RAY BRADBURY
[Martian Chronicles, ed. Globo, 298 pgs., trad. Ana Ban e apresentação de Jorge Luis Borges]
por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro
Que importância poderia ter um romance sci-fi dos anos 1950 para nossa reflexão e deliberação coletivas acerca da preocupante situação contemporânea, onde o ímpeto de Prometeu de alguns humanos manifesta-se em empreitadas Elon Muskianas de conquista espacial, como aquela movida pela SpaceX?
Em momento de emergência de ativismos ecológicos que enunciam que “não há planeta B” – e este interessante artigo na Aeon explica porque estes ativistas ambientais estão provavelmente corretíssimos e é um absurdo sonhar com um novo lar doce lar em Marte (de atmosfera irrespirável e clima bem mais frio do que o da Terra) – esta fantasia presume que a humanidade (na verdade uma minúscula fração dela – digamos, um milhão dos 8 bilhões hoje vivos) como podendo existir sem a biosfera com a qual co-evoluímos.
Neste contexto, talvez haja sim pertinência de sobra em um retorno a Bradbury e aos ensinamentos de uma de suas masterpieces, ainda que tenha sido escrita há mais de 70 anos. Após uma exploração dos temas principais e citações significativas de Martian Chronicles, vamos buscar saber como esta obra poderia dialogar com os novos movimentos cívicos do tipo Fridays for Future ou Extinction Rebbelion. Movimentos ainda não tão multitudinários quanto mereciam, mas que já têm seus líderes e protagonistas (como Greta Thunberg, Bill McKibben, Naomi Klein, Eliane Brum/Sumaúma etc.), e que sobretudo reivindicam um cuidado com o planeta A ao invés de megalomaníacos investimentos de recursos em fantasias de imperialismo intergalático.
Estes civil uprisings demandam uma solução coletiva urgente que nos salve da distopia iminente do apartheid climático e dos extermínios en masse dos refugiados das catástrofes do Antropoceno (o número deles é crescente e constitui-se como uma das piores tragédias humanitárias em curso no planeta, cf. ACNUR-ONU).
Diante dos cataclismos que o superaquecimento planetário fará advir, e que tendem a tornar-se mais ferozes no futuro, precisamos de senso crítico – e satírico! – para encarar a tarefa de desconstrução da fantasia de uma Humanidade transplantada para Marte e continuando ali a conturbada carreira da civilização capitalista moderna nos mesmos termos… após o pior dos apocalipses por esta engendrado. A começar por esta crítica fulcral que Bradbury nos ajuda a formular: nunca caberemos todos – only a happy, privileged few! – nesta pretendida nova diáspora, e esta será então capitaneada por um bando de capitalistas ricaços com os mesmos vícios que estiveram na raiz da produção do cataclismo atual.
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Lá pelos idos de 2008, comecei a descobrir a obra deste magnífico escritor: Crônicas Marcianas foi o primeiro livro de Ray Bradbury (1920 – 2012) que li – e eu não havia visto ainda o Farenheit de Truffaut. “Deve ser um bom passatempo”, pensei comigo antes de embarcar na leitura, não botando muita fé no valor artístico do treco – minha intenção era apenas buscar um aprazível entretenimento natalino, depois de um semestre repleto de estudos USPianos que me meteram na cuca demasiados conceitos de Kant e seus comentadores – e eu quis fugir num foguete para visitar outras paragens linguísticas, tirando férias do métier de estudante de filosofia numa temporada em Marte.
Acabei ficando positivamente chocado com o poder e a qualidade deste livro de Ray Bradbury, que desde então passei a considerar um dos maiores mestres da literatura de ficção científica no séc. XX junto com Kurt Vonnegut, Philip K. Dick e Stanislaw Lem, dentre outros. Mais do que um belo livro dentro de seu gênero restrito, este Crônicas Marcianas é um romance fino até mesmo se julgado dentro do universo bem mais vasto da Literatura Fantástica.
“Literariamente o próprio Bradbury desenhou sua árvore genealógica em um depoimento: se vê como filho de Julio Verne, sobrinho de H.G. Wells, primo de Edgar Allan Poe e filho de Mary Shelley, a criadora de Frankestein. Sem contar os heróis Flash Gordon e Buck Rogers, que considera seus irmãos”, comenta Donizete Galvão no prefácio.
Não há nada de exagero em colocá-lo lado a lado com tão respeitável panteão: a obra é de fato um pungente retrato imaginativo, sombrio e distópico que soa como um conto fúnebre de Poe ou algum excelente filme de terror de gelar a espinha. Repleto do que Jorge Luis Borges chama de “deleitáveis terrores” que fazem com que o grande escritor argentino se pergunte, inquieto e fascinado:
“O que fez esse homem de Illinois, pergunto-me, ao fechar as páginas de seu livro, para que episódios da conquista de outro planeta povoem-me de terror e solidão? Como podem tocar-me essas fantasias, e de modo tão íntimo?”
Esqueçam este esterótipo fake de um poder alien malévolo que quer destruir todos os humanos – em As Crônicas Marcianas, a vilania é inteirinha humana e os marcianos nada tem de demoníacos – já nós… As Crônicas Marcianas estão muitíssimo distantes de narrar um tolo confronto entre ETzinhos verdes com arminhas a raio laser que digladiam contra os humanos por supremacia na Via Láctea. É, ao contrário, uma obra profundamente dark e tétrica, sendo seu andamento ou rítmica narrativa muito mais low-key do que frenético. No cinema equivaleria mais a um filme de Tarkovsky ou David Lynch do que às estéticas de ação em frenesi de figuras como Verhoeven, Cameron e Tim Burton (entre outros) em filmes de correria ininterrupta como Total Recall, Terminator e Marte Ataca!.
Bradbury, com sua escrita concisa e direta, sem grandes ornamentos mas cheia de ironia e crítica implícitas, vai destilando uma lucidez que beira a crueldade nas páginas deste livro realmente assustador. Lançado em 1950, o livro espelha o estado de espírito paranóico e desconsolado do pós-Segunda Guerra Mundial na América do Norte – vale notar que o livro saiu um ano depois de 1984 de Orwell e compartilha com este o mesmo zeitgeist, apesar do Oceano Atlântico que separa os autores. E vem Bradbury nos entregar um livro carregado de crítica social: contra o imperialismo, o racismo, o consumismo, a futilidade e a superficialidade do american way of life que ameaça se auto-exportar para Marte. Pobres dos marcianos!
Esta sensação de poor martians! prevalece por aqui pois os humanos invadem o planeta e fazem sobretudo merda em escala gigantesca. É uma tragicômica shitstorm que Bradbury descreve com uma graça que o coloca no nível de humor cáustico também atingido por autores como Kurt Vonnegut, Antony Burgess ou Ian McEwan em seus melhores momentos (Player’s Piano, A Clockwork Orange e Machines Like Me, por ex.).
A ameaça de uma hecatombe nuclear pairava então como uma plausível ameaça sobre as cabeças americanas (e humanas). No fim dos anos 40, logo depois do fim de uma sangrentíssima conflagração mundial, viam uma nova rixa tomar o lugar da antiga – e o que garantia que os russos, construídos pelo delírio paranoico anticomunista como comedores de criancinha e coisa pior, quando lhes desse na telha, não iriam chover as bombas H sobre Washington e Nova Yorke, ainda que como uma vingança tardia por Nagasaki e Hiroshima, tornando o planeta inadequado para a vida? Sim: a Terra podia, a qualquer momento, se tornar um imenso ossário, cemitério a céu aberto, onde as ruínas de uma civilização morta e os cadáveres carbonizados de todas as criaturas estariam como triste memento da estupidez humana.
“Qualquer pessoa sensata queria ir embora da Terra”, narra Bradbury, com o “tom” de quem vê um planeta condenado e já pensa que a única salvação para a sobrevivência da humanidade é subir num foguete e ir procurar uma nova morada nas estrelas. Este sonho de escape marca o cinema de várias eras e diversos tons de produção – do Hollywoodian flick que Verhoeven fez em Total Recall, adaptando Philip K. Dick, ao recente triunfo do cinema brasileiro Marte Um.
O mais notável nesta obra de Bradbury, e que prefigura a saga Avatar de James Cameron, é a inversão que se opera na balança entre mocinhos e vilãos: pois são os TERRÁQUEOS que puderam ir a Marte os verdadeiros bandidos em “As Crônicas Marcianas”! É a raça humana que é descrita como corrompida, bélica, gananciosa, superficial e imoral – um bando de trogloditas e vândalos que vai até Marte com intenções IMPERIALISTAS e COLONIZADORAS, exorbitando de presunção e ignorância, inconscientes do mal que irão gerar. Muitos dos astronautas de Bradbury parecem com alguns dos mais imprestáveis personagens de Bukowski:
“tinham arriscado a vida por uma coisa grande e agora queriam gritar e beber até cair, disparando suas pistolas para demonstrar como eram maravilhosos por terem aberto um buraco no espaço e conduzido um foguete até Marte” (pg. 100).
É com ironia cortante que Bradbury descreve os “planos” dos recém-chegados – um bando de trigger-happy yankees – num planeta cheio de ruínas de civilizações marcianas aparentemente mortas:
“Haveria tempo para lançar latas de leite condensado nos orgulhosos canais marcianos; tempo para os exemplares do jornal New York Times saírem voando e, farfalhando, forrar o leito dos oceanos solitários e cinzentos de Marte; tempo para que cascas de banana e papéis de piquenique se infiltrassem nas delicadas ruínas de antigas cidades dos vales marcianos…” (99).
É brilhante o paralelo que Bradbury acaba estabelecendo entre o colonialismo no nosso passado histórico terráqueo e a possibilidade da aparição de um novo colonialismo, desta vez intergaláctico:
“O senhor se lembra do que aconteceu com o México quando Cortez e seus belos amigos chegaram da Espanha? Toda uma civilização foi destruída por pessoas preconceituosas, gananciosas e donas da verdade. A história jamais perdoará Cortez…” (121), comenta o personagem Spender.
É esse o paralelismo principal que vai nortear a narrativa de Ray Bradbury. Ele parece reiterar a todo instante que A INVASÃO do HOMEM BRANCO EUROPEU E CRISTÃO à África e às Américas, onde chegou para pilhar, explorar, escravizar, destruir crenças e deixar uma imensa pilha de cadáveres e ruínas, não é muito diferente da atitude desta Humanidade Grotesca que vai se meter a besta e AVANÇAR sobre esta Nova África que é… o Pobre Planeta Marte. O imperialismo intergaláctico é o novo colonialismo opressor!
“…e os foguetes [chegando em Marte] esmagavam todos os nomes com marretas, transformando o mármore em argila, despedaçando os marcos de barro que davam nome às antigas cidades, e nesses escombros enfiavam-se postes suntuosos com novos nomes… então chegaram os homens sofisticados da Terra. Vinham em grupos e em excursões de férias, em pequenas viagens para comprar bugigangas, tirar fotografias e sentir a ‘atmosfera’; vinham fazer estudos e aplicar leis sociológicas; chegavam com estrelas, condecorações, regras e regulamentações, trazendo um pouco da burocracia que tinha se espalhado sobre a Terra como uma erva daninha alienígena…” (180-81)
Por isso o grande HERÓI MÍTICO de Crônicas Marcianas, Spender, é um outlaw, um marginal, um astronauta desertor, um aliado de Marte, que percebe o tamanho do MAL que a humanidade causaria ali e tenta SABOTAR a missão de colonização – ainda que, para isso, tenha que se tornar ASSASSINO de seus próprios COLEGAS. “Este planeta, nós vamos despedaçá-lo, arrancar sua pele e transformá-lo à nossa imagem e semelhança”, pondera o grande misantropo justificado Spender, lembrando-se com melancolia do destino de seu planeta de origem: “Os homens da Terra têm talento para acabar com coisas grandes e belas”. Seu discurso é poderoso:
“A única razão porque não montamos barraquinhas de cachorro-quente no meio do templo de Karnak, no Egito, é porque estava fora de mão e não era uma grande oportunidade comercial. Mas aqui, tudo é antigo e diferente, e precisamos nos fixar em algum lugar para começar a estragá-lo. Vamos batizar o canal de canal Rockefeller e a montanha, de montanha Rei George, e haverá cidades chamadas Roosevelt, Lincoln e Coolidge, coisa sem sentido, porque existem nomes adequados para todos esses lugares… Eles [os marcianos] sabem que estamos aqui para cuspir em seu vinho e imagino que nos odeiem…” (107)
“O senhor ouviu os discursos no Congresso antes de partirmos! Se as coisas derem certo, eles querem instalar três centros de pesquisa atômica e depósitos de bombas nucleares em Marte. Isto significa o fim de Marte; todas estas coisas maravilhosas desaparecerão. (…) Eles vão fabricar suas bombas atômicas imundas aqui, brigando por bases para travar guerras. Não basta terem estragado nosso planeta, precisam mesmo estragar outro? (…) Como é que o senhor se sentiria se um marciano vomitasse bebida rançosa no chão da Casa Branca?” (120-21)
Por estas poucas citações á se vê que o livro é uma obra literária muito mais preciosa do que parece à primeira vista – e que vai muito além de ser passável entretenimento. É muito mais uma crítica à cultura capitalista norte-americana do que um exercício de vagas fantasiações sobre o futuro humano. As Crônicas Marcianas é uma ode viva ao poder da imaginação humana como uma instância crítica, irônica e alarmista. Tanto que, no meio destes sombrios relatos, sobra espaço para Ray Bradbury realizar quase um Manifesto Literário defendendo a Literatura Fantástica: é o genial “Usher II”, referência ao célebre conto de Poe, “A Queda da Casa de Usher”.
Se no clássico Farenheit 451, depois filmado por Truffaut, Bradbury já tinha dizimado com ironia mordaz os “bombeiros” que, portando lança-chamas, reduziam a cinzas o Perigoso Saber contido nos livros, aqui ele volta ao ataque àqueles que atacam o gênero de literatura que ele pratica e consumou em obras hoje imorredouras.
Ele narra com mordacidade uma Imensa Conspiração para o assassinato de livros fantásticos. Este bibliocausto é perpetrado por “pessoas com mercurocromo no lugar do sangue”, horrendos estraga-prazeres de “Mente Limpa” e “investigadores de Climas Morais”, membros de uma certa “Sociedade de Prevenção à Fantasia” que dizimou todo o nefasto irrealismo literário…
“Todos os homens, diziam, precisavam encarar a realidade. Precisavam encarar o Aqui e o Agora! Tudo o que não fosse assim precisava ser destruído. Toda a linda literatura que ousasse apresentar a fantasia deveria ser abatida em pleno vôo. (…) Papai Noel, o Cavaleiro Sem Cabeça, Rumpelstiltskin e a Mamãe Ganso, ah, que lamentável… Eles foram abatidos, queimaram seus castelos de papel, os sapos dos contos de fadas, os antigos reis e as pessoas que viveram felizes para sempre (por que, é claro, ninguém de fato vivia feliz para sempre!), e “Era uma vez” transformou-se em “Nunca mais”! E espalharam as cinzas do fantasma Ricksaw com as ruínas da Terra de Oz; fatiaram os ossos de Glinda, a fada boa do Sul, e de Oz, despedaraçaram Policromo em um espectroscópio e serviram João Cabeça de Abóbora com suspiro no baile dos biólogos! O pé de feijão morreu em um emaranhado de burocracia! A Bela Adormecida acordou com o beijo de um cientista e morreu com a picada fatal de sua seringa. E fizeram Alice beber alguma coisa que a reduziu tanto que ela não podia mais gritar ‘Que estranho estranhíssimo’…” (…) Fincaram uma estaca no coração do Halloween e disseram aos produtores desses filmes que, se fossem fazer alguma coisa, que filmassem e refilmassem Ernest Hemingway. Ah, o realismo! Ah, aqui, ah, agora, ah, diabos!” (185-188)
Palavras de um grande fantasista que, dando asas à imaginação, provou em sua brilhante obra que consegue ser imensamente mais lúcido que muito auto-proclamado “realista” por aí. Fantasiando sobre a empreitada imperialista, movida pelo delírio do excepcionalismo humano, numa Marte devastada pelos males do capitalismo tardio modelo for export / for other planets, Bradbury nos dá munição estética, cultural, política, para resistir aos ideólogos do “há um planeta B”. Esqueçam o business as usual concebido como podendo se estender a outros astros de nosso sistema solar. Esqueçam a ideologia que Morozov critica sob o nome de solucionismo do Vale do Silício e que propõe a lorota de que há um tecnofix para tudo.
Como aponta o artigo do Aeon com o qual começamos, e como é reiterado por movimentos como Extinction Rebellion, mais vale investirmos no cuidado com o planeta A, o único capaz de abrigar a sucessão de gerações humanas (aí incluídas as futuras), desde que esta sucessão de humanos esteja inserida numa bioesfera que resulta de milhões de anos de co-evolução:
“We don’t just need a planet roughly the same size and temperature as Earth; we need a planet that spent billions of years evolving with us. We depend completely on the billions of other living organisms that make up Earth’s biosphere. Without them, we cannot survive. Astronomical observations and Earth’s geological record are clear: the only planet that can support us is the one we evolved with. There is no plan B. There is no planet B. Our future is here, and it doesn’t have to mean we’re doomed.” (HAYWOOD/NICHOLSON: 2023, Aeon)
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Publicado em: 08/02/23
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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