“A Grande Onda” (de Hokusai, 1830)
O monge budista japonês Kamo no Chomei, nascido em 1153, começou sua carreira como poeta e músico da corte em Kyoto. Mas quanto mais velho ficava, mais queria trocar os assuntos mundanos pelo isolamento monástico. Finalmente, aos 60 anos, ele construiu para si mesmo uma pequenina cabana de madeira, de 3 metros quadrados, próximo ao monte Hino.
Como o naturalista Henry David Thoreau mais de 600 anos depois, Chomei encarou isso como o experimento de uma existência simples e autossuficiente, sobrevivendo de castanhas colhidas na encosta e confeccionando suas próprias roupas a partir de bambu.
Cercado pelo som de cucos e cigarras, escreveu em 1212 d.C. o livro Hôjôki (Relatos da minha cabana), um ensaio cujas linhas de abertura tornaram-se uma declaração clássica do conceito budista de impermanência ou mujo:
“A corrente do rio que flui não cessa, e no entanto a água não é a mesma que antes. A espuma que flutua em poços estagnados, ora desaparecendo, ora se formando, nunca é a mesma por muito tempo. Assim, também, se passa com as pessoas e moradas do mundo.” – Kamo No Chomei
A extraordinária obra de Chomei registra os desastres que testemunhou durante sua vida. Ele recorda o incêndio de 1177, que queimou Kyoto até reduzi-la a cinzas, um tufão que aplainou tudo em seu caminho, um violento terremoto que destruiu as casas de ricos e de pobres, e a terrível fome de 1181, que deixou dezenas de milhares de mortos e tantos cadáveres nas ruas que as carruagens não podiam passar. Reflete sobre o significado de toda essa mortandade e destruição do ponto de vista de seu retiro na montanha:
“Não está tampouco claro para mim, à medida que pessoas nascem e morrem, de onde elas vêm e para onde vão. Nem por que, sendo tão efêmeras neste mundo, elas se esforçam tanto para tornar suas casas agradáveis à vista. O senhor e a morada competem em sua transitoriedade. Ambos vão desaparecer desse mundo como a glória matinal que floresce no orvalho da manhã… Quando, depois que um barco passa, as ondas brancas imediatamente se desvanecem, vejo nisso minha própria experiência passageira.”
Estamos assim imersos num universo de impermanência. Não há como escapar da natureza fugaz da existência. Passamos a vida nos esforçando para criar permanência – as casas que construímos, as carreiras que seguimos -, mas essa busca, acredita Chomei, é fútil. Por que se apegar à riqueza material ou lutar por prestígio quando, no fim, tudo isso está destinado a desaparecer? Em vez disso, ele prefere passar os dias de vida que lhe restam orando para o Buda e tocando seu koto sozinho em sua cabana, tentando imitar o som do vento quando passa pelos pinheiros.
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A ideia de impermanência ressoou através das culturas humanas, tanto no Oriente quanto no Ocidente, por mais de dois milênios. Como Chomei, o antigo filósofo grego Heráclito voltou-se para a metáfora do rio, observando: “Tudo muda e nada permanece… Não podes entrar duas vezes no mesmo rio.”
Reconhecer a natureza efêmera da vida e que tudo está em fluxo proporciona uma importante maneira de antecipar a morte. Sugere não apenas que nossas vidas são passageiras, mas que elas são compostas de um número infinito de “pequenas mortes” ou momentos que se transformam em nada… Estamos morrendo constantemente desde o momento em que nascemos.
Para Chomei, ver a vida dessa maneira o leva a renunciar aos bens terrenos em conformidade com o princípio budista do desapego e a viver no presente absoluto tanto quanto possível, apreciando as sublimes e transitórias belezas da natureza. Isso lembra um encanador que conheço, o qual, quando vê flores à beira da estrada, para seu furgão e desce para cheirá-las. “Você precisa parar”, ele me diz, “porque elas simplesmente não estarão aqui amanhã.”
Mas uma filosofia de “pequenas mortes” nos leva em muitas outras direções. Sexo, drogas e rock’n’roll, por exemplo. Se tudo é impermanência, e passado e futuro são meros construtos de nossas mentes, então por que não seguir as pegadas do viciado em ópio Samuel Taylor Coleridge e dar a nós mesmos uma passagem só de ida para o majestoso domo do prazer de Kublai Khan, onde podemos beber o leite do paraíso?
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Vejo outra abordagem à impermanência nas muitas vidas de David Bowie. Ao longo de toda a sua carreira ele foi conhecido pela capacidade de se reinventar, em especial por meio da criação de novos personagens públicos. Estes tiveram origens complexas, inclusive em seu estudo do teatro Kabuki e na influência de seu primeiro professor de dança, Lindsay Kemp.
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Após começar como roqueiro acústico hétero nos anos 1960, ele explodiu no palco em 1972 com seu alter ego Ziggy Stardust, uma estrela do rock bissexual alienígena. Reinventou-se de novo com personas como Aladin Sane e Thin White Duke, depois emergiu nos anos 1980 como ídolo pop oxigenado que fez álbuns como Let’s Dance. Ao mesmo tempo, Bowie se transformou em ator, assumindo papéis importantes em filmes como O Homem Que Caiu na Terra e produções teatrais como O Homem Elefante.
A natureza enigmática de suas metamorfoses foi comentada pelo próprio Bowie em 1976, numa declaração classicamente elíptica: “Bowie nunca foi destinado a existir. Ele é como uma caixa de Lego. Estou convencido de que não gostaria dele, porque é oco e indisciplinado demais. Não há um David Bowie definitivo.” Quer sejam feitas ou não a partir de uma caixa de Lego, as muitas vidas públicas de Bowie podem ser vistas como uma série de pequenas mortes, em que novos Bowies nasciam regularmente à medida que velhos Bowies morriam. Como artista, ele estava sempre num estado de transitoriedade, personificando a ideia de impermanência – tema refletido em sua canção “Changes” (de Hunky Dory).
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No fim ele abandonou de fato o fluxo de impermanência morrendo de câncer no fígado, mas não antes de aproveitar o dia e fazer um último álbum, Blackstar, em que chega a cantar sobre sua própria morte. Muitas pessoas tiveram suas vidas mudadas por David Bowie, mas acho que um de seus legados é oferecer inspiração àqueles que podem sentir muitos eus se agitando dentro de seu ser, à espera de irromper – do adolescente que sonha em assumir em público sua sexualidade ao contador frustrado que quer viver uma vida mais criativa e aventureira. A filosofia de pequenas mortes pode nos galvanizar para aproveitar o momento, deixar um velho papel para trás e nos inventarmos de novo.
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ROMAN KRZNARIC em Carpe Diem
RJ: Editora Zahar, 2018, pg. 43
Publicado em: 09/09/19
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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