Paulo Freire e José Martí: pedagogos da libertação onde arde a chama da utopia. Não uma utopia confundida com inúteis e vãos sonhos impossíveis, não uma utopia que é aguardo paciente e apático do Eldorado que por si mesmo se fará, mas uma utopia que descreve o télos de uma coletividade humana que, em sua força histórica atuante e concreta, pensa e age em prol da a construção de um outro mundo, de uma realidade alternativa, de uma sociedade radicalmente transformada para melhor – é o fogo que emana da vida e da obra de ambos.
Ultimamente alguns pensadores da educação têm buscam aclarar as afinidades eletivas entre P. Freire e J. Martí – é o caso de Danilo Streck (Unisinos), que participou da Feira Internacional do Livro de Havana, em Fevereiro de 2016, falando sobre Por Que Ler José Martí e Paulo Freire Hoje? . Na Universidade e na Imprensa, têm pintado artigos que sondam o mesmo tema, como este na Revista Redie (por Miguel Alvarado Arias) ou esta entrevista com o professor Carlos Rodríguez Almaguer no A Verdade.
Aqui tentarei mostrar brevemente, num paralelo entre ambos, quais são alguns dos pontos de contato entre estes dois professores de desopressão, a começar pela unidade indissolúvel entre anúncio e denúncia, que segundo Freire constitui a essência mesmo da práxis transformadora utópica.
“A pedagogia que defendemos, concebida na prática realizada numa área significativa do Terceiro Mundo, é, em si, uma pedagogia utópica”, escreve Paulo Freire em “Ação Cultural Para A Liberdade”. “Utópica, não porque se nutra de sonhos impossíveis, porque se filie a uma perspectiva idealista, porque implicite um perfil abstrato de ser humano, porque pretenda negar a existência das classes sociais ou, reconhecendo-a, tente ser um chamado às classes dominantes para que, admitindo-se em erro, aceitem engajar-se na construção de um mundo de fraternidade. Utópica porque, não “domesticando” o tempo, recusa um futuro pré-fabricado que se instalaria automaticamente, independente da ação consciente dos seres humanos.
Utópica e esperançosa porque, pretendendo estar a serviço da libertação das classes oprimidas, se faz e se refaz na prática social, no concreto, e implica a dialetização da denúncia e do anúncio, que têm na práxis revolucionária permanente o seu momento máximo. Por isso, denúncia e anúncio, nesta pedagogia, não são palavras vazias, mas compromisso histórico. Por outro lado, a denúncia da sociedade de classes como uma sociedade de exploração de uma classe por outra exige um cada vez maior conhecimento científico de tal sociedade e, de outro, o anúncio da nova sociedade demanda uma teoria da ação transformadora da sociedade denunciada.” (FREIRE: 2015, p. 94)
Já explorei a fundo, em outro artigo, os detalhes disto que Freire recomenda com tanta insistência e entusiasmo: o laço indissolúvel entre denúncia (a faceta crítica, problematizante, contestatória) e o anúncio (a construção de uma alter-realidade, a práxis transformativa e colaborativa de viés utópico). Segundo Danilo Streck, “a América Latina conquistou um espaço no cenário pedagógico internacional, hoje reconhecido sobretudo na figura de Paulo Freire, mas cujas raízes estão para além de sua pessoa e de nosso tempo. Trata-se, então, de alargar o olhar para trás e identificar marcas da gênese e da constituição dessa pedagogia. José Martí é uma destas figuras que balizam a construção da teoria pedagógica na América Latina.” (STRECK: 2007, p. 14).
Uma introdução bastante significativa à pedagogia de Martí em Nuestra America são os textos que ele escreveu para as crianças, na revista mensal La Edad de Oro, que teve quatro edições e que em seu número de estréia, em julho de 1889, trazia uma contribuição de Martí à formação dos niños e niñas do amanhã, o impressionante texto “Três Heróis”. No caso, Martí queria ensinar à criançada algumas lições de moral e honradez, de heroísmo e humanismo, fazendo recurso a três figuras de monumental dimensão histórica: Simon Bolívar (1783-1830), José F. de San Martín (1778 – 1850), Miguel Hidalgo (1753 – 1811). Que no Brasil tão pouco se conheça, tão pouco se ensine e se aprenda, sobre Bolívar, San Martín e Hidalgo, é mais um sintoma do quanto a escola se apartou de seu compromisso histórico de levar ao conhecimento comum a vida e a obra destes três heróis emblemáticos e fecundos.
Vivendo no exílio em Nova York, após ser deportado de Cuba, Martí escreve os textos para A Idade do Ouro a partir de 1889, e evidentemente não há nenhum sinal da “neutralidade ideológica” preconizada no Brasil atual pelos acólitos do Escola Sem Partido: Martí, um dos fundadores do Partido Revolucionário Cubano e que perderá a vida no campo de batalha em 1895, devotou sua vida à construção de uma pedagogia diretamente informado pela experiências das lutas de libertação latino-americanas contra o jugo opressivo do império da Espanha. Sua escolha de heróis já torna explícito seu viés político, sua predileção pelos líderes anti-coloniais, agentes do processo de conquista coletiva de autonomia e autodeterminação.
“Três Heróis”, preleção aos chiquititos, começa evocando a estátua do Libertador Bolívar em Caracas, na Venezuela, para realizar um discurso altamente moralista e edificante, centrado na virtude da honradez, assemelhada, neste contexto, à noção de dignidade humana:
“Contam que um dia um viajante chegou a Caracas ao anoitecer e, sem sacudir o pó do caminho, não perguntou onde se comia nem se dormia, mas como se ia aonde estava a estátua de Bolívar. E contam que o viajante, só, com as árvores altas e perfumadas da praça, chorava diante da estátua, que parecia mover-se, como um pai quando se aproxima um filho. O viajante fez bem, porque todos os americanos devem querer a Bolívar como um pai. A Bolívar e a todos os que lutavam como ele para que a América fosse do homem americano. A todos: ao herói famoso e ao último soldado, que é um herói desconhecido. Os homens que lutam para ver livre a sua pátria até se tornam formosos de corpo.
Liberdade é o direito que todo homem tem de ser honrado e de pensar e falar sem hipocrisia. Na América não se podia ser honrado, nem pensar, nem falar. Um homem que oculta o que pensa ou não se atreve a dizer o que pensa não é um homem honrado. Um homem que obedece a um mau governo, sem trabalhar para que o governo seja bom, não é um homem honrado. Um homem que se conforma com obedecer a leis injustas e permite que o país em que nasceu seja pisado por homens que o maltratam, não é um homem honrado. O menino, desde que pode pensar, deve pensar em tudo o que vê, deve padecer por todos os que não podem viver com honradez, deve trabalhar para que possam ser honrados todos os homens e deve ser um homem honrado.
O menino que não pensa no que sucede a seu redor e se contenta em viver sem saber se vive honradamente é como um homem que vive do trabalho de um sem-vergonha e está a caminho de ser um sem-vergonha. Há homens que são piores que as bestas, porque as bestas necessitam ser livres para viver ditosas; o elefante não quer ter filhos quando vive preso; a lhama do Peru se lança na terra e morre quando o índio lhe fala com rudeza ou lhe põe mais carga do que pode suportar. O homem deve ser, pelo menos, tão decoroso como o elefante e como a lhama. Na América se vivia antes da liberdade como a lhama que tem muita carga. Era necessário tirar a carga ou morrer.
Bolívar era pequeno de corpo. Os olhos relampejavam e as palavras saltavam dos lábios. Parecia que estava sempre esperando a hora de montar a cavalo. Era seu país, seu país oprimido, que lhe pesava no coração e não o deixava viver em paz. A América inteira estava como que despertando. Um homem só nunca vale mais do que um povo inteiro, mas há homens que não se cansam quando seu povo se cansa… Esse foi o mérito de Bolívar, que não cansou de lutar pela liberdade da Venezuela, quando parecia que a Venezuela cansava. Tinham-no derrotado os espanhóis: tinham-no expulso do país. Ele foi a uma ilha, para ver sua terra de perto, para pensar em sua terra.
Um negro generoso ajudou-o quando ninguém já não queria ajudá-lo. Voltou um dia a lutar, com 300 heróis, com os 300 libertadores. Libertou a Venezuela. Libertou Nova Granada. Libertou o Equador. Libertou o Peru. Fundou uma nação nova, a nação da Bolívia. Ganhou batalhas sublimes com soldados descalços e meio desnudos. Tudo estremecia e se enchia de luz ao seu redor. Os generais lutavam ao seu lado com valor sobrenatural. Era um exército de jovens. Jamais se lutou tanto, nem se lutou melhor, no mundo, pela liberdade. Bolívar não defendeu com tanto fogo o direitos dos homens a governar-se por si mesmos quanto o direito da América de ser livre. Os invejosos enxergaram seus defeitos. Bolívar morreu de pesar do coração, mais que de mal do corpo, na casa de um espanhol em Santa Marta. Morreu pobre e deixou uma família de povos.” (MARTÍ, La Edad de Oro, “Três Heróis”, 2007, p. 143).
Esta celebração de Martí à figura histórica de Bolívar, que no mesmo texto ele estende à San Martín e Hidalgo, é evidentemente problemática e criticável: não faltarão aqueles que acusarão esta pedagogia de querer ensinar à infância e à juventude a veneração de ídolos, o culto à personalidade heróica dos “libertadores”, a idolatria aos feitos bélicos daqueles que lutaram pelas independências nacionais na América então sob o jugo do imperialismo hispânico. Também é inegável a ênfase de Martí no patriotismo como uma motivação desejável e digna com a qual incendiar o entusiasmo militante dos pequenos – o que se dá, obviamente, num contexto onde pátria livre é sinônimo de república democrática e autônoma, em contraste com colônia dependente e gerida por monarquias de ultra-mar.
Em um momento histórico em que, em meados da década de 2010s, o conceito de “bolivarianismo” segue muito presente nos debates políticos, muitas vezes com um sentido pejorativo, mobilizado para defenestrar os regimes do falecido Hugo Chávez na Venezuela (e de seu sucessor N. Maduro) ou do ex-presidente Evo Morales da Bolívia, não deixa de ter alto interesse e valor o estudo, a compreensão e o debate lúcido sobre o que de fato foi realizado por figuras como Bolívar, Martí e Hidalgo. Pois chega a dar aquela sensação de “vergonha alheia” quando às vezes testemunhamos figuras, que se confessam “de direita” ou que se propõem como “liberais”, tacando pedras sobre regimes políticos e seus respectivos líderes sob a acusação de serem tiranos ou ditadores “bolivarianos” ou “bolivaristas”, sendo que estes mesmos defenestradores odientos são incapazes de falar por 5 minutos sobre a vida e o legado de Simon Bolívar. Solicitados a debater sobre o que tanto os enfurece no mesmo, podem até mesmo responder algo tão profundamente abissal como: “você quer que eu reflita sobre o legado de Simão Quem?!?”
O que José Martí realiza através de seus textos, artigos e discursos, além de demonstrar o infatigável ímpeto de um intelectual-atuante que não se recusa nunca a assumir uma posição na luta de classes e no clash das ideologias, é fornecer um conteúdo bastante concreto à palavra “libertação” – o que é um ponto de contato com Paulo Freire. Para ambos, libertação não é mero blá-blá-bá, mas compromisso histórico: no caso de Martí e Bolívar, era evidentemente norteada pela luta dos povos latino-americanos por seu direito à auto-determinação, violado por séculos de imperialismo espanhol e todo seu séquito de horrores, dos quais destacava-se a imposição do sistema de produção escravista, com milhões de pessoas forçadas ao trabalho indigno, à vida curta e dolorosa, e aos frutos de seu labor roubados em sua inteireza por patrões imperiais.
É claro que Paulo Freire vive em outra época, mas à semelhança de Martí vivencia também o exílio, após o golpe de Estado de 1964, abordando a situação da América Latina também sob o viés da necessidade incontornável e inadiável de vencer a opressão sustentada por uma nova modalidade de imperialismo – agora com sede nos EUA e impondo a economia política do neoliberalismo, aquilo que Naomi Klein chamará de Doutrina do Choque. A experiência das ditaduras militares instauradas no Brasil, no Chile, na Argentina, no Uruguai, no Peru, dará ao pensamento de Paulo Freire um teor que o aproxima não só das lutas libertárias anti-coloniais do passado latino-americano (Bolívar, Martí…), mas que o conectará também aos movimentos pela libertação da África de que foi contemporâneo, sendo determinante também na gestação da Pedagogia do Oprimido a obra de um Amílcar Cabral ou de um Franz Fanon.
Além dos textos publicados na revista La Edad de Oro, destinadas à formação da juventude, há outros artigos de José Martí que comunicam de modo bem sintético e poético seus ideais pedagógicos. Eu destacaria, neste contexto, uma espécie de manifesto que Martí escreve para descrever as atividades da “Liga”, fundada em Nova York em 1889, em parceria com Rafael Serra, com o propósito de formar seus acólitos para a tarefa revolucionária e para as lutas em prol da autodeterminação dos povos (além de Nova York, a Liga desenvolveu suas experiências nas plantações e fábricas de tabaco no Sul da Flórida). Em 26 de Março de 1892, em artigo publicado em Patria, Martí escreve:
“A Liga” de Nova York é uma casa de educação e de carinho, (…) nela reúnem-se, depois da fadiga do trabalho, os que sabem que somente há felicidade verdadeira na amizade e na cultura; os que em si sentem ou vêem por si que o ser de uma cor ou de outra não diminui no homem a aspiração sublime; os que não crêem que ganhar o pão em um ofício dá ao homem menos direitos e obrigações que os daqueles que o ganham em qualquer outro; os que ouviram a voz interior que manda ter acesa a luz natural e o peito, como um ninho, quente para o homem; os filhos das duas ilhas que, no sigilo da criação, amadurecem o caráter novo por cuja justiça e prática firme se haverá de assegurar a pátria. Conquistá-la será menos que mantê-la; e junto com a arma que haverá de resgatá-la é necessário levar a ela o espírito da república e o habitual manejo das práticas livres, que por sobre todos seus germes de discórdia haverá de salvá-la.
E se A Liga tivesse alguma nota especial nas coisas de nosso país, seria a de ver-se ali sem suspicácia, e sem disputar-se a fama ou o pão da mesa, os que vêem do país oprimido e os que fora dele lhes abrem os braços; seria a de reunir-se ali, apagadas com o anelo do saber as marcas todas do cansaço do dia, os que dos livros não querem conhecer a mera letra pedante, mas tirar-lhes o espírito com os fogos e choques da conversação, ou ensinar aos que sabem menos, ou aprender mais do que se sabe; seria a de juntar-se ali, sem lisonja de alguns nem humilhação de outros, mas com os olhares no mesmo nível, os filhos dos que foram injustos e os daqueles que padeceram a injustiça.” (MARTÍ, 2007, p. 118-119)
A SER CONTINUADO…
Carli – 25/01/2017SIGA VIAGEM… NO CINEMA:
BIBLIOGRAFIA
FREIRE, P. Ação Cultural Para A Liberdade. Paz & Terra: 2015, 15ª edição.
MARTÍ, J. A Idade de Ouro – Escritos Para Crianças. In: Educação em Nossa América – Textos Selecionados. Unijuí: 2007.
MARTÍ, J. As segundas-feiras de “A Liga”. In: Educação em Nossa América – Textos Selecionados. Unijuí: 2007.
STRECK, D. “José Martí e o imaginário pedagógico latino-americano – introdução para uma leitura pedagógica.” Unijuí, 2007.
P.S. – As fotografias que abrem e fecham esta publicação representam uma escultura, Meñique, baseada na obra de Martí, localizada no parque La Edad de Oro, em Artemisa, Cuba. Encontrei no site do artista visual Karroll Williams.
Publicado em: 26/01/17
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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