Em março de 2022, enquanto o planeta ultrapassa 6 milhões de óbitos causados pela pandemia de covid19 (segundo monitoramento da Universidade Johns Hopkins), torna-se incontornável que encaremos os desafios vinculados aos efeitos psicológicos destes 2 anos de pandemônio, quarentena e severo stress.
A situação é certamente mais grave nos EUA e no Brasil, dois países que juntos perderam mais de 1 milhão e 500 mil vidas humanas por causa da criminosamente irresponsável gestão da crise sanitária capitaneada por Mr. Trump e pelo Capitão Cloroquina. Como tal conjuntura não causaria a propagação em massa daquela condição que Eliane Brum, com sua usual sagacidade, chamou de estar doente de Brasil?
Um estudo publicado pela OMS e divulgado pela Organização Pan-Americana de Saúde (PAHO) aponta que a eclosão da pandemia foi o gatilho para um aumento de 25% na incidência global de depressão e ansiedade. Mulheres, jovens e profissionais da saúde foram os mais duramente impactados:
“One major explanation for the increase is the unprecedented stress caused by the social isolation resulting from the pandemic. Linked to this were constraints on people’s ability to work, seek support from loved ones and engage in their communities. Loneliness, fear of infection, suffering and death for oneself and for loved ones, grief after bereavement and financial worries have also all been cited as stressors leading to anxiety and depression. Among health workers, exhaustion has been a major trigger for suicidal thinking.” (PAHO. COVID-19 pandemic triggers 25% increase in prevalence of anxiety and depression worldwide.)
Já o Jornal da USP aponta: Pandemia pode ter criado um novo transtorno de ansiedade, a coronafobia, “um transtorno de ansiedade caracterizado por medo excessivo, persistente e irreal de situações, pessoas, objetos. Como todo transtorno de ansiedade, a coronafobia é um problema de saúde mental que requer atenção médica e psicológica.
‘Toda fobia tem sintomas físicos, cognitivos e comportamentais. Como sintomas físicos existem as palpitações, os aumentos do batimento cardíaco, aumento da sudorese, que é o suor excessivo, agitação psicomotora e perturbação ou privação do sono’, afirma o psicólogo João Paulo Machado de Sousa. ‘Tem também a sensação de falta de ar, que é um dos principais sintomas da covid-19.'”
Como escreve Gabriela Leite no site Outras Palavras, “outro dado levantado por esse estudo da OMS levanta alarmes para brasileiros”:
“O país é o mais afetado pela ansiedade e o quinto entre aqueles cujos cidadãos mais sofrem de depressão. Talvez porque a pandemia tenha sido sentida com mais intensidade por aqui, afinal somos a segunda nação em número de mortes por covid e a terceira em quantidade de casos. O Brasil também foi considerado o pior do mundo em termos de gestão da pandemia e o pior da América Latina segundo seus habitantes. Além de mortes e infecções descontroladas, o país enfrenta uma grave crise econômica e política, além da volta da fome. Mas não é de agora que estamos no pódio dos transtornos mentais: segundo a OMS, já éramos líderes latino-americanos em 2017, e o IBGE já havia constatado o aumento de 34,2% de casos de depressão entre 2013 e 2019.
O documento lançado anteontem pela OMS tem um objetivo claro: recomendar com veemência o aumento de investimentos em prol da saúde mental em seus países-membros. Para Dévora Kestel, diretora do Departamento de Saúde Mental e Uso de Substâncias da entidade, “Embora a pandemia tenha gerado interesse e preocupação pela saúde mental, também revelou um subinvestimento histórico nesses serviços. Os países devem agir com urgência para garantir que o apoio esteja disponível para todos”. Não custa lembrar que o Brasil cortou 40 bilhões de reais do orçamento do ministério da Saúde, em 2022…”
A sociedade capitalista liberal só oferece soluções privatistas e equivocadas para esta hecatombe global de transtornos psíquicos: o laissez faire ordena que a indústria farmacêutica nos medicalize, e que os indivíduos mais abastados paguem a conta graúda do psicanalista, enquanto os recursos públicos investidos em assistência psicosocial e serviços de atendimento gratuito voltados aos cuidados da saúde mental estão em permanente estado de desmonte, precariedade e sub-financiamento. Em suas reflexões sobre a crise civilizatória que atravessamos, Joaquín Fortanet faz um Convite a politizar o mal-estar:
“Uma das estratégias bem-sucedidas da subjetividade neoliberal é, justamente, ter-nos imposto uma compreensão privada do mal-estar. Como se o estresse fosse apenas uma condição psicológica que não tivesse a raiz de sua compreensão do trabalho e nas condições sociais que nos cercam. A privatização do estresse, a privatização da doença, do mal-estar em geral são, para Fisher, o sinal da despolitização de nossos tempos. Os indivíduos se culpam mais do que culpam as estruturas sociais. E foram levados a acreditar que tais estruturas não têm função em uma vida, que tudo tornou-se apenas uma questão de atitude, de luta, de esforço, de competência. Portanto, o desconforto torna-se individual e deve ser tratado apenas de uma perspectiva interna: psicológica, farmacológica, mindfulness. No limite, é considerada responsabilidade do indivíduo, que é apresentado como culpado, ignorando as condições materiais de seu adoecimento.”
Nesta conjuntura, o pensamento de Mark Fisher realmente alça vôo, ainda que na ausência do falecido crítico cultural inglês. Em matéria para os Jornalistas Livres, O Psíquico é Político, explorei algumas das razões que me levam a considerá-lo um dos mais importantes intérpretes deste cenário em que só sairemos da fossa se conseguirmos politizar nossa angústia, expressar coletivamente nosso descontentamento e compreender as “condições materiais de nosso adoecimento”, como disse Fortanet.
A pandemia de covid19, que adquire no Brasil a magnitude de uma hecatombe épica, implica também uma crise global da saúde psíquica. Diante disso, a bandeira “o pessoal é político” continua válida: é preciso, como ensina Mark Fisher, perceber que o colapso psíquico também é político e que um clima cultural menos insalubre passa necessariamente por nossa capacidade coletiva de matar um zumbi: “atmosfera ideológica opressiva do capitalismo neoliberal”.
A saúde mental não pode ser privatizada pois não há soluções individuais para problemas coletivos, nem remédios compráveis para uma disfunção civilizacional. Hoje, pensadores como Franco Berardi (vulgo Bifo) apontam que o “aumento das patologias mentais” é indissociável daquilo que o capitalismo neoliberal hiperfinanceirizado tem realizado em prol do desmoronamento do futuro. Ou melhor, para os trabalhadores precarizados que moram nas periferias e guetos das metrópoles – como nos banlieux de Paris – “o futuro já não é mais entendido como uma promessa, mas como uma ameaça.” (Berardi, Asfixia, p. 85)
Fisher e Bifo concordam: o clima cultural se transforma em consonância com os horizontes de futuro que se abrem para cada geração. Na obra do falecido pensador cultural inglês Mark Fisher (autor do blog K-Punk), somos convocados a pensar que o nosso futuro é tão mais deprimente quanto menos conseguirmos imaginar um mundo pós-capitalista.
Se a depressão é um dos males mais disseminados do século 21, tal cenário não é atribuível aos indivíduos que se deprimem, como se a culpa fosse deles num “cada um por si” da saúde mental. A pandemia de depressão deve ser vista como imputável a um sistema capitalista que nos asfixia, produzindo uma destruição ambiental sem precedentes – 1.400 bilhões de toneladas de CO2 lançados à atmosfera desde a Revolução Industrial – e ainda por cima parece nos dizer: “não há alternativa.”
É esta mentira que afirma a inexistência de alternativas que nos cabe destruir, para que a verdade de outros-mundos factíveis – o que Paulo Freire chamava de “inéditos viáveis” – possa refulgir. (CARLI. Jornalistas Livres).
Enquanto o mundo capitalista em estado de necrose, comandado por war pigs, ainda viciado em petróleo, guerra, carros, remédios, agrotóxicos e carne de animais mortos, tenta nos convencer que não há alternativa, raptando nossas mentes para que se conformem com um sistema que acelera rumo ao apocalipse climático e à pior crise de refugiados da história humana, é preciso que também os movimentos da esquerda radical, seja ela comunista, socialista ou anarquista, saibam que nenhuma revolução se fará apenas através duma fidelidade dogmática aos preceitos da positividade tóxica.
Não é só vibrando positividade, dizendo namastê a todes e publicando memes de paz-e-amor, não é pregando que “Deus está no comando” e que “tudo no final ficará bem”, não é prometendo um happy end típico de um mau filme de Hollywood ou de um conto-de-fadas alienante, que ajudaremos os animais humanos deste planeta a se regenerarem diante do pior trauma coletivo de nossas vidas.
A postura good vibes only, que frequentemente envolve um inconfesso apartheid que trata como párias aqueles que são marcados com o estigma da depressão, não fornece soluções para estes males – estes precisam ser expressados, elaborados, compartilhados, donde a importância crucial da arte, e da expressividade cultural em geral, nos nossos processos terapêuticos onde a revolta do nós precisa se alçar sobre o escombro solitário de um eu isolacionista que se culpa por sua própria miséria.
Eu me revolto, logo existimos. Ética Camusiana para tempos absurdos onde nossa tarefa é fazer a travessia desafiadora que vai da absurdidade à solidariedade usando como veículo propulsor o barco lotado de nossa nova nau dos insensatos. Seremos aqueles que o sistema julga insensatos pois não aceitamos privatizar nosso sofrimento e tratá-lo como algo resolvível pelo consumo de Prozacs e Ritalinas.
Seremos os insensatos que se rebelam contra um sistema que produz em massa o adoecimento psíquico, inclusive pelo seu negacionismo dos males acarretados pela pervasiva hegemonia da positividade tóxica. Contra os apóstolos do pensamento positivo, da fé em Deus ou Alá como panacéia, teremos que afirmar a potência insurrecional e crítica da conjuminação de nossas dores tendo como alvo uma conjuntura social que nos esmaga. Assim como não há soluções individuais para catástrofes coletivas, também não é sinal de saúde, para parafrasear Krishnamurti, estar bem adaptado e conformado a uma sociedade profundamente doente.
Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura
Goiânia, 08 de Março de 2022
Texto originalmente publicado no livro “Realismo Capitalista – É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo?“
Disponível para compra aqui.
Sofro intermitentemente de depressão desde a adolescência. Alguns desses episódios foram altamente debilitantes — resultando em auto-mutilação, isolamento (onde passava meses confinado em meu próprio quarto, aventurando-me sair apenas para procurar emprego ou para comprar as quantidades mínimas de comida que consumia), e visitas frequentes a enfermarias psiquiátricas. Não diria que me recuperei inteiramente dessa condição, mas tenho satisfação de dizer que tanto a incidência quanto a gravidade dos episódios depressivos diminuíram muito nos últimos anos. Em parte, isso é consequência de mudanças na minha situação de vida, mas também tem a ver com uma distinta compreensão a que cheguei sobre minha depressão e suas causas. Exponho aqui minhas próprias experiências de angústia mental não porque ache que há algo especial ou único sobre elas, mas em apoio à tese de que muitas formas de depressão são melhor compreendidas — e combatidas — por meio de quadros analíticos impessoais e políticos, e não individuais e “psicológicos”.
Escrever sobre sua própria depressão é difícil. Faz parte da depressão uma voz “interior” desdenhosa que nos acusa de auto-indulgência — “você não está deprimido”, “você está apenas sentindo pena de si mesmo”, “dê um jeito nisso” —, passível de ser disparada ao tornarmos pública a condição. É claro que não se trata bem de uma voz “interior” , e sim da expressão internalizada de forças sociais reais, algumas das quais têm um interesse escuso em negar qualquer conexão entre depressão e política.
No meu caso, a depressão sempre esteve conectada à convicção de que eu literalmente não prestava para nada. Passei a maior parte de minha vida, até os trinta anos, acreditando que nunca conseguiria ter uma profissão. Aos vinte e poucos, alternava entre a pós-graduação, períodos de desemprego e empregos temporários. Em qualquer um desses casos, o sentimento era de que não me encaixava — na vida acadêmica, porque sentia que não era um pesquisador sério, apenas um diletante que tinha de alguma forma fraudado meu caminho até ali; no desemprego, porque não estava realmente desempregado como aqueles que buscavam trabalho honestamente, mas “vagabundo” se aproveitando do sistema; e em empregos temporários por sentir-me incompetente e que, em todo caso, não pertencia exatamente a trabalhos de escritório ou de fábrica, não porque fosse “bom demais” para eles, mas — muito pelo contrário — em virtude de excessivamente instruído e inútil, tirando o trabalho de alguém que precisava e merecia aquilo mais do que eu. Mesmo na enfermaria psiquiátrica, sentia como se não estivesse realmente deprimido — era como se estivesse apenas simulando a condição para evitar o trabalho, ou, na lógica infernalmente paradoxal da depressão, simulando-o para esconder o fato de que eu era incapaz de trabalhar, e que não havia lugar para mim na sociedade.
Quando finalmente consegui um emprego como professor em uma faculdade de Educação Complementar, fiquei exultante por um tempo — embora esta alegria, por sua própria natureza, mostrasse que ainda eu não havia me livrado do sentimento de inutilidade que logo desencadearia novos episódios depressivos. Como professor, faltava-me a calma confiança de quem nasceu para o papel. Em algum nível não muito profundo, eu evidentemente ainda não acreditava que fosse o tipo de pessoa que poderia fazer um trabalho como aquele.
Mas de onde vinha essa crença? A escola dominante de pensamento em psiquiatria localiza as origens de tais ‘crenças’ no mau funcionamento da química cerebral, que deve ser corrigido por produtos farmacêuticos; a psicanálise e demais formas de terapia por ela influenciadas são famosas por procurar as raízes da angústia mental no contexto familiar, enquanto a Terapia Cognitiva-Comportamental está menos interessada em localizar a fonte de crenças negativas do que simplesmente substituí-las por um conjunto de alternativas positivas. Não é que esses modelos sejam inteiramente falsos, é que eles deixam escapar — e necessariamente têm que deixar escapar — a causa mais provável de tais sentimentos de inferioridade: o poder social. A forma de poder social que mais teve efeito sobre mim foi o poder de classe, embora, naturalmente, o gênero, a raça e outras formas de opressão funcionem produzindo o mesmo sentimento de inferioridade ontológica, melhor expressado justamente no pensamento que articulei acima: que você não é o tipo de pessoa capaz de desempenhar papéis destinados ao grupo dominante.
A pedido de um dos leitores do meu livro “Realismo Capitalista”, comecei a investigar o trabalho de David Smail. Smail — um terapeuta, mas que tomou a questão do poder como central para sua prática — corroborou as hipóteses sobre a depressão nas quais eu havia esbarrado por acaso. Em seu livro crucial, “As Origens da Infelicidade”, Smail descreve como as marcas de classe são projetadas para serem indeléveis. Para aqueles que foram ensinados desde o nascimento a se verem como inferiores, a aquisição de qualificações ou renda raramente será suficiente para apagar — em suas próprias mentes ou na mente dos outros — o sentido primordial de inutilidade que os marca tão cedo na vida. Alguém que sai da esfera social a qual estaria “designado” a ocupar estará sempre sujeito ao perigo de ser dominado por sentimentos de vertigem, pânico e horror: “… isolado, separado, cercado de espaço hostil, você de repente se vê sem conexões, sem estabilidade, sem nada para mantê-lo firme ou no lugar; uma irrealidade vertiginosa e nauseante se apossa de você; você se vê ameaçado por uma completa perda de identidade, um sentimento de completa fraude; você não tem o direito de estar aqui, agora, habitando este corpo, vestido desta maneira; você é um nada, e ‘nada’ é, literalmente, o que você sente que está prestes a se tornar.”
Já há algum tempo, uma das táticas mais bem-sucedidas da classe dominante tem sido a da “responsabilização”. Cada membro individual da classe subordinada é encorajado a sentir que sua pobreza, falta de oportunidades, ou desemprego é culpa sua e somente sua. Os indivíduos culparão a si mesmos antes de culparem as estruturas sociais; estruturas que, em todo caso, eles foram induzidos a acreditar que de fato não existem (são apenas desculpas, invocadas pelos fracos). O que Smail chama de “voluntarismo mágico” — a crença de que está dentro do poder de cada indivíduo se tornar o que quer que seja — é a ideologia dominante e a religião não oficial da sociedade capitalista contemporânea, empurrada goela abaixo tanto pelos “experts” da TV e gurus dos negócios quanto pelos políticos. O voluntarismo mágico é ao mesmo tempo um efeito e uma causa do nível historicamente baixo da consciência de classe. É o outro lado da depressão — cuja convicção subjacente é a de que somos todos exclusivamente responsáveis pela nossa própria miséria e, portanto, a merecemos. Um duplo imperativo particularmente cruel é imposto aos desempregados de longa duração no Reino Unido: uma população que, durante toda a sua vida, foi levada a acreditar que não prestava para nada é simultaneamente bombardeada pela injunção de que pode fazer tudo o que quiser fazer.
Devemos entender a submissão fatalista da população do Reino Unido à austeridade como consequência de uma depressão deliberadamente cultivada. Esta depressão manifesta-se na aceitação de que as coisas vão piorar (para todos, exceto para uma pequena elite), que temos sorte de ter um emprego que for (então não devemos esperar que os salários acompanhem a inflação), que não podemos nos dar o luxo de bancar serviços públicos providos coletivamente. A depressão coletiva é o resultado do projeto da classe dominante de ressubordinação. Há algum tempo, temos cada vez mais nos resignado à ideia de que não somos o tipo de pessoa que pode agir. Esta não é uma falha de vontade individual, da mesma forma que uma pessoa deprimida não pode simplesmente sair da depressão em um “estalar de dedos” ao “arregaçar as mangas”. A reconstrução da consciência de classe é, de fato, uma tarefa formidável, que não será alcançada com soluções prontas e fáceis. Mas, ao contrário do que nossa depressão coletiva nos diz, é uma tarefa que pode ser realizada: inventando novas formas de envolvimento político, revitalizando instituições que se tornaram decadentes, convertendo o descontentamento privatizado em raiva politizada. Tudo isso pode acontecer, e, quando acontecer, quem sabe o que será possível? – Mark Fisher
Publicado em: 08/03/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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