por Eduardo Carli de Moraes
Só se pode aprender a nadar indo pra longe da bóia. De modo análogo, cada vez mais me convenço que a música só se aprende no processo de um fazer (e refazer) sempre imperfeito e mutante: só expande-se a musicalidade assumindo o risco das práticas em que vamos pra longe das zonas de segurança e conforto.
“Para se conquistar uma língua, é preciso curiosidade, vontade, garra e motivação. Com a língua da harmonia não será diferente. Aprende-se a nadar bebendo água, a andar de bicicleta levando tombo, a dirigir carro derrubando portão, a tocar acordes certos tocando os errados.” (GUEST, Ian. Harmonia: Método Prático, Volume 1)
É por isso que me classifico hoje como um imperfeccionista e um errorista, para seguir o rastro de dois tão diferentes mas tão venerados mestres: Ian Guest e Anita Tijoux. Errorismo, como o entendo, é ter a coragem de errar, ao invés de acomodar-se no conforto do “não fiz então não errei” – na verdade, não fazer já é errar. Ou seja, o único vício realmente grave que cometemos contra a música, como uma adaga em seu coração e uma porta fechada à sua presença em nossas vidas, é não tocá-la, não fazê-la, não ajudá-la a uma eterna renascença (enquanto duremos nós, humanos-músicos). É também o espírito do lema Beckettiano: “Sempre tentei. Sempre fracassei. Não importa. Tento de novo. Fracasso de novo. Fracasso melhor.”
Já na filosofia grega da antiguidade, tão mergulhada em debates sobre a ‘paidéia’, um ensinamento famoso enunciava: “É fazendo que se aprende a fazer aquilo que se deve aprender a fazer.” (Aristóteles) Por que com a música, idioma complexo e sempre em mutação, seria diferente? É ralando nos instrumentos, molhando de suor as cordas e de cuspe os bocais, é deixando os tambores espancados sem dó que vamos, de erro em erro, aprendendo a errar melhor.
As dicas do mestre húngaro-brasileiro Ian Guest (nascido em Budapeste) me parecem válidas não só para harmonia, melodia e ritmo, mas para tudo na vida: nesta Estrada-Escola da vida, a gente aprende nas feridas, tem nas cicatrizes professores, nos tombos aprendizados essenciais apesar do sangue derramado. E pobres de aprendizado são aqueles que não ousam fazer nada por medo de se ferir ou de perder: “Olha lá, quem acha que perder / É ser menor na vida / Olha lá, quem sempre quer vitória / E perde a glória de chorar”, como cantam os Los Hermanos em “O Vencedor”. Quem, por medo de errar, desiste de tentar fazer, perde assim a chance de, em meio a sangue e lágrimas, aprender algo a contento. Todo mestre é um perdedor resiliente, um errorista contumaz.
Venho pensando cada vez mais que, no que diz respeito ao aspecto rítmico (num sentido muito mais amplo do que o meramente musical), no quão crucial é lançar-se no batuque de maneira a um só tempo supra-racional e intuitiva, mas também em estado de contemplação dos ritmos micro e macro que nos habitam e que nos rodeiam. Me explico: saber escutar os ritmos do corpo e os ritmos do cosmos, colocá-los em sinergia, usando nossa existência como instrumento em que as rítmicas tão maiores e as rítmicas tão menores do que nós possam se manifestar.
Gosto muito daquele spoken word em que, após dizer que é tanto um estudante quanto um professor (ou seja, há uma união e não uma disjunção das figuras do mestre e do pupilo), DJ Shadow diz: “the music is coming through me”. É algo que destaca bem o caráter do artista musical enquanto médium de uma rítmica que o atravessa, que o perpassa, que passa através de seu corpo-em-ato.
Corpo este que vai e se manifesta em movimento. Não consigo quantificar ou mensurar o quanto aprendi nas horas que passei, em manhãs e madrugadas, com a consciência sóbria ou alcoolizada, com os sentidos caretas ou ganjados, a deixar-me perpassar pelas criações rítmicas impressionantes deste grande álbum que é EndTroducing… DJ Shadow. Uma porta que se abriu e através da qual descobri também outras músicas que adoro: Nightmares on Wax; Four Tet; Poets of Rhythm; etc.
Ainda que muitos de nós, na maior parte do tempo e numa ampla gama de espaços, sejamos surdos e desatentos aos fenômenos rítmicos, a verdade é que o ritmo perpassa, atravessa e marca presença em nosso mundo de maneira que é ele – e não Deus, o amigo imaginário dos adultos – o verdadeiro Onipresente.
Do mais minúsculo ao mais gigantesco, do mundo atômico às galáxias e supernovas, tudo está inextricavelmente conexo à rítmica – e ainda carecemos de desenvolver não só os ouvidos, mas a cognição das poliritmias. Pois as asas de um inseto cujas asas batem no ritmo de 1.000 batidas por segundo estão em um ritmado bem mais veloz do que qualquer canção humana – que raramente atinge 200 bpm.
Originária do grego rhythmos, a palavra ritmo retêm seu sentido original helênico de “algo que flui, algo que se move”. Ritmo tem tudo a ver com dinâmica, com fluxo, com cadência, com movimento. Segundo o linguista Emile Benveniste (1951), “a origem da palavra ‘ritmo’ está na palavra grega rheo, que significa ‘fluir’” (MOREIRA, Daniel. Poema sinfônico para 100 metrônomos: reflexões sobre os conceitos de temporalidade musical. In: ENCONTRO INTERNACIONAL DE TEORIA E ANÁLISE MUSICAL, 3., 2013, São Paulo. Anais… São Paulo: ECA-USP, 2013.) Aliás, rheo, que dá em rhythmos, é palavra que soa muito parecida ao português rio (mera coincidência?).
Ora, do rheo grego ao rio português muito rhutmos rolou. Essa ladainha dos rios rítmicos que evoca também o panta rhei de Heráclito de Éfeso. Este pensador pré-socrático, tido por muitos como o fundador da dialética, dizia que é impossível entrar duas vezes no mesmo rio – uma “charada” que também se explica por razões rítmicas. Jamais haverá simultaneidade identitária entre eu e o rio em dois momentos diversos do fluir do tempo. Ou seja, o ritmo que a tudo arrasta nos carrega para a impossibilidade da repetição do mesmo. Estamos condenados à diferença.
Cada um de nós pode fazer a experiência dos ritmos que habitam o organismo: a batida do coração (sístole e diástole constituindo uma espécie de compasso binário do bíos); os fluxos respiratórios (inspiração e expiração variáveis de acordo com os afetos que predominam); os piscos do olho quando caem as cortinas das pálpebras (intermitentes eclipses breves da experiência visual que ocorrem durante a experiência da vigília, eclipse mais longo do mundo anterior no descanso de pálpebras caídas a que chamamos sono).
Há um ritmo de mastigação dos alimentos pelos dentes, que varia do frenético (quando estamos com pressa ou demasiado famintos) ao lento (quando estamos com dor de dente ou querendo evitar uma indigestão ou refluxo). Quando serenos, nosso baterista no tórax nem se faz notar, coração tranquilo no peito batendo abaixo de 60 bpm. Mas quando sobrevêm um pânico, um perigo, a taquicardia faz com que o batera desperte assustado e comece a batucar a 140 bpm. Todo ser humano pode, apenas atentando para seu próprio corpo, ter a experiência vivida da polirritmia que nos constitui.
Mas não é só dentro, mas também fora que podemos perceber a onipresença do ritmo: no cosmos que nos rodeia e no qual estamos integrados, podemos falar no ritmo do dia (que inicia-se na alvorada, flui em direção ao meio-dia, e segue caminho para o crepúsculo) e da noite (que cai na hora em que preparamos nossa janta, e que depois abre-se para várias opções de comportamento humano, do descanso ao sexo, do retraimento no privado às aventuras noctívagas das ‘baladas”). As estações do ano, a dança das águas no mar, a queda das chuvas, o sopro dos ventos, tudo está permeado por um ritmado.
À distinção entre os ritmos biológicos e somáticos (respiração, circulação, batimento cardíaco, ingestão, excreção) e ritmos naturais e cósmicos (dias e noites, estações do ano, éons), podemos adicionar a distinção entre o cíclico e o linear. Trata-se de uma das principais colaborações de Henri Lefebvre (1901 – 1991),“um dos mais importantes pensadores Marxistas do século 20”, que “mostra que espaço e tempo precisam ser pensados juntos e não separados” (ELDEN, Stuart).
Em sua última obra, que li na tradução para a língua inglesa sob o nome Rhythmanalysis – Space, Time and Everyday Life (Ed. Bloomsbury, 2017), Lefebvre não esconde sua ambição de “fundar uma ciência, um novo campo do saber: a análise de ritmos; com consequências práticas.” (p. 13) Estas consequências práticas incidem sobre campos como a pedagogia (vide correntes como a Waldorf), a terapêutica corporal (como a Reichiana) e a política libertária (vide a obra célebre de Lefebvre, Direito à Cidade).
Se pensarmos em um relógio analógico, ele sintetiza o cíclico e o linear: o formato circular e o giro de 360 graus dos ponteiro constituem o ciclo; já o linear tic-tac o acompanha com a regularidade do beat de um metrônomo. Para Lefebvre, a repetição cíclica e a repetição linear só se separam sob análise, “mas na realidade interferem uma com a outra constantemente: tempo e espaço, o cíclico e o linear, exercem uma ação recíproca” e “uma relação dialética (unidade na oposição) assim adquire sentido e import, o que quer dizer generalidade. Assim atingimos, por esta estrada assim como por outras, as profundezas da dialética” (p. 18).
Lefebvre não é de fato o fundador da rhythmanalysis, pois na verdade se inspira em duas outras figuras: o filósofo português “Lúcio Alberto Pinheiro dos Santos, o fundador da ritmanálise, e Gaston Bachelard, o hermeneuta da ritmanálise.”
De acordo com o ensinamento de Lúcio Pinheiro dos Santos, a primeira função da ritmanálise, terapêutica, é desembaraçar-nos das agitações contingentes, das rotinas neuróticas, das arritmias desvitalizantes, restituindo-nos às alternativas de uma vida verdadeiramente dinâmica. Se assim nos podemos exprimir, à cacoritmia contrapõe a ritmanálise a euritmia e ao taedium vitae do «nada de novo» contrasta ela a posição corajosa do «novo começo». – RODRIGO SOBRAL CUNHA
Para a ritmanálise proposta por Lefebvre, essencialmente transdisciplinar, uma “panóplia de conceitos e oposições são indispensáveis”:
O interesse dos filósofos pela música vem de longe, da era pró-socrática, em especial a figura de Pitágoras. Mas a originalidade do pensamento de Lefebvre está em inserir a dialética, tal como a compreendem Marx e Engels, na interpretação musical, o que é feito através de uma série de tríades: assim como a dialética é composta pela tríade TESE / ANTÍTESE / SÍNTESE, assim como a música é composta pela tríade MELODIA / HARMONIA / RITMO, haveria no interior do próprio elemento ou movimento rítmico uma outra tríade discernível por Lefebvre: TEMPO / ESPAÇO / ENERGIA.
O pensamento e a práxis baseadas na dialética propõe evoluir do 2 para o 3: as oposições binários de teor religioso e metafísico, como aquelas do maniqueísmo (Bem contra Mal, o Bom Deus contra Satanás, a Imanência e a Transcendência, o Corpo Material e a Alma Imaterial), precisam ser abandonadas se queremos ser os mestres do método dialético, ele que se aplica a conhecer um real intrinsecamente contraditório e móvel.
Lefebvre, ao criticar os dualismos simplistas (inclusive aquele de um marxismo pervertido e tornado tosco pois reduziria a sociedade a um embate entre apenas duas classes, a burguesia e o proletariado), deseja sempre um terceiro incluído. No caso da díade tempo-espaço, inseparáveis, o terceiro incluído tem que ser a energia. Sempre com o cuidado de não cairmos de joelhos diante do 3, ou seja, com a cautela de não fazermos da tríade um ídolo, como ocorre também em muitas tradições religiosas (o 3 de Pai, Filho e Espírito Santo, o 3 de Céu, Inferno e Purgatório…). Também no Zaratustra Nietzschiano as metamorfoses do espírito são descritas com a tríade camelo / leão / criança. O que basta para mostrar que há uma “mitologia” do número 3, uma sacralização da trindade.
Desde Marx, o que ocorre é que a tríade foi libertada dos mitos, “esse número sagrado foi laicizado” através da constituição da dialética marxista. Para Lefebvre, “a análise dialética observa ou constitui as relações entre os três termos, que mudam de acordo com as circunstâncias, indo do conflito à aliança e depois de volta ao primeiro. A análise não isola um objeto, ou um sujeito, ou um relação. Ela busca agarrar uma movente mas determinada complexidade (determinação não implicando [entailing] determinismo.” (p 21) A dialética marxiana seria a compreensão da complexa tríade dos elementos ECONÔMICOS – SOCIAIS – POLÍTICOS, assim como a Arte do músico consiste também na maestria com a qual ele opera com a tríade RITMO – HARMONIA – MELODIA.
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A ser continuado…
“A palavra RITMO provêm do indo-europeu Sreu (fluir) e do grego Rhytmos (medida, movimento recorrente e regular, ritmo, rima). O ritmo foi percebido na pré-história quando o homem notou que algo batia dentro do próprio corpo (o coração) e quis externalizá-lo. O homem primitivo utilizando seus próprios meios imitou os sons de sua experiência com a natureza, ouvindo o quebrar dos ramos enquanto caminhava pelas matas, o sussurrar do vento nas árvores, o ruído das águas no regato, a percussão da maré batendo regularmente na praia, e assim passou a conhecer o ritmo por meio da natureza.” – JAMES GALWAY, A Música no Tempo (Ed. Martins Fontes, 1987)
Autênticos magos do ritmo e alquimistas do som, os grupos Barbatuques e Stomp atuam como renovadores na arte da expressão rítmica. Com muita criatividade, operam junções extravagantes entre a poética corporal e a rítmica musical, através de instrumentos pouco usuais, somando-se a uma linhagem de músicos como Hermeto Paschoal, Tom Zé, Uakti e Mawaca (para citar só alguns dos brasileiros) que se exercitam em expandir os limites do possível na expressão musical.
O Stomp é um grupo originário de Brighton, no Reino Unido, em que a confluência de música, dança, teatro, coreografia e batucada gera um resultado estético pra lá de impressionante. Nascido em 1991, quando foi fundado por Luke Cresswell (percussionista) e Steve McNicholas (ator, músico e escritor), o STOMP é a manifestação coletiva de uma força de poiésis que vai além do mero virtuosismo de artistas que dominam a rítmica corporal e a arte da sincronicidade.
Os dançarinos-batuqueiros são também mestres da comédia visual, inserindo em suas performances várias gags (dignas dos melhores filmes cômicos do cinema mudo, como aqueles de Chaplin ou B. Keaton). Além disso, utilizando-se dos próprios corpos e de objetos comuns para criar suas performances. “Objetos do dia-a-dia são utilizados para criar coreografias e sons, tais como: tubulações, tampas de balde de lixo, isqueiros, rodos, vassouras, sacos plásticos, pias cheias de água, baldes, calotas de carros, caixinhas de fósforo, chaves, bastões.” (ARTAXO; MONTEIRO; 2013, p. 34)
Deslumbre-se com a diversidade estonteante das expressões rítmicas de que o ser humano é capaz através deste DVD completo, que reúne 1h50min de material do Stomp ao vivo e a cores, endiabrado de ritmos:
Explorando uma senda criativa similar, o grupo brasileiro Barbatuques faz música, há mais de 20 anos, apenas com ritmos e sons produzidos nos próprios corpos de seus integrantes. O mentor da trupe de batuqueiros corporais é Fernando Barbosa (Barba) e o projeto está na ativer desde 1988, investigando todas as possibilidades de uma Orquestra de Corpos que se auto batucam, abordagem que eles apelidaram de “sintetizador humano”.
Desde o álbum de estréia, Corpo do Som, eles vem “aproximando a música brasileira de elementos da música africana, mediterrânea, cubana, eletrônica e minimalista, entre outros. O trabalho do grupo é uma orquestra orgânica”, afirmam as arte-educadoras Inês Artaxo e Gizele Assis Monteiro no livro Ritmo e Movimento – Teoria e Prática (Phorte, São Paulo, 5º ed, 2013, p. 35)
Publicado em: 31/12/20
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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