Luigi Pirandello nasceu na Sicília, em 1867, numa província chamada Caos. Brincando com este fato biográfico, o escritor italiano, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1934, diria de sua vida que ela foi “a involuntária passagem pela terra de um filho do caos.”
Esta noção também se expressa em seu romance de estréia A Excluída (“L’Esclusa”, trad. José Geraldo Vieira, Instituto Progresso Editorial, originalmente publicado em 1893). Não falta à vida da protagonista Marta uma dose cavalar de caos e de vivências que ela nunca quis voluntariamente viver. Nossa condição caótico-trágica é tal que nos enfiam goela abaixo, a fórceps, muitas vivências que não merecemos nem queremos encarar.
“O inferno são os outros”. A frase que Sartre coloca na boca de um dos personagens de sua peça Entre Quatro Paredes poderia servir como epígrafe (ou até mesmo como a famosa “moral da história” presente em muitas narrativas) desse romance caótico-cômico de Pirandello. “A Excluída” não passa de uma exposição literária de como uma mulher inteligente e moralmente livre de máculas (Pirandello é quem está dizendo) pode ser destroçada inteiramente, sendo tacado às beiras do suicídio, só por causa dos outros, estes agentes do caos.
Marta, a excluída que dá nome ao romance, é expulsa de casa por seu marido Roque Pentágora, que flagrou na posse da esposa algumas cartas que lhe foram enviadas por seu suposto amante, Alvignani. Chutada para longe de seu lar matrimonial, e retornando ao lar paternal, ela encontra-se com a repugnância indisfarçada de seu pai. Este se sente tremendamente envergonhado por ser o progenitor de uma mulher que agora estava marcada com a infâmia, considerada por todos como uma devassa, uma adúltera, uma traidora. O pai se tranca em seu quarto até a morte, o filhinho que Marta trazia no ventre nasce morto, e o futuro se apresenta sombrio para Marta e sua família.
Acompanhada por sua mãe e por sua irmã Maria, Marta vive dias de terror, vendo a família afundar na miséria após a morte do pai, principal trabalhador e fonte de renda da família, além de ter de suportar todas as infâmias e calúnias que os outros lhe lançam à cara.
Mulher muito inteligente, Marta retoma seus estudos e presta concurso público para se tornar professora. Passa em primeiro lugar, em indício seguro de seu brilhantismo intelectual. Porém, as mães e pais dos alunos, horrorizados com a idéia de terem que entregar seus filhos aos cuidados de uma mulher de má fama, se revoltam contra a tentativa da mulher em se empregar. Sua reputação – ou seja, o que dela pensam os outros, ao contrário do que ela é – é o elemento que faz com que as portas se batam em sua cara, por mais que ela demonstre seus méritos intelectuais e morais.
Transferida para outra cidade, Marta consegue se empregar numa outra escola, onde passa a ser cortejada por três professores (indício seguro de sua beleza magnética), inclusive o monstruoso Falcone, homem infelizmente presenteado pela Loteria do Nascimento com um semblante de feiúra irremediável e com pernas mancas:
“Haviam-na condenado; seu próprio pai fôra o primeiro, apesar da inocência mais que evidente. E por que fora vítima disso tudo? Só porque não soubera defender-se da tentação, já que nenhuma experiência tinha da vida. E a seguir, miséria e ruína, para ela, para os seus o futuro malogrado da irmã, e, simultaneamente, os vilipêndios duma multidão. Bem tinha querido vingar-se, opondo a tudo isso nobreza de sentimento, soerguendo-se desse opróbrio mercê do seu trabalho, da sua inteligência, do seu estudo. Resultado? Continuavam a ultrajá-la com calúnias. E tais injustiças, tal vida sem sentido, para no fim, ainda por cima, um aleijado, um idiota e um presumido, mais três personagens, entrarem no limiar do seu drama.” (p. 168)
Na sequência da narrativa do romance, Alvignani, o homem que a havia cortejado, reencontra o objeto de seu desejo Marta – e lhe faz novamente sugestões sedutoras, enquanto o marido Roque Pentágora, arrependido, clama por seu retorno. Hesitante entre que escolha fazer, Marta entre em turbilhão nervoso, namora o suicídio e sente-se irremediavelmente perdida.
Pirandello, repetidas vezes, sublinha a inocência da personagem do crime da qual o mundo a acusa. “Ou seria que amava ou tinha pelo menos amado Alvignani? Não, nunca! Não lhe parecia sequer admissível que alguém pudesse acreditar seriamente numa tal coisa. Todo o seu erro consistia em não ter sabido dissuadir Alvignani quando das primeiras tentativas epistolares.” (p. 46)
Entre Marta e Alvignani não havia se efetivado nenhum crime carnal, nenhum contato corporal, nenhuma união visível. “Entre ambos se empenhara uma polêmica puramente sentimental e a bem dizer literária”, um simples “duelo intelectual” (46). Nada mais que uma troca de cartas banal havia se desenrolado entre eles, o que foi o suficiente para disparar a fúria vingativa do pseudo-corno, que foi imaginando muito precipitadamente que era detentor de chifres que, na verdade, não existiam.
Mas isso não significa que Marta amava incondicionalmente seu marido. Os personagens de “A Excluída” vivem num tempo – século 19 – onde ainda era comum a imposição paternal de um certo marido à sua filha. “No íntimo”, diz o narrador, Marta “nutria contra esse homem [seu marido] um sentimento hostil, meio difuso, e que não era recente, que datava do tempo dos primeiros conhecimentos recíprocos, quando ela, rapariga de dezesseis anos apenas, fôra arrancada dos estudos prediletos, no colégio, pelos pais que lhe apresentaram Roque Pentágora como noivo.” (49)
Aí pode-se enxergar uma provável denúncia de um sistema social que destrói a possibilidade de desenvolvimento intelectual das mulheres. Pirandello parece-me aproximar-me aqui da filosofia que Mary Wollstonecraft expressa em seu clássico Reivindicação dos Direitos das Mulheres. Marta, que a certo momento é descrita como possuidora de uma “necessidade imperiosa de conhecimento” (p. 81), mas é “arrancada” dos seus estudos para servir de esposa a uma pessoa que não conhecia e que nunca aprendeu a amar. Outra forma da ditadura dos outros.
Após a mini-tragédia de seu casamento forçado, sobrevêm a tragédia maior: Marta expulsa de casa por um crime que nunca chegou a cometer. “…ela, Marta, que não havia cometido pecado algum, que não havia faltado nem faltaria com seus deveres matrimoniais, não por merecer o marido essa fidelidade, mas por ser coisa indigna enganar quem quer que fosse” (77), é tacada no lodo pelo ciúme furioso do marido em suas suspeitas infundadas.
“Que pecado cometera para sofrer castigos tamanhos, como a morte do pai e do filho e, provavelmente, em breve, a miséria? Decerto o sacerdote lhe diria que aceitasse com amor e resignação os castigos mandados por Deus. Mas não era Deus justo? Não via dentro dos corações? Se algum mal fizera, por inexperiência, já não o descontara e até com excesso e demasia?” (77).
Um paralelo com o Josef K. de Kafka é possível: ele, como Marta, também acorda em um dia infeliz e descobre-se como objeto da condenação do mundo, permanecendocerto de sua inocência em seu íntimo. Mas há diferenças: em Kafka, a condenação parte do aparelho burocrático, de um Outro invisível, e não se sabe ao certo de qual crime se trata. Além disso, a condenação vai fazer com que K. comece a se auto-investigar para procurar suas podridões escondidas, em busca de alguma justificativa para sua pena, acabando por se auto-incriminar após ter recebido o castigo. Como Milan Kundera bem viu, o castigo preexiste à falta; a falta é procurada e encontrada a posteriori.
Já em Pirandello a condenação é dos outros concretos, da “opinião pública”, e se especifica claramente qual o crime supostamente cometido (mas que não foi…). Marta, que chega perto de se sujar exatamente com a lama na qual os outros a acusavam de ter chafurdado (a relação amorosa com Alvignani), permanece aferrada, até o fim do romance, a sua “pureza”, apesar de quase dilacerada e morta pela opinião dos outros.
Ela só concebe o suicídio como saída para seu infortúnio pois nenhuma das opções que lhe são apresentadas (voltar ao marido ou fugir com Alvignani) a livraria do estigma de culpada: se volta ao marido, viverá com alguém que odeia, e que será considerado como misericordioso e compreensivo; se foge, suja-se justamente com a falta de que a acusavam… As conseqüências dos atos do marido são irreparáveis. Marta diz isso a ele. “Sou aquilo que toda a gente, por sua causa, acreditou que eu era, acredita que sou e acreditará que sempre serei, mesmo que eu aceitasse o seu arrependimento. É tarde demais, compreende?” (258)
Não basta permanecer livre de máculas e ser uma fortaleza de virtudes para que a vida se desenrole com serenidade, parece dizer Pirandello. É preciso ainda que os outros não cometam nenhum erro monstruoso em seu juízo sobre nós, que não nos acabem por tomar por um monstro, ainda que indevidamente… Marta é excluída da vida não por suas faltas, seus pecados, seus vícios – ela é exemplarmente virtuosa! -, mas sim pelas opiniões distorcidas que “o mundo” fez sobre ela. Ela é moída pela engrenagem dos outros em delírio.
Sua vida é de fato uma involuntária passagem pela terra de uma filha do caos humano. Nas infelicidades causadas pela opinião alheia, pelas manchas na honra e na reputação, pelo falatório maledicente, pela fofoca cruel e injustificada, é que reside a fonte das infelicidades da personagem protagonista de “A Excluída”. A marca da infâmia, no caos de nossa vida, muitas vezes é imerecida, mas não deixa por isto de moer até o bagaço o fruto destruído de uma existência.
Eduardo Carli de Moraes
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Publicado em: 23/11/21
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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