Sinopse | |
Carlos (Lee Taylor), Renata (Simone Iliescu) e Marcelo (Roberto Audio) formam um triângulo amoroso contextualizado na caótica rotina de uma metrópole como São Paulo. Carlos, ex-ladrão de carros, tenta cuidar do menino Exu (Vinicius dos Anjos), mas ele passa o dia inteiro nas ruas da cidade. |
“Convoque seu Buda”, recomenda o Criolo, “o clima tá tenso!” É uma São Paulo sinistra, barril de pólvora às beiras da ebulição, o “cenário” para RIOCORRENTE, filmaço de Paulo Sacramento que pude apreciar no Cine Cultura em Goiânia. O pôster do primeiro longa-metragem de ficção deste cineasta, que havia estreado anos antes com o documentário O Prisioneiro da Grade de Ferro (2003), já deixa claro, na linguagem das chamas, que não é nenhuma São Paulo higienizada e harmônica a que veremos na tela, mas sim uma Sampa distópica, tão dark quanto Gotham, e que alguns de seus inconformados cidadãos desejam tratar na base do queima, Babilônia!
O filme escancara seu radicalismo logo nos primeiros instantes: um grupo de free jazz, ao estilo do MarginalS onde geme o sax de Thiago França, improvisa um som com alta carga de dissonâncias e cita versos do Rage Against The Machine: “Tem que começar em algum lugar. Tem que começar alguma hora. Que melhor lugar do que aqui? E que melhor hora do que agora?”
Eis um filme que quer que as ideias voltem a ser perigosas, como demandavam as ruas de Paris em 1968, mas que ao mesmo tempo analisa psicologicamente as hostilidades e as desconexões que tornam as relações intersubjetivas tão sinistras quanto as paisagens urbanas imundas, fétidas e feiosas. Nesta megalópole da desarmonia e do brutalismo banalizado, que tem pontos de contato com a cidade que figura no livro Não Verás País Nenhum de Loyola Brandão (1981), a ação coletiva e concertada é também tão complicada. Para citar novamente o poeta-xamã-hiphopper, Riocorrente exala um pouco o clima dos versos de “Não Existe Amor em SP”:
“Os bares estão cheios de almas tão vazias
A ganância vibra, a vaidade excita
Devolva minha vida e morra afogada em seu próprio mar de fel
Aqui ninguém vai pro céu…”
Criolo
Estamos na Sampa de Carandirus e Crackolândias, um “mar de fel”, com rios urbanos que não são mais de água mas de combustível. Em uma cena talvez destinada a tornar-se lendária no cinema brasileiro, Paulo Sacramento sintetiza seu poema visual sobre a megalópole e “pinta” na telona uma Sampa cujos rios tóxicos e mega-poluídos acabam, num twist de sci-fi, por virarem gasolina. E não tem escassez de moleques querendo fornecer a primeira fagulha. Que tudo queime, que tudo vire cinza, propugna um certo niilismo desconsolado, subversivo, que percorre Riocorrente.
Um filme que nos fala de uma metrópole caótica, cheia de contradições e antagonismos, semelhante àquelas que nos revela Mike Davis em seu livro “Planet Of Slums” (Planeta Favela). Epidêmicos são os roubos-de-carros levados ao desmonte, os vastos espaços tomados por lixo e ferros-velhos, a onipresente poluição (atmosférica, auditiva e visual), e tudo isso parece comunicar algo à rudeza das relações do triângulo amoroso dos protagonistas – cujas transas e papos, volta-e-meia, estão repletos de violências.
Em seu artigo “Iconoclastia e errância”, na Revista Cinética, Victor Guimarães ponderou que este é “um filme em ebulição perpétua, com uma inquietação crítica constante e uma vibração conceitual, plástica e sonora muito evidente. Ao recuperar o caráter explosivo de um cineasta como Sergio Bianchi – mas em uma dicção muito própria –, o filme se afirma como um gesto dissonante e necessário, que tem um potencial verdadeiro de impregnar o espectador com sua virulência.”
Uma das virtudes maiores da obra é o impressionante retrato sociológico que ela carrega, um pouco à maneira como o Recife é revelado pelos filmes de Kleuber Mendonça Filho, em especial “O Som Ao Redor” e “Aquarius”. Sacramento também demonstra capacidade Beto Brantiana de realizar um thriller denso, com bons personagens, numa obra coerente e alegórica, repleta de surpresas e pesadelos estranhos, e onde não há escassez de Coquetéis Molotov, artistas noctívagos, porres de cerveja barata, pixos em paredes proibidas, dentre outras microfonias e dissonâncias que compõe uma espécie de “Música Urbana 3” que remete à crônica de Renato Russo:
“Em cima dos telhados as antenas de TV tocam música urbana,
Nas ruas os mendigos com esparadrapos podres
Cantam música urbana,
Motocicletas querendo atenção às três da manhã –
É só música urbana.
Os PMs armados e as tropas de choque vomitam música urbana
E nas escolas as crianças aprendem a repetir a música urbana.
Nos bares os viciados sempre tentam conseguir a música urbana.
O vento forte seco e sujo em cantos de concreto
Parece música urbana
E a matilha de crianças sujas no meio da rua –
Música urbana.”
E por falar em música, o filme de Sacramento tem várias atrações interessantes para os melômanos, incluindo uma cena com Arnaldo Baptista dos Mutantes fazendo uma canção só na voz-e-piano; e um rockão garageiro dos Thee Butchers Orchestra, em uma cena-de-balada que evoca a estética do filme “Paraísos Artificiais”, de Marcos Prado. Os inferninhos da Baixa Augusta, os botecos da sinuca e os cemitérios acinzentados são algumas das facetas de Sampa que Sacramento escolheu filmar.
A “ferocidade de se viver em São Paulo” e “a angústia de estar correndo sem saber para onde” são frequentemente assinaladas pelo filme, como destacou Ivan Oliveira, sublinhando ainda a presença, na cinematografia, do grande Aloysio Raulino.
No fim das contas, se em seu filme anterior, “O Prisioneiro Da Grade De Ferro”, Sacramento imergia o espectador no inferno carcerário, dando a câmera e a voz aos próprios presos para expressarem sua condição, “Riocorrente” retrata a vida fora dos muros que encarceram criminosos, mas afirmando que Sampa inteira é uma espécie de cidade-presídio. Uma cidade-Carandiru onde, para lembrar Sartre, as pessoas estão “condenadas à liberdade”.
Em sua crítica, Chico Fireman escreve: “Se no documentário filmado nos últimos dias de atividade do Carandiru, esse rompimento com os padrões acontece quando o diretor entrega a câmera para que os detentos filmem suas vidas, renegando a figura do cineasta como contador de histórias, senhor da narrativa, em Riocorrente, essa ousadia vem quando Sacramento elege a plástica sonora como protagonista do filme, reservando para os personagens o direito de erguer suas vidas no meio do caos urbano. A imagem mais forte do filme, que estampa inclusive os cartazes do longa, mostra um Rio Tietê em chamas, numa utilização inédita de efeitos especiais no cinema brasileiro. Sobretudo num cinema arthouse, independente, feito com poucos recursos. A cena, ápice do desconforto do ex-ladrão de carros com sua vida, o mundo, Deus, materializa toda a premissa do filme, de que é preciso apostar no risco para permitir a transformação. Seus simbolismos, ao mesmo tempo em que conversam com um cinema de ‘mestres malditos’ de outras gerações, emolduram um debate completamente contemporâneo. ‘Eu queria sujar as minhas mãos’, confessa o diretor, justificando suas liberdades e rebeldias.”
A Sampa de “Riocorrente” é um pouco aquela das epidemias de depressão e das altas vendas de Prozacs; dos engarrafamentos aporrinhantes e da poluição atmosférica nível Cubatão; dos suicídios triviais de tão comuns, e das revoltas por longo tempo reprimidas que estouram em dinamites mal-direcionadas; dos amores buscados em vão e dos vínculos que facilmente se quebram; do circo-pegando-fogo pela ação conjunta de dúzias de Coringas (inclusive os vândalos engravatados da bolsa de valores).
Acossada por um desastre iminente, esta Sampa de “Riocorrente” é um lugar onde a crise faz com que também aumente a circulação de “ideias perigosas”, e por isso é uma cidade que não parece estar para além de toda redenção – afinal, ela é revolucionável.
Se há fagulhas de esperança neste filme tão desesperado, é talvez no modo como “Riocorrente” tenta filmar os processos sociais que vão conduzindo a rupturas, a eventos imprevistos que deixam boquiaberta a História, a Mídia, o Estado, o Mercado – como as jornadas de Junho de 2013.
Sacramento captou um pouco da fervilhância subterrânea que precede as revoluções; captou a insatisfação existencial que às vezes instiga revoltas e levantes; e de certo modo fez um dos filmes mais autênticos e expressivos sobre o presente da megalópole: está nas telas o zeitgeist da Sampa de 2013 que estava sendo revitalizada e rejuvenescida pelas reformas ousadas do prefeito Fernando Haddad, pela força crescente do MTST – Trabalhadores Sem Teto e do Passe Livre São Paulo, pela catalisação cultural e comunicativa do Circuito Fora do Eixo e da Mídia NINJA, não esquecendo da Marcha da Maconha e da Marcha das Vadias Sampa…
Enfim, Sampa como um caldeirão tenso que nos dá uma única certeza: é bom mesmo convocar o Buda pra encarar o que vem por aí – em especial agora, com a crise da água que se exacerba em meio à catástrofe climática em uma cidade que poluiu e enterrou no concreto seus mais importantes rios. O futuro talvez revele que o “Riocorrente” de Sacramento foi profético: Sampa está mesmo pra pegar fogo em meio ao cataclismo climático e o secamento do Cantareira. E, diante disso, as expressões artísticas de sabor punk e pendor distópico não morrem tão cedo! Esta é a arte que expressa o caos sem rumo de nossa coletiva agonia, e que abre vias estranhas para insurreições e criações que renovem um mundo caduco.
Eduardo Carli de Moraes
Publicado em: 02/08/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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