Durante os dias sinistros em que o bolsonarismo nos desgovernou, com medonho apoio de significativa parcela dos suicidadãos e patriotários da terra brasilis, foram poucos os artistas de nossa música que se ergueram à altura de sua tarefa histórica: ser dique de contenção e voz de protesto contra a extrema-direita montante, idólatra de Ustra e da Ditadura. Neste contexto, a cantora e compositora baiana Pitty (nascida em Salvador em 1977) foi uma dessas raras vozes culturais que teve notável coragem de se colocar no campo da resistência democrática contra a ofensiva neofascista dos bozós.
Quando eu trabalhava em um dos documentários que A Casa de Vidro realizou durante protesto por Fora Bolsonaro em Goiânia, em plena pandemia, no 29 de Maio de 2021, quando o país ultrapassava a marca de 450.000 pessoas mortas pelo conluio entre o coronavírus e o governo negacionista, busquei uma trilha sonora contemporânea que expressasse a contento os afetos dominantes nos manifestantes. Foi em Pitty que encontrei esta trilha e inclusive a frase que batiza o curta-metragem: “respeite a existência ou espere resistência!”, presente em “Noite Inteira”, do álbum Matriz (2019) (“não peço que concorde / não impeça que eu fale / entendo que discorde / não espere que eu me cale!”).
Matriz, mais recente álbum de estúdio da artista, foi para meu gosto um dos melhores álbuns de 2019 pela coragem com que afrontou o conservadorismo reinante em canções corajosas e subversivas, como “Bicho Solto” (“eu me domestiquei pra fazer parte do jogo / mas não se engane maluco: continuo bicho solto”, canção que também toca na trilha do filme supracitado) e “Ninguém É De Ninguém”.
Em tempos de pregação carola em prol da “família tradicional brasileira” e suas jaulinhas sob medida, feitas de heterossualidade compulsória e monogamia de base religiosa, Pitty destoou da norma para propor alternativas aos até-que-a-morte-os-separe, aos “Deus acima de tudo, fascismo acima de todos” e aos relacionamentos baseados no molde da posse.
Matriz trazia poderosas confluências com o Baiana System e com o Maglore, duas das melhores bandas baianas contemporâneas. Esta sua abertura à colaboração também me parece admirável, ainda mais quando Pitty ata laços colaborativos através das faixas etárias, juntando-se tanto com a veterana Elza Soares, em “Na Pele”, tanto quanto coligando com forças da novíssima geração hiphopper e roqueira, ao unir-se com Tássia Reis e com Emmilly Barreto, vocalista da banda de Natal (RN) Far From Alaska, em “Na Contramão”.
Tive, em Junho de 2024, minha primeira oportunidade de curtir um show da artista: foi no XV PiriBier, realizado em Pirenópolis (Goiás), e no vídeo a seguir está registrada a performance daquela que foi a primeira single da carreira de Pitty, há mais de 20 anos atrás, “Máscara” – um dos hits do debut Admirável Chip Novo.
Com mais de duas décadas de estrada, Pitty poderia ter se acomodado. Mas sobre o palco ela demonstra o contrário: vigor juvenil ainda intacto, expressão corporal confiante e empoderada, boa capacidade de comunicação com a platéia. Em Piri, alguns coros impressionantes, sobretudo de vozes femininas, trouxeram aos presentes um dos trunfos maiores da música ao vivo: a experiência oceânica de ouvir centenas de vozes cantando juntas.
Há um elemento na lírica pittyana que me parece digna de reflexão e de crítica: a entonação imperativa que ela adota com certa frequência para endereçar ao ouvinte um conselho, uma proposta, um caminho. Este tom imperativo evita tanto o autoritarismo, o mandonismo, por ter quase sempre um caráter pé-no-chão e estar impregnado de uma mistura de ética queer e carpe diem.
A canção torna-se uma carta endereçada ao ouvinte, e a cantora se traveste de guru de uma certa contracultura: “o importante é ser você”, em “Máscara”, é o mais claro exemplo desta ética do aconselhamento afetivo que, neste caso, está calcada numa apologia da autenticidade com tintas queer, de combate ao bullying e às fobias e violências conectadas à normose: “mesmo que seja estranho / seja você! / mesmo que seja bizarro, bizarro, bizaaaaarro!”.
O poder deste refrão prossegue vigoroso mesmo 20 anos depois do lançamento. O que me conduz a pensar que o público muitas vezes gosta de alguém que lhe diga o que fazer, como se comportar, sobretudo quando o dito encontra sincronia com o feito – ou, em outras palavras, a palavra vem encarnada por alguém que dá corpo ao proposto pelo verbo.
Outro refrão com versos semelhantemente imperativos, desta vez apontando para um carpe diem Pittyesco, é aquele em “Semana Que Vem” em que a cantora ordena aos ouvintes: “não deixe nada pra depois, não deixe o tempo passar / não deixe nada pra semana que vem / semana que vem pode nem chegar.” Uma ordem para evitar a procrastinação e o adiamento, e que transmite uma sabedoria não muito distante daquela que a Legião transmite em “Pais e Filhos” com seu emblemático verso – talvez o mais célebre da lavra de Russo – “é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã / porque se você parar pra pensar na verdade não há.”
Já “Teto de Vidro” surfa no provérbio cristão e a noção de “quem for sem pecado que atire a primeira pedra”, introduzindo a noção mais contemporâneo do “quem não tem teto de vidro que atire a primeira pedra”. É uma canção pesadona, um grunge brazuca de alta voltagem, que segue com seu poderio intacto para mobilizar vitalidade em “tantas pessoas querendo sentir sangue correndo na veia.”
Antídoto contra a noção de que “o rock morreu” diante da lamentável supremacia do sertanejo comercial e do gospel vendidão. Destoando do coro dos normais ajoelhados diante de Bolsonaros e Malafaias, Pitty também questiona as fés vigentes e se diz agnóstica: “Tô mais pra agnóstica. Desconfio das religiões. Tudo o que é dogmático e castrativo me afasta” (O Globo).
A música de Pitty segue calcada tanto numa atitude quanto numa sonoridade que são indubitavelmente calcadas no rock – sonoramente ela é mais irmã do Luxúria ou do Blastfemme do que do Pato Fu ou do Kid Abelha – com muitas reminiscências da era grunge e pós-grunge, mas também com a necessária abertura a algo aqui mais ragga, acolá mais rap.
Admiradora de bandas como Faith No More, Queens of the Stone Age, Nirvana e Dead Kennedys, Pitty também se inspira em cantoras roqueiras como Alisson Mosshart e Janis Joplin, realizando em sua música uma notável guinada, no rock brasileiro, para sonoridades mais agressivas e metálicas conjugadas a um vocal feminino de atitude e pegada inquestionavelmente enraizadas na cultura do rock dos 70 em diante.
Enquanto ex-icônes do Rock BR envelheceram bem mal, no rumo da escrotidão conservadora e das posturas de tiozões bolsonaristas – como Roger do Ultraje a Rigor -, Pitty encarna também um feminismo popular, salutar para todos nós (sigo aqui o espírito de bell hooks e seu feminismo é pra todo mundo), que se mostra exemplarmente tanto em suas interpretações de “Vila de São Matilde” (D. Germano) quanto em sua brilhante “Descontruindo Amélia” (“nem serva, nem objeto”).
Há testemunhos, como este escrito pela Paloma em Valkírias, sobre o rock como um “clube do bolinha da pesada” e sobre a importância do empoderamento feminino e da representatividade neste campo que a Pitty encarna:
“Ela não era só uma mulher a quem eu admirava, era uma mulher tão próxima da minha realidade, que falava a minha língua e até se parecia um pouco comigo, e que naturalmente ocupou um lugar superior em relação a todos os homens brancos gringos que formavam 90% da minha biblioteca de música. (…) A forma como me ensinou, por palavras e por exemplos, como uma mulher pode ser forte e independente, e como existe uma alternativa aos padrões sociais vigentes, me permitiu escolher conscientemente qual caminho eu queria seguir na vida” (1).
Após a morte de Rita Lee e o hiato anunciado do Francisco El Hombre (com o consequente pause na expressão de uma das melhores cantoras do Rock BR, Ju Strassacapa), tudo indica que no panteão das roqueiras brasileiras Pitty passa a reinar suprema. Pitty, espírito de serpente, é o pulsar vivo de uma cultura rocker que agoniza mas não morre.
Eduardo Carli de Moraes, Goiânia, Junho de 2024
DISCOGRAFIA
DOWNLOADS DE ÁLBUNS RAROS:
Faça o download gratuito em MP3 dos álbuns completos das bandas e projetos paralelos da Pitty: Inkoma, Influir (2000) e Agridoce (2011) – click na capa para abrir no MediaFire (zipado):
Publicado em: 07/06/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
Que matéria lixo!!!
Nunca vi nada tão imbecil…mistura tudo politica com rock…vc e um frustado…vai se tratar urgente…
Nunca li tanta asneira na minha vida. O escritor deste “artigo” vive numa bolha, na mais absoluta inversão de valores.
Mas qual petista, comunista, esquerdista não vive alienado do mundo real?
E fascismo é o que vocês, vermes petistas, comunistas, esquerdopatas defendem e apoiam.
Fascismo é o estado gigante, a censura, a perseguição dos opositores, é tudo que vocês fazem e praticam diariamente nas vossas vidas miseráveis.
Que coisa vergonhosa virou a maioria dos roqueiros atuais, hein? Fui ensinada que o rock era a rebeldia, era contra o governo, era contra o sistema. Me ensinaram que o rock combatia os tiranos e poderosos e que estava ao lado dos injustiçados. Mas o que faz o rock atual? Faz exatamente o oposto. O rock atual virou uma prostituta barata do sistema, casou com o petismo, se aliou aos comunistas, virou um moleque irresponsável a serviço da extrema-esquerda. O rock, que deveria ser ou apoiar a contra-cultura, faz exatamente o contrário, defende o governo, apoia o sistema e ataca e persegue quem representa a contra-cultura atual, ou seja a direita e os conservadores.
Rock a favor do governo e do sistema? Rock contra a resistência? Teu lugar é a lata do lixo.
Cara, que matéria escrota!
Totalmente dissociada da realidade.
Comecei a ler o pra parágrafo e não tive estômago pra ler o resto. Por essas e outras que a imprensa brasileira perdeu totalmente sua credibilidade, a imparcialidade não existe mais e o lado escolhido não podia ter sido pior. 🤮
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia
Gisele
Comentou em 08/06/24