Abrir as portas para a radical expansão da consciência pode ser salutar no enfrentamento de traumas e estagnações que nos trancam no sofrimento
Por Eduardo Carli de Moraes
Quem ousaria negar que o Brasil da atualidade é uma pátria traumatizada, repleta de gente adoecida e necessitada de cura? Após mais de 700.000 óbitos decorrentes da aliança sinistra entre a pandemia do coronavírus e a necropolítica bolsonarista, uma “catástrofe humanitária que fez um país detentor de 2,7% da população mundial ter 10% das mortes globais por Covid”, como destacou <o manifesto do Coletivo Anistia Nunca Mais>, estamos diante de uma tarefa mais que hercúlea relativa à saúde mental e afetiva.
Para dar um exemplo concreto de um dos componentes deste mega-desafio, vale mencionar os órfãos da pandemia: segundo o relatório <Denúncia de Violações dos Direitos à Vida e à Saúde no contexto da pandemia da covid-19 no Brasil>, do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), “mais de 113 mil menores de idade brasileiros perderam o pai, a mãe ou ambos para a Covid-19 entre março de 2020 e abril de 2021. Se consideradas as crianças e adolescentes que tinham como principal cuidador os avós/avôs, esse número salta para 130 mil no país”.
Estes jovens brasileiros que o conluio entre a pandemia e o pandemônio do desgoverno lançou à orfandade, trucidados por tragédias familiares, vivenciam hoje os dramas do desamparo, da desnutrição e da exclusão em relação a espaços educativos. São um grupo social que, devido à sua vulnerabilidade constitutiva e às feridas expostas que carregam em suas carnes e psiquês, servem-nos como emblema de uma situação mais ampla: estejamos ou não de luto por termos perdido entes queridos, o fato é que a população brasileira viveu sob Bolsonaro algo de profundamente traumatizante e agora estamos diante de uma crise da saúde mental e emocional sem precedentes. Quem ousaria, diante disso, trancar as portas para aquilo que, sem ser panaceia, é uma promissora senda de cura, a “Renascença Psicodélica”?
Escrevendo em julho de 2020, enquanto tratores abriam às pressas as novas valas onde seriam enterradas as vítimas da covid que então contávamos às centenas por dia, o jornalista e divulgador de ciência Marcelo Leite encerra seu livro Psiconautas apontando:
“Se um dia a praga do coronavírus arrefecer, sobrevirá uma pandemia de transtornos mentais. Precisaremos de uma força-tarefa de psicoterapeutas para combater o tsunami de tristeza que vem pela frente. Não se sabe o tamanho do vagalhão de infelicidade que desabará sobre os homens e mulheres, sobre as crianças que crescem e os velhos que sobrarem. Antes do coronavírus, apenas a obtusidade proibicionista, que dura meio século, ainda impedia o acesso a uma classe de substâncias – os psicodélicos – que a pesquisa científica indica ser capaz de mitigar as dores da alma impostas pelo tempo. Depois da covid19, seguir bloqueando a pesquisa que mapeia seu potencial será um crime ao estilo dos genocidas instalados em alguns governos.”
Um velho dito popular afirma que “todos os gatos são pardos no escuro”, isto é, na escassez de luz perdemos a capacidade de discernir entre objetos ou organismos que são de fato diferentes, mas que aparecem erroneamente em nossa percepção como quase idênticos. Poderíamos dizer, de maneira similar, que na noite do obscurantismo todas as drogas tornadas ilícitas são vistas como igualmente terríveis, todos os adictos merecem ser tratados como criminosos, e todos aqueles que dizem cultivar o seu próprio remédio em seu próprio jardim merecem ser trancafiados em penitenciárias caso sua planta-de-poder predileta tenha sido proscrita por proibições historicamente recentíssimas. Repensar é salutar. Discernir entre opioides e enteógenos, entre as consequências do uso da cannabis e do tabaco, entre os efeitos sociais do álcool e da mescalina, é começar a superar a cegueira que nos confina neste breu onde todos os gatos são pardos e as penitenciárias estão todas superlotadas (o Brasil tem hoje mais de 830.000 presos, a terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas da China com 1,7 milhão e dos EUA com 2,2 milhão).
A divisão artificial entre drogas lícitas e ilícitas, que nada tem de imutável e inamovível, encontra-se hoje sob intenso escrutínio crítico. O atual estado da legislação que classifica o que é legal e o que é ilegal vem sendo denunciada em várias frentes por sua irracionalidade contraproducente e por sua insanidade injustificável – sendo que o movimento social da Marcha da Maconha serve como uma de suas principais caixas de ressonância no Brasil e no mundo. O Coletivo Desentorpecendo a Razão (DAR), por exemplo, julga inaceitável a continuidade de uma Guerra às Drogas “hipócrita, corrupta e cruel – que lota os presídios e criminaliza principalmente pobres, negros e periféricos”.
As substâncias lícitas mais corriqueiras, os cigarros de tabaco e as bebidas alcoólicas, podem ser consideradas como catastróficas em várias dimensões: segundo um <relatório da OMS (Organização Mundial da Saúde) de 2023>, “o tabagismo mata, em todo o planeta, mais de 8 milhões de pessoas por ano, 7 milhões de fumantes diretos e 1,3 milhão de fumantes passivos – que ficam rotineiramente expostos à fumaça.” (Fonte: G1)
O princípio ativo dos cigarros, a nicotina, gera dependência atroz sem oferecer nenhum dos benefícios cognitivos ou percepcionais de uma substância psicodélica ilícita. Para além da “viagem” ruim, sem graça nem insight, nada transformadora ou emancipadora, fumando cigarros lícitos você vai adquirindo câncer de pulmão. O contraste da licitude do tabaco com a ilicitude da cannabis salta aos olhos como uma absurdidade chocante: não existe em toda a história humana nenhuma morte já registrada que tenha sido causada por uma overdose de maconha – uma lição que até um órgão da imprensa corporativa burguesa, usualmente adepta da caretice estrita, quis ensinar aos adolescentes que lêem a <Folhateen>.
Na atualidade, a cannabis é protagonista de uma revolução na medicina e nas neurociências, com efeitos terapêuticos comprovados no tratamento de dúzias de doenças. Mesmo o mais empedernido proibicionista é confrontado pelo consenso científico com este fato: mesmo que você passe a vida inteira sem fumar um baseado, seu corpo terá tido do berço ao túmulo um sistema endocanabinoide que o processo evolutivo forjou e que nos capacita a acolher os princípios ativos da cannabis.
No que tange ao álcool, a pletora de desastres sociais conectadas ao seu abuso, entre nós tão banalizado ou mesmo glamourizado, para grande felicidade do maior conglomerado corporativo do mundo neste setor (a Ambev), inclui numa lista não-exaustiva:
1) acidentes de trânsito graves e atropelamentos fatais causados por motoristas bêbados “causam mais de 10 mil mortes no trânsito por ano no Brasil”; <Saiba mais>
2) agressões domésticas e violências urbanas, como assaltos e estupros, estão conectados diretamente ao alcoolismo e ao abuso eventual de bebidas alcóolicas: o 2º Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad), realizado pela Unifesp em 149 municípios brasileiros no ano de 2012, revelou, após entrevistas com 4.607 participantes com 14 anos ou mais, que “em 50% dos casos de violência entre parceiros, o agressor estava sob o efeito de álcool. Além disso, 33,6% dos bebedores afirmaram já ter batido em alguém enquanto estavam embriagados.” <G1 – Ciência e Saúde>
3) Impactos na saúde pública são imensos, tanto os vinculados às doenças e ferimentos acarretados pela conjuntura descrita nos itens 1 e 2 acima, mas também devido ao incremento de patologias como a cirrose hepática – condição que, segundo os médicos Dráuzio Varella e Luis Caetano da Silva, é adquirida através de bebedeiras que perfazem “80 gramas de álcool por dia, durante aproximadamente 10 anos”. <Saiba mais: VARELLA, Drauzio. O fígado e o álcool.>
Contrastemos o quadro distópico e sinistro que pintamos das drogas lícitas mais utilizadas, ao menos na atual conjuntura histórica que tão urgentemente nos cabe transformar, com algumas substâncias ilícitas cujos benefícios sociais são cada vez mais amplamente reconhecidos: como argumenta o escritor e jornalista D. R. Burgierman, autor de O Fim da Guerra (Leya, 2011), “abriu-se uma brecha enorme pela via do uso medicinal de substâncias, que começou com a medicina cannábica e agora veio também com o resgate da Medicina Psicodélica. Temos notícias recentes de pesquisas sólidas do uso de MDMA, LSD e psilocibina em tratamentos de trauma. Mas, nessa mesma última década, o Brasil não mudou nada. Virou uma espécie de relíquia da Guerra às Drogas.” <Depoimento à jornalista L. Veras para a reportagem da Revista Continente #244, Abril de 2021>
O MDMA (popularmente disseminado como ecstasy) é protagonista de inúmeras experiências psicoterapêuticas, sobretudo vinculados ao estresse pós-traumático (PTSD, na sigla em inglês), desde sua primeira aparição no campo da saúde psicossomática através dos pioneiros Alexander ‘Sasha’ Shulgin e Ann Shulgin. Pesquisas indicam que há uma capacidade inata de regeneração em nosso organismo que pode ser acessada ou liberada através de medicina psicodélica e que estas substâncias favorecem os fenômenos da neuroplasticidade, propiciando uma reconfiguração de nossos circuitos neuronais e complexos afetivos que pode ser profundamente curativa. Ao invés de atuar nos sintomas, ataca-se suas causas na raiz.
Além disso, hoje sabe-se que fenômenos como a empatia não são meramente “morais”, não dependem somente de um “esforço ético”, mas tem uma base bioquímica e que o consumo de MDMA pode ser propício, por exemplo, para psicoterapia de casais e famílias em virtude de um incremento quimicamente induzido da empatia e da habilidade-para-amar, como explorado pelo pioneiro psicoterapeuta psicodélico Leo Zeff.
No trato da depressão, da ansiedade, da insônia, do burn-out, de várias formas de letargia existencial estagnante, também a psilocibina presente nos cogumelos mágicos, o DMT do chá de ayahuasca ou as moléculas de CBD e THC presentes na cannabis vem ajudando milhões de pessoas que se sentem salutarmente beneficiadas por estas substância. Aos olhos da lei proibicionista e encarceradora em massa, cometem crimes; aos seus próprios olhos, curam-se. Entidades cada vez mais empoderadas como a MAPS (tradução: Multidisciplinar Associação Para Estudos Psicodélicos), fundada pelo icônico Rick Doblin, mobilizam-se em prol da popularização e plena legalização das psychedelic healings.
O fenômeno da “Renascença Psicodélica” vem sendo descrita e analisada numa cada vez mais ampla faixa-de-publicização, ou seja, trata-se de fenômeno que já inunda o chamado mainstream. Prova disto são fenômenos culturais com ampla repercussão, como a ascensão ao status de best-seller de Como Mudar Sua Mente (Intrínseca, 2018), o muito elucidativo e elegantemente escrito livro de Michael Pollan, que gerou uma série documental em 4 episódios produzida pela Netflix.
Filmes como Aconteceu em Woodstock, de Ang Lee, ou Magic Trip, de Alex Gibney, que aborda Ken Kesey e os Merry Pranksters, ajudam a reacender essa chama. Inúmeras publicações e produções audiovisuais também abordam o legado de figuras como T. Leary, R. Alpert (Ram Dass), A. Watts, A. Ginsberg, L. C. Maciel, dentre outros “gurus” da contracultura.
Também na imprensa e no debate intelectual vem marcando ascendente presença: nos livros e intervenções públicas do psicanalista Christian Dunker, do neurocientista Sidarta Ribeiro ou do médico Drauzio Varella vem aparecendo contribuições acerca destas substâncias e suas promessas. São fenômenos que comprovam que a ágora digital tem se agitado a respeito da psicodelia de maneira que talvez não se via desde os Verões do Amor e Woodstocks da “contracultura hippie” dos anos 1960.
Por algumas décadas, substâncias como o LSD, a psilocibina, a mescalina, o MDMA e a cannabis estiveram lançadas ao índex das drogas perigosas, proibidas, sem fins terapêuticos reconhecidos – o famigerado “Schedule 1” do DEA estadunidense. A criminalização de seus usuários e beneficiários, assim como o empurrão que lançou terapeutas psicodélicos à clandestinidade e fez colapsar os financiamentos de pesquisa nesta área, deram-se por causa do exacerbamento da obtusa, mortífera e insana Guerra Contra As Drogas. Esta é inseparável da ideologia tóxica que a anima, o proibicionismo – aquele que, de acordo um meme sarcástico que circula na cibercultura, “não funcionou nem mesmo quando Deus tentou”.
Devemos completar o quadro com o fato de que nunca houve na história humana qualquer período em que nosso organismo e nosso sistema nervoso central não estivessem em intensa sinergia e interação com as substâncias psicoativas que pululam em nosso meio. Proibi-las com dogmatismo inflexível, ao invés de pensar uma sabedoria baseada numa flexível redução de danos, consiste em deslocar para a clandestinidade e para um turbilhão de violências irracionais um mercado cuja oferta-e-demanda é impossível de ser zerada, que continuará movimentando bilhões de desejos-demandas e de lucrativas-ofertas.
Poucas ideias são tão lunáticas e impossíveis de concretizar quanto esta que está no cerne da utopia proibicionista: um mundo livre das drogas ilícitas. Através da disseminação de desinformação, da criação de pânicos morais, da propaganda aterrorizante apelidada de fearmongering, o obscurantismo anti-Ciência até tentou sufocar a Renascença Psicodélica e o avanço global da legalização da maconha, mas sem pleno sucesso. O transatlântico do proibicionismo é hoje um Titanic afundando, e vai tarde. Hoje caminhamos a passos largos rumo a uma vasta empreitada cosmopolita, internacionalista, que faz confluir cientistas e artistas, pedagogos e terapeutas, cidadãos despertos de todos ofícios e estirpes, no sentido de incluir em nossas vidas todas as potencialidades de cura, de cognição intensificada, de empatia ampliada, de reconexão cósmica, de fusão mística com Pachamama, de criatividade dionisíaca transbordante, que podem ser catalisadas por estas moléculas-de-poder.
USOS E ABUSOS: Sobre as atrocidades da CIA
É inegável que existem maus usos de substâncias psicodélicas: pessoas com esquizofrenia ou tendências psicóticas jamais deveriam se aventurar sozinhas em uma viagem lisérgica, assim como não seria recomendado que o piloto de um avião realizasse uma viagem internacional sob o efeito do ácido lisérgico. A importância de uma boa ambiência, de um senso de propósito, de um acompanhamento por parte de psiconautas experienciados, deve ser frisada para que a trip possa ser apreciada tanto em sua jornada quanto em sua recompensa, tanto em seu durante quanto em seu afterglow.
Um crescente consenso científico vem sendo gerado que nos garante que as substâncias psicodélicas como LSD, DMT e mescalina não causam dependência, são desprovidas de toxicidade e que é praticamente impossível morrer de uma overdose. O abuso que merece ser denunciado consiste sobretudo na violação de um princípio ético básico, a autonomia do sujeito que decide aventurar-se na psiconáutica: o sujeito precisa querer sua viagem, e qualquer tentativa de ministrar essas drogas a alguém que não sabe que as está consumindo, que irá experimentar seus efeitos despreparado, é algo a ser execrado. O exemplo histórico mais sobressalente e chocante de um mau uso de uma substância psicodélica é fornecido pela CIA, violadora contumaz do princípio aqui delineado pois visava transformar em tradição geopolítica imperialista a imposição de viagens psicodélicas sob condições de cárcere e tortura, com fins de extração de informações consideradas úteis na guerra contra o comunismo e o terrorismo.
A série documental “Wormwood” (2017, 258 min), dirigida por Errol Morris e produzida pela Netflix, revela em minúcias uma atrocidade da CIA cometida contra o bacteriologista Frank Olson (interpretado por P. Sarsgaard). Em 1953, o cientista que servia ao governo dos EUA morreu em NYC após despencar da janela do 13º andar de um hotel. Acidente ou suicídio foram as duas hipóteses inicialmente divulgadas como explicações possíveis para o óbito: as autoridades quiserem convencer a opinião pública de que, das duas uma: ou ele caiu, ou ele pulou. Seu filho Eric Olson, tornado órfão de pai aos 9 anos, depois descobriria pelos jornais que a CIA andava aplicando LSD em in-voluntários em Fort Detrick, o laboratório de armas biológicas e chemical warfare do US Army. O programa MK-ULTRA tinha como intento produzir um “truth serum”, uma droga que obriga a dizer a verdade. Seria uma arma química na Guerra Contra o Comunismo que estava em curso no Vietnã, no Camboja, na Coréia e na Guerra Fria contra os soviéticos. Na verdade, buscava-se uma poção que serviria como auxílio nas torturas de prisioneiros que a CIA. realiza em nome da “Inteligência”.
Após criteriosa investigação que atravessa décadas, o docudrama persuade o espectador, com farta evidência, de que Olson despencou para sua morte após ser golpeado na cabeça pelos capangas da CIA e dropado inconsciente pela janela do 13º andar. Nem suicídio, nem acidente – execução. Queima de arquivo. Eliminação de um dissidente. Tudo indica, inclusive a tardia mas reveladora exumação do cadáver, que Olson foi “apagado” pois poderia revelar informações constrangedoras sobre “métodos de interrogação” de prisioneiros sob custódia envolvendo LSD enfiado à força em sujeitos submetidos à imperial tortura. Olson pediu demissão de seu cargo, mas os manda-chuvas no Exército não quiseram este ex-empregado vivo e podendo falar. Os manuais de assassinato da CIA., nos anos 50, utilizados na Guerra de Coréia, no golpe de Estado desferido na Guatemala ou no combate ao comunismo doméstico e soviético, previam mecanismos bem semelhantes àquele que vitimou Olson.
Este caso revela também a falácia grotesca do discurso proibicionista quando tenta fazer-nos crer que o ácido lisérgico é uma substância perigosa, digna de figurar no famigerado “Schedule 1”, pois faria certos sujeitos pularem de janelas como F. Olson. Fica o desafio lançado a qualquer bronco proibicionista anti-lisergia que nos apresente casos, estatisticamente significativos, que nos permitissem afirmar uma conexão entre consumo de LSD e práticas suicidas. Na verdade, não apenas inexistem relatos de overdose ou severa intoxicação por LSD, como também ele mostra-se promissor na terapia de pessoas com tendências suicidas. O ácido lisérgico é revitalizante e biofílico; necrófila é a CIA! Esta atrocidade exemplar também nos conduz a compreender todo o contexto de combate à contracultura lisérgica que estava pulsante na época em que tanto a Geração Beat quanto o Movimento Hippie ascenderam nas asas de uma abertura sem precedentes das portas e janelas da percepção.
CURANDO-SE DA LOUCURA DOS NORMAIS
Se considerássemos a consciência sóbria num viés moral, como virtude análoga à temperança, e em contraste considerássemos a consciência “embriagada” como vício, censurável por destempero, estaríamos apenas aderindo a um esquema explicativo simplista, dualista e maniqueísta. Um pensador nietzschiano poderia aí farejar um excesso de “moralina” – além de um crasso desconhecimento histórico acerca do papel do dionisismo na cultura.
Alguém que desejasse permanecer do berço ao túmulo sem jamais retirar sua consciência dos trilhos da normalidade mereceria ser considerado como eticamente admirável e digno de imitação? Ou poderia ser lido como uma espécie de extremista do ascetismo? Este hipotético sujeito inflexivelmente “careta” poderia até vender-se como campeão da moderação, mas seria interessante sondar suas motivações afetivas. Não encontraríamos subjacente a esta postura um temor excessivo em relação à experiência de dissolução do ego costumeiramente no comando, um fechamento de portas diante das possibilidades abertas pelas vivências ébrias?
A sobriedade e a abstinência podem ser interpretadas como condição que nos concede a benesse da lucidez, este inestimável bem cognitivo, mas por outro viés podem ser lida na chave da auto-limitação, do fechamento-de-si. O apego à mente sóbria pode tornar-se excessivo, privando o sujeito de acessar outros estados psicoafetivos e sensoriais que se escancaram a partir da ingestão de certas substâncias com potencial de catalisar neuroplasticidade ou ampliar os poderes de nossa sensorialidade normalmente tão embotada.
Embriagar-se não é necessariamente buscar uma fuga covarde diante do real; não se pode generalizar e afirmar que o psiconauta busca obnubilar-se, alienar-se, aniquilar em si, provisoriamente, os poderes racionais em prol de uma curtição alienada. Na verdade, com frequência as “viagens” psicodélicas são descritas pelos sujeitos como vivências existencialmente significativas e memoráveis que dizem respeito à desalienação, ao descondicionamento, ao aprendizado de algo novo e precioso.
A experiência psicodélica é muito mais complexa e multifacetada do que um mero colapso da sobriedade racional conducente a uma espécie de caos da indistinção e do delírio sem limites, como temem muitos daqueles que não se permitem nem mesmo uma única “viagem”. Não se trata, aliás, de postura apenas presente no campo do conservadorismo “de direita”, como demonstrou Delmanto com exemplos históricos do quanto certas vertentes da esquerda, inclusive revolucionária, abordaram as drogas por um viés proibicionista e censor (Cf. DELMANTO. Camaradas Caretas: Drogas e Esquerda no Brasil. Ed. Alameda, 2015.)
Vivida por dentro, a experiência psicodélica é com frequência sentida como intensificação de todos os poderes cognitivos e intelectivos do sujeito; como ampliação ou expansão de uma consciência que em seu estado normal sóbrio permanece em vasta medida ‘trancada’ a uma miríade de estímulos sensoriais do ambiente, sem ativar boa parte de seus poderes mentais latentes.
Várias teorias da mente poderiam ser estudadas e analisadas para que pudéssemos avançar na compreensão destes fenômenos: penso em autores como Bergson, W. James, A. Huxley, T. McKenna, M. Pollan etc. Talvez ainda sejamos muito reféns de um dualismo mente/corpo, de raiz cartesiana, que nos impede de perceber e compreender o quanto há de conexão íntima e visceral entre estômago, pulmões, coração e cérebro/mente. Em nosso “espiritualismo” alimentado também pelas religiões instituídas, separamos a mente do corpo por um abismo – e este é transposto quando uma substância psicodélica entra nosso organismo. O café que bebemos pela manhã e que impacta nosso foco e vigília é apenas um exemplo fraco e banal dos efeitos mentais gerados por algo que assimilamos pela digestão. Já LSD, DMT, MDMA, THC, CBD etc. fornecem algo muito mais impactante e transfigurador, apontando para a conexão visceral entre estados mentais e moléculas provenientes daquilo que adentra nosso trato digestivo e corrente sanguínea.
A embriaguez psicodélica pode ser terapêutica? Se o leitor considera a pergunta estranha, tente considerar o quão normal nos soa aos ouvidos a tese de que a mente sã é a mente sóbria. E aí reside a estranheza maior: quase ninguém questiona o axioma, o quase-dogma, que quer fazer rimar sanidade e sobriedade (e as diabas das palavras de fato rimam, para nossa infelicidade!). A reconsideração radical aqui proposta inverte a norma para propor о caminho ébrio como cura da enfermidade terrível da normose e da caretice transformados em dogmas. Tais reflexões são inspiradas também por Aldous Huxley, que inverteu a fórmula marxiana “a religião é o ópio do povo” para afirmar que “o ópio é a religião do povo”:
“Todos os narcóticos, estimulantes, relaxantes e alucinógenos naturais conhecidos do botânico e do farmacólogo modernos foram descobertos pelo homem primitivo e estão em uso desde os tempos imemoriais. O hábito de tirar férias do mundo mais ou menos purgatorial, que nós criamos para nós mesmos, é universal. Moralistas podem denunciá-lo, mas, apesar dos discursos desaprovadores e da legislação repressiva, o hábito persiste, e as drogas alteradoras da mente estão disponíveis em toda parte. A fórmula marxista ‘A religião é o ópio do povo’ é reversível, e pode-se dizer, ainda mais verdadeiramente, que ‘O ópio é a religião do povo’. Em outras palavras, a alteração da mente, mesmo que produzida (seja por meios devocionais ou ascéticos ou psicoginásticos ou químicos), sempre foi considerada um dos maiores, talvez o maior, dos bens alcançáveis.” (HUXLEY, Aldous. Moksha.)
Quem usa substâncias psicodélicas ou aprecia maconha com fins de sociabilidade ou criatividade expandidas muitas vezes cria algo que jamais teria nascido caso o criador não tivesse se colocado em travessia rumo às “portas da percepção purificadas e expandidas” (como Huxley, nas asas de William Blake, dizia). Leite relata as vivências que teve sob o efeito do LSD como um “surto de fertilização”: “como se a floresta densa e quieta de meus neurônios tivesse sido invadida de repente por uma horda de insetos, pássaros e morcegos polinizadores, dando origem a um surto de fertilização, uma algazarra dionisíaca em que dançavam juntos clareza conceitual e sensações não lapidadas.” (LEITE, Psiconautas, op cit, pg. 114.)
É recomendável levar a sério a noção de que o campo das artes e da cultura também possa se beneficiar imensamente da Renascença Psicodélica: é fato que uma criatividade efervescente muitas vezes emerge de uma boa ebriedade. Hemingway precisa ser purgado de seus arroubos de alcoolismo – “write drunk, edit sober” – mas disse algo digno de matutarmos: não será melhor expressar-se ébrio e editar sóbrio? Como nos ensina também a geração Beat, através de Kerouac, Ginsberg, Burroughs e Ferlinghetti, não é culturalmente produtivo permitir que a mente crie sob efeito de drogas, que fluxos de consciência expandida derramem-se sobre a página, o canvas, o filme? Será que teríamos hoje obras-primas como o Sgt. Peppers dos Beatles ou as gravações de Jimi Hendrix, Grateful Dead e Os Mutantes se não fosse pela fertilização gerada pela psicodelia?
A BELEZA NECESSÁRIA
Concordamos com o Huizinga quando ele diagnostica que há “uma imperecível necessidade humana de viver em beleza” (Cf. Homo Ludens. Ed, Perspectiva, 2019, pg. 71). A Cruzada moralista do proibicionismo fracassa e seguirá fracassando pois os seres humanos não desapegam de seu anseio por uma boa vida – que é também uma vida bela. É impossível ofuscar ou ocultar plenamente das pessoas o fato de que a natureza está repleta de moléculas presentes em plantas que interagem com a nossa mente de maneira a transfigurá-la e torná-la mais apta a ser o escancarado recipiente da Beleza cósmica.
Em termos nietzschianos, podemos considerar que “só como fenômeno estético está justificada a existência”. Isto significa que o sentido da vida não está necessariamente ligado a uma construção racional, a um produto do Lógos, e pode estar conectado ao florescimento pleno de um sujeito senti-pensante, que vai-além-do-humano-atual pois torna-se apto a uma fruição estética ampliada, que abrange tanto a arte humana quanto o Cosmos em que estamos imersos. Também significa que o sentido da vida somos nós mesmos que construímos ao tentarmos transformar a existência em obra de arte encarnada, processo que certamente pode ser catalisado por substâncias psicodélicas que manifestam e tornam disponíveis poderes da mente que em nós dormem latentes e subutilizados.
Nos limites deste ensaio não poderemos sequer adentrar com os dois pés em outra temática de extrema relevância e que deixaremos largamente inexplorada: os psicodélicos devem sempre ser consumidos em contexto ritualístico, como ocorre costumeiramente com o uso sacramentado da ayahuasca ou do peiote em comunidades nativas, nos Andes, na Amazônia ou entre os Native Americans da América do Norte? Ou é plenamente defensável e justificável que sejam utilizadas em contexto plenamente profano e secular, como em hospitais e clínicas psiquiátricas, consultórios de psicoterapia, centros de saúde vinculados ao SUS, escolas-de-arte de todas as linguagens, além de festivais artísticos-culturais usualmente descritos como recreativos? Talvez a própria barreira entre um uso medicinal que deve ser tornado lícito e um uso recreativo que deve permanecer ilícito deva ser derrubado para um mais amplo acesso àquilo que talvez possa ser urgentemente necessário para nos salvar de uma catastrófica queda no abismo.
DESCRIMINALIZEM A NATUREZA!
Diante da crise na saúde mental, exacerbada pela pandemia de covid 19 e sua má governança, muitos pensadores aqui evocados têm defendido que seria insano manter proscritas e proibidas as terapias psicodélicas. Tendo em vista que também somos confrontados por uma crise ecológica severa nas condições da nova era geológica do Antropoceno, precisamos com urgência realizar bruscas transições civilizacionais e saltos quânticos de consciência que mitiguem o aquecimento global e que nos afastem da queima de combustíveis fósseis e das predações que se expressam por desmatamento, extrativismo, carnismo e extinção massiva de espécies.
Postos tais desafios, não é desdenhável a tese de que uma psicodelização massiva possa ser parte da solução: “our survival as species may depend on it” é a última frase da série de Pollan e nela celebram-se ativismos como do “Decriminalize Nature” que irradiou-se a partir de Oakland (CA). Outro campo extremamente promissor da conjuntura aqui explorada concerne a conexão entre o uso de psicodélicos e a expansão de uma awareness acerca da ecologia enquanto ciência da interconexão entre vidas e ambientes – algo que vem sendo explorado por pensadores como Stamets, Arne Naess, Callenbach, além do próprio Hoffman, o cientista suíço que sintetizou a “criança problema” LSD.
Plantas de poder curativo, com potencial de expansão da consciência, deveriam poder ser cultivadas sem criminalização de seus jardineiros e beneficiários, pois propiciam insights preciosos sobre a conexão entre matéria e mente, vida e ambiente, escancarando para nós os caminhos cruciais para a reconexão com a sociobiodiversidade concreta cuja salvaguarda é tão indispensável para que possamos krenakianamente adiar o fim do mundo.
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SOBRE O AUTOR: Nasci em São Caetano do Sul (SP) em 1984. Sou graduado em Comunicação Social / Jornalismo pela UNESP e em Filosofia pela FFLCH/USP. Tenho mestrado em Ética e Filosofia Política pela UFG com foco no pensamento de Nietzsche. Atuo como professor efetivo de filosofia e ciências sociais do Instituto Federal de Goiás (IFG) desde 2015. Atualmente realizo doutorado em Filosofia da Arte na UFG, estudando Filosofia e Filme no Antropoceno, e estou em período de pesquisa no exterior – com bolsa CAPES “sanduíche” – na Universidade de Amsterdam/ASCA (Amsterdam School of Cultural Analysis), sob orientação de Monique Roelofs. Sou o criador e coordenador do projeto A Casa de Vidro, cujo website tem 13 anos de história (2010 a 2023) e pode ser acessado em https://www.acasadevidro.com. Nos últimos 4 anos, também coordeno o Ponto de Cultura A Casa de Vidro, em Goiânia, onde realizamos atividades relacionadas a música, cinema, livraria, gastronomia vegana, ativismo e CMI. Sou cineasta independente que realiza documentários há mais de 10 anos e atuo também como músico em algumas bandas do cenário goianiense. Enquanto produtor cultural, realizo eventos e festivais como o “Confluências – Festival de Artes Integradas”, com 9 edições já realizadas em Goiânia.
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Publicado em: 13/12/23
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia