O novo álbum do Francisco, el hombre desembarcou entre nós, em 2019, com o estrondo de uma nave espacial repleta de aliens cujas armas são o som incandescente, a poesia subversiva e as atitudes queer. Este OVNI musical desta matilha de neo-hippies apunkalhados chegou tentando utilizar a arte como caminho para “queimar o mapa / traçar de novo a estrada / Ver cores nas cinzas / e a vida reinventar” (para evocar “Triste, Louca ou Má, canção de destaque do álbum anterior, Soltasbruxa).
Segundo a Rolling Stone, a banda “incendiária e combativa joga gasolina na monotonia com novo disco Rasgacabeza“, em que “usa a influência do punk rock para lidar com os tempos conturbados no Brasil”, nas palavras do crítico Pedro Antunes.
Tudo pega fogo – literal e metaforicamente – nos primeiros ritmos e melodias de um disco que começa com altas doses de adrenalina e convocando a acender e acordar todos os rituais da “pulsão de vida”:
“Queima o véu da sua vista
Abana essa monotonia
Autonomia chama
Combustão que sana
Acende, acorda, acorda, acorda…”
Mas nem tudo no álbum é assim fogoso: esta festa inicial da incandescência encontra seu ponto de serenidade e sabedoria na belíssima “O Tempo É Sua Morada”, prova inconteste de que Ju Strassacapa é uma das novas gênias da nossa música e uma das melhores cantoras e compositoras em atividade no Brasil. Mergulhe na viagem audiovisual:
A canção, como explica Mateo Piracés-Ugarte à Rolling Stone Brasil, foi “criada a partir das experiências deles no Dia de Los Muertos (ou Dia dos Mortos). O Dia dos Mortos tem uma ideia interessante de dar um novo significado para a morte. De nunca se esquecer, de celebrar as pessoas que morreram. A ideia era essa, matar o Soltasbruxa“, explica Mateo, referindo-se ao álbum anterior da trupe, propulsionado a status cult por canções-hino como “Bolsonada” e “Triste, Louca ou Má”.
É por estas vias ousadas que o álbum “Rasgacabeza” (2019), sucessor do lendário “Soltasbruxa” (2016), vem pra propor outros caminhos culturais e comportamentais a um país sem rumo. Como um Cavalo de Tróia cultural, destinado a hackear por dentro a cultura mainstream podre e pustulenta do Bolsonarismo relinchante, o Francisco el Hombre chega com toda sua exuberância pra cumprir com a recomendação de Emma Goldman: “Se eu não posso dançar, não é minha revolução…”
Em menos de 30 minutos, breves mas de alta intensidade, o álbum novo mostra a alta temperatura e pressão da arte fogosa realizada com tanta maestria pelo quinteto composto por Juliana Strassacapa, Mateo Piracés-Ugarte, Sebastián Piracés-Ugarte, Andrei Martinez Kozyreff e Rafael Gomes. Neo-tropicalista e conectado ao que de melhor se faz na música latina (de Perotá Chingó a Muerdo, de Churupaca a Anita Tijoux), o Francisco El Hombre revela-se uma banda tropicaliente irresistível e em metamórfica evolução artística.
Uma trajetória que enche-nos de fascínio e que faz crer na pulsação indomável da cultura brasileira, apesar das desgraças ocasionadas pela avalanche de retrocessos nos direitos sociais duramente conquistados e hoje avassaladoramente detonados. Em “Matilha (Coleira ou Cólera)”, a banda realiza um video-clipe impressionante, “inspirado em acontecimentos que vêm ocorrendo no Brasil desde 2018”, e conclama a uma vibe insurrecional – depois do ele não, puxam o coro do ele vai cair:
É um video-clipe que sintetiza a fúria cultural contra o empoderamento da extrema-direita obscurantista, alterofóbica e violenta – e que está alinhado ao climão distópico que marca também o “Boca de Lobo” do Criolo.
Como oráculos de uma festança revolucionária ou insurreição orgiástica, os músicos do Francisco se lançam no transe, numa cultura da exuberância, num neobarroquismo cheer que quase flerta com os Dzi Croquettes, mas que sabe também investir num classudo indierock intimista (em diálogo com o trabalho de Carne Doce e Flaira Ferro).
Uma banda que quer nos fazer sentir o “calor da rua” e que tornou-se talvez a mais emblemática agremiação da atual arte brasileira a manifestar o que eu chamaria de Espírito Queer. Um ethos de subversão de todos os paradigmas de comportamento impostas pela tirania careta. Uma atitude neo-hippie, com um ritmado que também recupera temperos à la Madchester (ecos de Happy Mondays, Stone Roses), que evoca uma eletro-rock à la Primal Scream, que torna a máquina rítmica da banda algo como um Convite para o Eldorado, para a utopia La Belle Verte, para outro mundo possível…
Uma música onde pulsa diversidade e incandescência, realizada por jovens cheios de vida que sentem que nossa morada (provisória) é o Tempo. E que este é escasso demais para o desperdiçarmos com arranca-tocos destinados a impor a Ditadura da Caretice, da Uniformidade, do Modelo Único a que todos deveriam conformar-se.
Com “Bolso Nada”, eles fizeram história ao conceder ao Brasil a mais significativa canção de rebeldia e escracho contra o fascista calhorda que se elegeu fraudulentamente em 2018, impulsionado pela prisão injusta de Lula. Chamaram Bolsonaro de “cara escroto” sem meias palavras, mas fizeram sobretudo uma crítica alegre, jubilosa, cheia de capetices e despejando glitter: “desrespeito é o que prega, então é o que colherá! / jogo purpurina em cima para o feio embelezar!” Historiadores do futuro poderão evocar a época do Pesadelo Bozonazi que ora atravessamos evocando tais versos emblemáticos:
“Se ao fascista é concedido
Cargo alto e voz viril
Vai lucrar do desespero
Essa loucura já se viu
Bolso dele sempre cheio
Nosso copo anda vazio
Mesquinhez, intolerância,
Bolsonada que pariu!”
Se um espírito punk e escrachado pulsa em “Bolsonada” e arrasa com a monotonia em vários momentos de Rasgacabeza, o Francisco também vem se notabilizando por reinventar o folk. Que banda atual é capaz de transitar com tanta fluência entre o punk e o folk? “O Tempo é sua Morada” é a investida de 2019 que dá sequência à obra-prima “Triste, Louca ou Má” de 2016.
Nesta última, os músicos inscreveram pra sempre o nome na história da MPB com uma canção que já virou um hino queer, propiciador de momentos de transe coletivo quando interpretada ao vivo. Um sensível e inteligente manifesto em defesa de todos aqueles que a sociedade rotula, estigmatiza e vilipendia por terem se recusado a seguir a “receita cultural” (machista, heteronormativa, patriarcal, autoritária, binária, monocromática, monótona, Bozoasnal…). A literatura brasileira ganhou, com esta canção, uma das melhores poesias do século 21:
“Triste louca ou má
Será qualificada
Ela quem recusar
Seguir receita tal
A receita cultural
Do marido, da família
Cuida, cuida da rotina
Só mesmo rejeita
Bem conhecida receita
Quem não sem dores
Aceita que tudo deve mudar
Que o homem não te define
Sua casa não te define
Sua carne não te define
Você é seu próprio lar
Ela desatinou
Desatou nós
Vai viver só
Eu não me vejo na palavra
Fêmea: Alvo de caça
Conformada vítima
Prefiro queimar o mapa
Traçar de novo a estrada
Ver cores nas cinzas
E a vida reinventar…”
Com o novo álbum, Francisco El Hombre mostra que, somado ao BaianaSystem e seu magistral O Futuro Não Demora (já esmiuçado aqui n’A Casa de Vidro), o grupo é no Brasil contemporâneo um dos poucos capazes de shows que são autênticos rituais xamânicos. Um dos poucos que merece o elogio que se dirigia ao The Clash: “a band that matters”.
Cientes da importância de suas propostas estético-comportamentais de ruptura, de transgressão de normalidades confinantes, os músicos ainda assim sabem abandonar-se ao deleite inocente da dança lúdica, deliciosamente absurda, celebração da dinâmica de corpos que movem-se em sintonia com o planeta e seus elementos.
Em Rasgacabeza, repleto de música de confronto e de júbilo, o que sobressai é o elemento Fogo. É o Francisco el Hombre em incandescência. Deixando o Gelo pra depois. Derretendo com um lança-chamas de música a peste emocional do fascismo, performando na prática uma estética e uma ética do Liquidificador.
Joga tudo no Liquidificador e se joga na mescla! E aí “multidão vira maré”! Talvez aí esteja uma súmula da ética que pulsa nesta música. A Revista NOIZE já soube reconhecer neste novo trampo a centralidade do Fogo. O fogo das chamas dinâmicas, a um só tempo destruidoras e renovadoras:
“Aqui, o Fogo é tanto símbolo da destruição do que não serve mais quanto de algo que se acende dentro do ouvinte a cada faixa que passa. Urbano, contemporâneo, ácido e visceral, Rasgacabeza é um disco feito para desacomodar suas certezas. Um álbum histórico que merece lugar na sua coleção.” (Noize)
Baiana System e Francisco el Hombre nos trazem boas novas: a Cultura brasileira não se cala, nossa subversão não se doma, nossa criatividade não aceita o amargo cálice do “cale-se!”
O futuro não demora – e nele o Bolsonazismo será apenas as cinzas de um pesadelo superado. O inverno é deles mas a primavera será nossa.
Convite à utopia que já se pratica desde já, “Rachacabeza” e “Soltasbruxa” são as Dionisíacas Tropicalientes de um novo tempo em gestão, cheio de gente que pulsa empatia e criatividade, preferindo sempre o colorido ao monocromático, o múltiplo ao binário, o amor ao ódio. O tipo de música que importa tanto pois deseja incandescer as atitudes daqueles que, queimando os mapas, tratam de juntos a vida reinventar.
Por Eduardo Carli de Moraes
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OUÇA:
SOLTASBRUXA
RASGACABEZA
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Publicado em: 17/03/20
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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