“MATE-ME POR FAVOR!”, dizia a camiseta dum maluco que andava pelo CBGB’s de New York em meados dos anos 70, botando lenha na fogueira da Cena. Formando bandas, rabiscando poemas, tomando picos de heroína, tentando tacar veneno na caixa d’água da cultura americana, Richard Hell carregava estampada no peito aquele queer slogan, Please Kill Me, que depois se tornaria o nome de um dos mais clássicos livros que conta “A História Sem Censura Do Punk” (história oral organizada por Legs McNeil e Gillian McCain).
O próprio Malcolm McLaren, o mastermind por trás do swindle dos Sex Pistols, muito se influenciou na Inglaterra pelo vestuário de Hell em NYC. Ou seja, a conexão U.S.-U.K. que fez o punk rock invadir o mainstream é perpassado também pela influência de Hell sobre McLaren quando este começou a bolar as roupas e cabelos que se tornariam marcas da subcultura punk e se tornariam famosas na carne de Sid Vicious e Johnny Rotten.
Apesar de ter sido tão pioneiro, até hoje a obra de Richard Hell permanece cult, desconhecida demais do grande público, uma injustiça perante um artista de tamanha relevância na constituição do raw power propugnado pelo punk na década do prog e da discow.
Richard Hell foi um dos melhores e mais sagazes poetas dentre os maiores artistas dos primórdios do movimento Punk. Suas letras se equiparavam às de Patti Smith, Lou Reed e Tom Verlaine, tríade reconhecida pela maestria literária com quê semearam os campos dos primeiros artefatos punk.
O som que Hell fazia com os Doidoids remetia muito à urgência, à fúria e ao debochado humor dos Ramones, dos Undertones e dos Heartbreakers. Essa mistura de sofisticação lírica e ataque sônico furioso demonstrava que a poesia podia ser cool e que o punk podia ser veículo para uma literatura das ruas. Em suma: não há como falar em poesia marginal no punk sem dedicar bons capítulos à figura de Richard Hell – que também foi um vocalista criativo, irreverente, inspiração para vertentes lúdicas do punk que se manifestariam em bandas como a maravilhosa The Exploding Hearts.
Tudo isto fez da obra de Richard Hell, dentro da Cena Punk dos anos 70, algo ímpar, sui generis. Só lançou, de fato, um disco clássico: Blank Generation, de 1977. O segundo, Destiny Street, surgiu 5 anos depois, mas é tão chocho, tão fraco em contraste com a obra-prima que havia sido seu debut, que sepultou para sempre os Voidoids e fez com que Hell abandonasse a música e abraçasse de vez a literatura.
O brilhantismo e a excitação daquele primeiro álbum, porém, permanecem intactos, tornando-o um dos mais fodásticos álbuns punk de sua década – o que não é dizer pouco, já que tivemos ainda, naqueles anos dourados do barulho enfezado, London Calling, Rocket To Russia, Never Mind The Bollocks, Raw Power, Undertones, Singles Going Steady, Inflammable Matterial, Entertainment!, My Aim Is True, I’m Stranded, L.A.M.F., Marquee Moon, Damned Damned Damned, Horses, The Modern Lovers, Lust For Life, New York Dolls, Funhouse e tantos e tantos outros clássicos…
Richard Hell foi amigo de infância e de adolescência de Tom Verlaine. Eram tão inseparáveis que muitos pensavam que fossem irmãos. Conta-se que os dois, que tavam mais pra outsiders do que pra CDFs, bolavam juntos meios de realizar uma mini rebelião juvenil: um ficava tentando “pôr pilha um no outro com um plano pra fugir da escola”.
O que eles de fato fizeram: o pimentinha Richard, expulso pelo diretor da escola por tomar sementes de ipoméia, caiu na estrada junto com Verlaine querendo tudo: ser artista e poeta, virar “rato de praia”, comer muitas garotas, experimentar tudo quanto é tipo de psicotrópicos,ser um caroneiro kerouakiano pela América Selvagem, inclusive sendo um incendiário das paisagens sulistas (“estávamos muito revoltados com o Alabama!”, troveja ele em algum ponto de um relato surreal de Mate-Me Por Favor onde conta como pôs fogo numa floresta).
Hell chegou a tocar contrabaixo no que viria a ser o Television, mas saiu da banda antes da gravação de Marquee Moon – um dos grandes álbuns dos anos 70 e marco eterno do que hoje chamamos de “indie” e “guitar rock”. Saiba mais no artigo publicado na Revista Bizz – Discoteca Básica
Admirador de Patti Smith, que depois se tornaria a namorada de Tom Verlaine, Richard Hell foi um dos nomes daquela cena proto-punk que depois mais fundo mergulhou na carreira literária. “Fui ver Patti ler, e ela costumava se apresentar naqueles clubes gays, como Le Jardin, e iam à loucura por causa dela”, conta ele em Mate-me Por Favor. “Isto me surpreendeu. ‘Essa multidão está aqui por causa dessa garota fazendo poesia?’ Patti ficava apenas desfiando coisas, e aquilo era o maior barato, e ela era muito intensa, mas ao mesmo tempo muito doce e muito vulnerável. Ela era o máximo, sem dúvida.” (Mate-me Por Favor, pg. 131)
Hell foi daqueles jovens apaixonados por poesia, desde moleque, mas que descobriu paralelamente a sedução fatal e a energia primal do punk rock: “Era muito mais excitante fazer rock & roll do que ficar sentado em casa escrevendo poesia”, relata Hell. “Quer dizer, eu podia lidar com os mesmos temas com os quais eu ficaria penando sozinho no meu quarto pra publicar em revistinhas mimeografadas que só umas cinco pessoas iriam ver. E definitivamente a gente se achava tão cool quanto os outros, então por que não…?” (181)
Depois da música, acabou virandoator de cinema (encarnou, por ex., o namorado de Madonna em Desperately Seeking Susan) e se tornou um autor de romances que se inserem na linhagem de William Burroughs, Norman Mailer e Irvine Welsh: literatura contracultural e que chuta as bundas dos caretas sem dó.
Como não poderia deixar de ser naqueles tempos bem Trainspotting-da-vida-real, o danado não poupou suas veias e, seguindo o zeitgeist, adotou com ardor o estilo-de-vida do junkie/boêmio/artista. “Não tive nenhuma restrição quanto à droga pesada”, confessa. “No meu modo de ver, era simplesmente o estado ideal. Não apenas fazia você se sentir fisicamente tão bem quanto é possível – no fim das contas, é um analgésico -, como também parecia ser a realização de todas as minhas fantasias, no sentido de que você sonha, mas dirige seus sonhos como um diretor de filme.” (184)
Que a junk pudesse ser um armadilha, ele sabia: tanto que mais tarde viu alguns grandes amigos, como Johnny Thunders (com quem fundou os Heartbreakers), perdendo a vida nos trilhos da overdose. Mas na época, conta Hell, havia uma ilusão de que picar-se não tinha nada de perigoso: “A heroína pareceu muito segura na época, sabe? Porque é verdade que você tem que usar todos os dias por duas ou três semanas para começar a desenvolver o vício. E isto pareceu uma coisa muito fácil de evitar. Como as pessoas podiam ter medo daquilo? Que tipo de risco é este? Risco nenhum – mas é impressionante como te pega.” (185)
Em suma: Richard Hell estava lá, como um dos mais importantes pivôs da cena, quando o fogo começou a se alastrar. O que emergia ali era o punk como o conhecemos hoje, em sua versão ’77: catarse concentrada, crua e trovejante. “A cena definitivamente começou a crescer como uma bola de neve”, rememora. “O CBGB’s era sem dúvida o lugar onde as coisas estavam acontecendo, desde a primeira vez que a gente tocou lá. Na real éramos os únicos. Não havia no mundo nenhuma outra banda de rock & roll com cabelo curto. Não havia nenhuma outra banda de rock & roll com roupas rasgadas. Todo mundo ainda estava usando purpurina e roupa de mulher. Éramos uns chinelões, arruaceiros sem teto, tocando uma música poderosa pra caramba, apaixonada, agressiva e também lírica.” (191)
Blank Generation é o petardo sônico de uma juventude que de “vazia” não tinha nada. Vazia de fato é a geração que se esquece do quão sagaz e poético foi o movimento punk. A blankness é de todos os jovens que hoje ignoram toda a incandescência sônica e lírica que Richard Hell infundiu aos primórdios do punk, marcando pra sempre o desenrolar da contracultura dos dois lados do Atlântico- e além…
Eduardo Carli de Moraes
Richard Hell and the Voidoids – Blank Generation – 40th Anniversary Edition (1997) – FAÇA O DOWNLOAD DO ÁLBUM COMPLETO EM MP3 320 KPS
Track List
Disc 1 – Original Album
1. “Love Comes In Spurts”
2. “Liars Beware”
3. “New Pleasure”
4. “Betrayal Takes Two”
5. “Down At The Rock And Roll Club”
6. “Who Says?”
7. “Blank Generation”
8. “Walking On The Water”
9. “The Plan”
10. “Another World”
Disc Two – Bonus Album
1. “Love Comes In Spurts” – Electric Lady Studios Alternate Version
2. “Blank Generation” – Electric Lady Studios Alternate Version
3. “You Gotta Lose” – Electric Lady Studios Outtake Version
4. “Who Says?” – Plaza Sound Studios Alternate Version
5. “Love Comes In Spurts” – Live at CBGB, November 19, 1976
6. “Blank Generation” – Live at CBGB, November 19, 1976
7. “Liars Beware” – Live at CBGB, April 14, 1977
8. “New Pleasure” – Live at CBGB, April 14, 1977
9. “Walking On The Water” – Live at CBGB, April 14, 1977
10. “Another World” – Ork Records Version
11. “Oh” – Original 2001 Release
12. 1977 Sire Records Radio Commercial
Publicado em: 07/08/21
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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