“O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”, afirmou a filósofa e escritora existencialista Simone de Beauvoir. Esta cumplicidade dos oprimidos com seus opressores, uma das chaves que explica a perpetuação da opressão, é um tema que urge elucidarmos diante do show de horrores ininterrupto que se passa no Brasil. Aqui, uma parcela assustadoramente grande das massas oprimidas encontra-se “bolsonarizada”, com um apego patológico à ideologia e às práticas do mitomaníaco necrófilo e seu regime da carnificina. Bolsonaro age como se a opressão fosse um item de ostentação, que ele pratica e exige sem escrúpulos nem pudor, e muitos acabam se identificando com esta postura do opressor sem peso na consciência, do vilão que não se deixa frear por normas éticas “de mariquinha”.
Diante da necessidade que realizarmos o diagnóstico da psicologia de massas do fascismo no Brasil bolsonarizado, recuperando inclusive algumas das lições mais preciosas de Wilhelm Reich, Adorno & Horkheimer, Erich Fromm, Stanley Milgram, Hannah Arendt e bell hooks (dentre outros), comecemos por perguntar: como é possível explicar que, mesmo entre os setores oprimidos e espoliados, exista uma considerável fã clube do presifaker miliciano? Como se dá isto: mulheres que apoiam um misógino, afrobrasileiros que votam em um racista, favelados que se alinham a um ricaço elitista, gays que são cúmplices de um notório homofóbico, para além dos estranhíssimos casos tão cotidianos dos “pobres de direita”?
A Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire oferece-nos uma caixa de ferramentas conceituais e uma proposta de práxis que nos capacita a enfrentar este estranho fenômeno: o oprimido que sonha em ser o opressor. Este sonho perverso – querer estar na posição de quem pode oprimir impunemente, ao invés de querer viver em uma sociedade livre da opressão – é um produto fabricado em massa por sistemas de (des)educação e (de)formação onde o objetivo da libertação em relação a todas as formas de opressão não está no horizonte. Como já se repetiu tanto, “quando a educação não é libertadora”, o oprimido passa a sonhar com o destido do opressor: o proleta quer ser o patrão, o lavrador quer ser latifundiário, o precariado rala e reza pra que um dia seja “empreendedor” etc.
Acontece que, pelo mecanismo de introjeção do opressor dentro do oprimido, o mesmo sujeito que é massacrado pela injustiça social em seu trabalho, sendo espoliado dos frutos de seu labor por um patronato impiedoso que lhe rouba a mais-valia e o deixa desamparado de direitos, muitas vezes será hospedeiro de ideologias e de práticas que lhe foram inoculados pelas classes dominantes. No chão de fábrica pode ser um fodido pelo patrão e pelas engrenagens, mas no caminho de volta para casa este oprimido pode acabar sendo transfóbico contra uma pessoa trans no metrô, pode aplaudir os PMs quando vê a notícia de que mais uma chacina terminou com 25 mortos na favela, e pode chegar em casa para praticar abusos machistóides contra a esposa e violências contra seus filhos.
Ao afirmar que nem a desumanização nem o ser-menos aos quais os “condenados da terra” estão sendo submetidos na sociedade da opressão são um destino inelutável, Paulo Freire escreveu sobre nossas tarefas:
“A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como ‘seres para si’, esta luta pela humanização somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas resultado de uma ‘ordem’ injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos. (…) O ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sintam opressores, nem se tornem, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si mesmos e aos opressores. (…) Só o poder que nasça da debilidade dos oprimidos será suficientemente forte para libertar a ambos.” (PAULO FREIRE, Pedagogia do Oprimido. Pg. 41. Editora Paz e Terra.)
Tendo isto no horizonte, neste momento quero compartilhar com vocês algumas ideias que Eliane Brum veiculou após contato fecundo com a obra de W. E. B. Du Bois (que teve sua obra As Almas Do Povo Negro publicada pela Veneta em 2021) e que também ajudam a elucidar o cenário tenebroso em que estamos imersos. Ao escrever sobre o Brasil a partir de Altamira, relatando os casos de autoextermínio de adolescentes naquela que se tornou a cidade mais violenta do país na esteira da instalação do Belo Monstro, Eliane comenta com sua extraordinária lucidez:
“As elites brasileiras se habituaram à lógica de que, para manter seus privilégios, outros perderão seus corpos. Essa lógica infecta toda a sociedade, inclusive suas vítimas. Em países como o Brasil, a ideia de progresso está conectada ao acesso a privilégios. E é do progresso do indivíduo que se trata, já que a ideia de comunidade está arruinada. Estar social e racialmente ‘acima’ de um outro é aspiração mesmo dos subjugados, uma aspiração cada vez maior do que a da emancipação. É a hegemonia do pobre sobre o miserável, da classe média sobre a classe baixa, do negro de pele mais clara sobre o negro de pele mais escura.
O encontro do capitalismo com a escravidão deformou o pensamento. Não é por acaso que o intelectual que melhor definiu esse mecanismo era negro e estadunidense. Em 1935, o pensador W. E. B. Du Bois, uma das mentes mais brilhantes do século 20, criou o conceito de ‘salário psicológico’ para explicar uma das principais funções do racismo: dar ao branco ferrado a sensação de superioridade por ter alguém em situação pior do que a dele, no caso o negro.
Quase um século mais tarde, o fenômeno representado pela eleição de Trump, Bolsonaro e outros pode ser explicado por esse conceito ampliado também para as mulheres e pessoas LGBTQIA+. Para que o salário psicológico tenha efeito, é preciso seguir subjugando outre, em especial num momento em que os subjugados habituais passaram a protestar com mais veemência.
Bolsonaro governa mantendo os ataques racistas, homofóbicos e misóginos, calculando e fabricando fake news para manter o valor de compra e venda do salário psicológico. Ainda é a melhor explicação para o fato de que, mesmo pessoas empobrecidas, vendo seus parentes morrerem de covid19 na fila de hospitais em colapso em 2020 e 2021, seguem apoiando Bolsonaro durante a pandemia. Dependentes do salário psicológico a ponto de aderir àquele que as destrói. As subjetividades não são efeitos colaterais. Ao contrário: elas movem o mundo.” (BRUM, Banzeiro Okotó, Cia das Letras, p. 251)
Quando a subjetividade dos subjugados está sendo formatada massivamente para a identificação com a posição dos que subjugam, quando o opressor é admirado e sua posição é invejada, temos o caldo perfeito para o desastre. Isto acontece cotidianamente sob a vigência da perversidade instituída que chamamos de “neoliberalismo” – aquela vertente do capitalismo que nos desgraça há mais de 4 décadas e que manifestou seu DNA autoritário e militarista já em seu primeiro laboratório, a ditadura militar de Pinochet instalada no Chile a partir de 11 de Setembro de 1973. Este sistema, que prefiro chamar de fundamentalismo de mercado, reduziu a solidariedade a escombros e plantou nas subjetividades por ele formatadas apenas sonhos de consumo e de opressão.
Assim, foram semeadas as condições para a eclosão de uma psicologia de massas propícia ao neofascismo capitalista que o regime assassino de Bolsonaro encarna. Com o valor da solidariedade totalmente esfacelado, o bolsonarismo investe no cada-um-por-si, no vale-tudo no caminho para o topo, mesmo subir pisando nos crânios dos camaradas. É a festa da alienação construindo ruínas em dimensões continentais. Como Milton Santos bem apontou, esta alienação hoje tão disseminada consiste, entre os oprimidos, na falta de percepção do que os une, apesar da diversidade; a consciência alienada frisa o que separa, o que cinde, o que segrega, e não o que congrega.
É dividindo os oprimidos que os opressores reinam. E para dividi-los os opressores precisam colocar-se como modelos, como objetos de desejo, como detentores de um status invejável. Quando os oprimidos engolem esta lorota, quando passam a sonhar com o destino do opressor, do patrão, do subjugador, do dominador, o inédito viável de uma sociedade solidária, norteada pelo valor da justiça social sempre a construir e reconstruir, está perdida. A massificação da alienação já prepara uma colheita de catástrofes.
Sobre o tema da solidariedade necessária em qualquer sociedade que deseje superar a opressão estrutural e a injustiça social acintosa que esta implica, ouçamos novamente Freire, que para além de um mestre para os oprimidos, também pretendia ser um mestre para os opressores, ensinando-lhes caminhos – aos quais preferiram manter ouvidos moucos – para que pudessem também superar a desumanização que oprimir a outrem implica:
“Descobrir-se na posição de opressor, mesmo que sofra por este fato, não é ainda solidarizar-se com os oprimidos. Solidarizar-se com estes é algo mais que prestar assistência a 30 ou 100, mantendo-os atados, contudo, à mesma posição de dependência. Solidarizar-se não é ter a consciência de que explora e ‘racionalizar’ a culpa paternalisticamente. A solidariedade, exigindo de quem se solidariza que ‘assuma’ a situação de com quem se solidarizou, é uma atitude radical. O opressor só se solidariza com os oprimidos quando o seu gesto deixa de ser um gesto piegas e sentimental, de caráter individual, e passa a ser um ato de amor àqueles. Quando para ele os oprimidos deixam de ser uma designação abstrata e passam a ser os homens concretos, injustiçados e roubados. (…) Só na plenitude deste ato de amar, na sua existenciação, na sua práxis, se constitui a solidariedade verdadeira.” Pedagogia do Oprimido, Pg. 49.
A solidariedade verdadeira também se expressa maravilhosamente em uma das frases mais célebres, em um dos ensinamentos ético-políticos mais fecundos do internacionalismo comunista de Ernesto ‘Che’ Guevara, que tremula ainda no nosso horizonte coletivo como missão ainda por cumprir em nossas relações tão desumanizadas: seria preciso que fôssemos sujeitos capazes de tremer de indignação todas as vezes que uma injustiça se comete no mundo e que fundássemos nossa força coletiva nesta congregação de indignações que transcendem fronteiras, nesta caldeira de revoltas que nos irmana enquanto camaradas engajados em parir juntos uma realidade menos sórdida.
A tarefa de “desbolsonarizar” o Brasil é visceralmente uma tarefa da educação e da cultura, um alvo que transcende o âmbito eleitoral e que não tem data para acabar: para que se realize a erosão do ídolo que faz arminha com a mão enquanto paga pau pra Ustra, pré-figurada na tirinha de Laerte com que iniciamos este post, precisamos de todes que ainda não perderam completamente a lucidez da razão, para agir numa mega-campanha cívica de des-alienação, des-opressão, des-humanização, des-bestialização de um país tão profundamente bestializado por este cúmulo da opressão sem máscaras que é o bolsonarismo.
Eduardo Carli de Moraes – Julho de 202
LINK PERMANENTE: https://acasadevidro.com/psicologia-de-massas-do-bolsonarismo/
Publicado em: 07/07/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
PERFEITO
No Lulismo é o oposto não é: Quanto mais oprimido melhor.
Essa imagem do Che Guevara no final chega a ser um insulto aos que estudam história. O cara que matava a pessoa que era gay não tem moral nenhuma pra dizer que tremia por conta de injustiças! Nos poupe!
Eu iria falar isso, mas,seu comentário diz tudo. Pobres coitados que dizem que não estudamos e idolatram ídolos que eram carrascos como Guevara, Zumbi dos palmares, Fidel Castro. Repugnantes!!
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia
jose cortez
Comentou em 20/11/22