seu pai desconhecia), ameaça a mãe com uma faca no pescoço. Henry havia diagnosticado em Baxter uma doença neurológica e, seduzindo-o com a promessa de uma cura, atrai a presa para o segundo andar, de onde o invasor é tacado escada abaixo, rachando a cabeça na queda.
O dilema ético que Ian McEwan coloca é o seguinte: irá o neurocirurgião, responsável pela cirurgia emergencial sobre o cérebro do homem que invadiu sua casa, agir com toda a probidade e competência? Ou tentará se vingar com o bisturi?
O livro é profundamente marcado pelo ideário das neurociências, pela descrição do ser humano sem nenhum recurso à noção de “alma imortal”, mas sim aos hormônios, aos genes, aos DNA e ao RNA, numa postura do protagonista que seria possível batizar de determinismo genético: Henry Perowne explica o ser humano sempre partindo de seu “hardware” cerebral-neuronal, ainda que saiba da imensa complexidade disto que cada ser humano, cada “máquina biológica”, carrega em seu crânio.
É um livro marcado pelo “assombro diante do fato de um bolo molhado poder criar esse radiante cinema interior, feito de pensamento, de visão, de som e de tato.” (270) E uma das grandes questões filosóficas que convida o leitor a se colocar é: “Será que algum dia se conseguiria explicar como a matéria se transforma em consciência?” (270)
Trata-se, portanto, de um romance em que Ian McEwan, para além de retratar uma das maiores manifestações de massa do século 21, tenta penetrar nos meandros da “mentalidade científica” no conturbado mundo contemporâneo, encarnando-a em um personagem imperfeito e cheio de ambiguidades, como fez também ao dissecar, no brilhante Solar, com sagacidade e sarcasmo, a figura do Mr. Beard, e como fez no menágê-à-trois transhumano no centro do impressionante Máquinas Como Eu. Há poucos escritores vivos com tal maestria na arte de fazer confluir o pessoal e o político, o familiar e o social, a ciência de ponta e o obscurantismo, dando a pensar ao mesmo tempo que não descuida de emocionar.
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Publicado em: 21/07/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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