Vocês conhecem a controvérsia: ainda tem muito roqueiro tosco que delira pensando que seu estilo musical predileto foi criado por um cara pálida chamado Elvis Presley. Quem tem mais senso histórico e mais noção da quantidade de bullshit propagada pela branquitude, e que está envolvida na “Elvização” da gênese do rock, sabe que os “inventores do rock” não foram os branquelos mas os afrodescendentes, herdeiros dos escravizados que trafegaram traficados através do “Atlântico Negro” de que nos fala Paul Gilroy, através de figuras de Chuck Berry, Bo Diddley, Little Richard, dentre outros. Há muitos motivos inclusive para se afirmar que estes precursores foram eles mesmos precedidos por uma mulher negra e queer (Sister Rosetta Tharpe) e que teria sido a verdadeira “Mãe” do bagulho.
Por puro tesão pela polêmica quero aqui propor mais uma ferida narcísica à vaidade do macho tóxico roqueiroso e dizer que, ao contrário do que ele afirma (que todos os maiores gênios do gênero são machos cis, sendo o rock uma expressão cultural essencialmente masculinista), o indíviduo que mais fez na história do rock em prol da expansão de seus horizontes estéticos, poéticos, éticos e místicos foi uma indivídua genial chamada Patti Smith – aquela que foi pegar o Nobel de Literatura por procuração quando Bob Dylan, em sua reclusão irremediável, preferiu ficar em casa de boas.
Se John Lennon tinha razão ao cantar “woman is the nigger of the world”, então Patti não errou o alvo de seu petardo punk-poético presente neste ovo-sônico chamado Easter, um dos melhores álbuns de rock já feitos, em que ela se orgulha de sua marginalidade, de seu status de outsider, e com a potência equivalente ao do MC5 (lendária banda punk de Detroit, cujo guitarrista Fred Sonic Smith foi esposo de Patti), anuncia este evangelho dionisíaco, este testamento profano, esta estupenda e arrasadora poesia que reivindica os rebeldes para a resignificação – erguer da sarjeta às estrelas – da negritude e da queerdade:
https://youtu.be/LNnC8hYOmlw
UMA RIMBAUD DE SAIAS POETIZANDO O ROCK’N’ROLL – De maneira similar a Leonard Cohen, Patti Smith foi o tipo de artista que teve uma carreira literária respeitável antes de tentar a sorte na música. No entanto, enquanto Cohen abraçou uma sonoridade folk soturna, com arroubos místicos, sempre marcada por um vocal grave e uma lírica desesperada, Patti aderiu ao rock and roll garageiro e se tornou uma explosão elétrica de poesia flamejante nos primórdios do punk rock.
“Patti Smith é uma bem educada mulher americana, ela conhece a Bíblia e os poetas franceses, mas ela essencialmente está enraizada no rock and roll: é ele sua verdadeira cultura. É uma cultura física centrada em fugir de casa e começar a exploração sexual, shows de rock e suas inúmeras noites-sem-dormir, as drogas e a poesia, as ruas e os porões, as guitarras e sonhos…” (Assante)
https://www.youtube.com/watch?v=VgNeBNMJFZs
Hoje reconhecida como escritora, memorialista, além de poetisa e compositora, Patti já tinha sido pintora e dramaturga antes de querer ser uma rock and roll star. O que diabos pode ter feito o rock’n’roll acabar pesando tanto em sua vida? Ela mesma narrou em 1973 o impacto que teve em sua vida o fato de ter visto, quando criança, os Rolling Stones no Ed Sullivan Show: “Aquilo não era música do garotinho da mamãe”, comentou ela. “Amor cego pelo meu pai foi a primeira coisa que sacrifiquei pelo Mick Jagger!”
Antes dos Stones, ela já tinha amado Little Richards e as Ronettes. E tinha venerado também, com paixão selvagem, um adolescente francês do século 19 que ela injetaria nas veias da música contracultural que os primeiros punks inventavam: Arthur Rimbaud. Desta síntese improvável de Jagger e Rimbaud, de Little Richards e William Blake, é que nasceu uma trajetória que têm início com a obra-prima Horses, seu álbum de estréia, onde tudo começa com ela dizendo, através de seu eu-lírico: “Jesus died for somebody’s sins but no mine…”
A singularidade de Patti Smith na história do rock está também no quanto ela transborda os limites do que se consideraria ser a “bolha dos roqueiros”, os paradigmas consolidados do que é uma atitude “roqueira”. Este transbordamento vem também do fato de que ela é uma artista multi-linguagens que, apesar de visceralmente roqueira, sentindo-se participar existencialmente da cultura rock sobretudo e acima de todas outras pertenças culturais e identitárias, soube transbordar por todos os lados – para a poesia, as artes performáticas, o audiovisual, a literatura em prosa… – com uma exuberância que acredito que arrancaria elogios de William Blake. Patti Smith encarna o provérbio infernal de Blake – “exuberance is beauty.”
https://www.youtube.com/watch?v=YcB4SZ3EF3IDepois de mudar para uma Nova York borbulhante em 1967, indo morar no célebre Chelsea Hotel (onde Sid Vicious daria a facada fatal em sua namorada groupie Nancy Spungen), virou amiga do pessoal do Television, viu o Velvet Underground nascer, se integrou nos experimentos de Andy Warhol e conheceu seu amigo Robert Mapplethorpe, que se tornou seu fotógrafo oficial. Começou a declamar poesia com fundo musical já em 1971, meia dúzia de anos antes de se tornar uma das figuras cult mais peculiares da cena que rodeava o CBGBs. Estando no camarote de uma cultura rock cheia de acontecimentos, escreveu como crítica musical para revistas como Creem e Rolling Stone. Publicou Seventh Heaven, primeiro livrinho de poesias, e começou a fazer leituras em igrejas na Baixa Manhattan. Logo o amigo e crítico de rock Lenny Kaye (editor da coleta Nuggets) começou a acompanhá-la com uma guitarra – transbordando do mero spoken word, ela começou a junção de rock e poesia que plantava a semente do que que viria a ser o The Patti Smith Group. Em 1974 já lançava seu primeiro single independente, que continha uma versão de “Hey Joe” de Jimi Hendrix e a magnífica revolta poética de “Piss Factory”.https://www.youtube.com/watch?v=odim9oMm_Bshttps://youtu.be/hB2ZvVqvuO4
Apesar de ser uma artista de ultra-vanguarda, perita em artes plásticas e literatura, que realizava em suas palavras um mundo poético extremamente idiossincrático, Patti Smith tinha também dentro de si uma garotinha bêbada de sonhos em relação à glória no mundo pop. Dizem que Patti Smith tencionava “agarrar a coroa que lentamente ia deslizando da cabeça dos Stones, que nem Iggy Pop nem Lou Reed haviam conseguido agarrar com vigor suficiente. O único pretendente, como Patti Smith disse a William Burroughs em 1979, era o Bowie, mas ele não era americano” (ASSANTE).
Ela só explodiria nas paradas em 1978, com o hit “Because the Night” (composto em conjunto com Bruce Springsteen), do brilhante álbum Easter. Mas aí, depois de ter influenciado o movimento punk e ter se tornado uma grande rock star, “começou a perceber que o rock não era o paraíso mas o inferno – era corrupto, mercenário e impuro como o resto do mundo. O rock não ia aperfeiçoar o mundo – iria somente explorá-lo para faturar dólares.”
Casou-se com o já falecido guitarrista do MC5, Fred “Sonic” Smith, com quem teve dois filhos, e pareceu ter prefido substituir o sonho de ser rock and roll star por um a vida mais modesta, de um certo recolhimento criativo, com algumas cautelosas ressurreições esporádicas em que ela sempre vinha a público com álbuns muito relevantes (dentre os quais destaco os maravilhosos Wave, de 1979, Dream of Life, de 1988, Gone Again, de 1996, e Gung Ho, de 2000).
Sem dúvida, ainda que Patti Smith tivesse apenas gravado seus 4 álbuns dos anos 1970, isto á teria sido o suficiente para garantir seu nome na história do rock, não apenas pela qualidade extraordinária daquele material – inclusive aquele contido em Radio Ethiopia, talvez o mais overlooked dos álbuns dela à época – mas também pelas incendiárias apresentações ao vivo. Ela mereceu compor a seleção dos gigs that changed the world:
“A debut album instantly compared to all the great rock’n’roll debut LPs, it fused art and energy in a way that was virtually incomprehensible in rock’s otherwise bloated and increasingly superfluous mid-Seventies. Six months later, Smith’s self-styled “three-chord rock merged with the power of the word” rolled into London, where a thrill-starved minority was eager to catch at first-hand what had been happening in New York clubs such as CBGB’s and Max’s Kansas City. High on rebellion, higher still on rock’n’roll mythology, Patti Smith was the one who stopped the rot. Misleadingly described as ‘the new Bruce Springsteen’, this electrifying performer, who packet out The Roadhouse on two consecutive nights, was a far more incendiary figure. Spearheading what she called ‘the fight against fat and Roman satisfaction’, Patti was lean and mean, her pasty complexion, sunken cheeks and fabulously androgynous look signifying something different altogether. (…) Future members of all-women punk bands the Slits and The Raincoats first crossed paths at Patti’s Roundhouse gigs.” – I WAS THERE, de Mark Paytress.
Pergunto-me, diante do fascínio que a vida e obra da Patti exerce sobre mim, sobre os caminhos que ela abriu para tornar-se tão visionária, e a resposta parece passar por Rimbaud, aquele que afirmava que “o poeta se torna visionário através de uma longa, sistemática e transbordante-das-fronteiras desorganização-de-todos-os-sentidos”.
Poeta é quem des-estabiliza os sentidos instituídos, que faz fluir o sistema linguístico ameaçado de enrijecimento. E no autor de Uma Temporada no Inferno ela pôde encontrar um adolescente enragé que acreditava na potência da palavra visceral, do verso original, para des-esclerosar um mundo que mostrava-se rígido demais por excesso de dogmas.
Na sequência, para passar a palavra para Patti Smith, para que ela abra para nós sua caixinha de souvenirs, compartilhamos em violeta alguns causos que ela nos conta em fina prosa lá no Mate-me Por Favor (A História Sem Censura Do Punk):
Eu estava trabalhando numa fábrica e inspecionando produtos pra bebê, e era minha hora de almoço. Um cara passava por lá com uma carrocinha que tinham aqueles maravilhosos sanduíches de linguiça, e fiquei muito a fim de um. Eles custavam mais ou menos um dólar e quarenta e cinco. Fiquei muito afim de um, mas acontece que o cara só trazia dois por dia. E as duas senhoras que mandavam na fábrica, Stella Dragon e Dotty Hook, pegaram os dois.
Aí não havia nenhuma outra coisa que eu quisesse. Você fica obcecado por uns certos sabores. Estava com a minha boca salivando pelo tal sanduíche de lingüiça quentinho, então fiquei na maior depressão. Daí caminhei ao longo dos trilhos da ferrovia até uma pequena livraria. Fiquei zanzando por lá, procurando alguma coisa pra ler, e vi Illuminations. Uma edição de bolso barata das Iluminuras do Rimbaud, sabe? Quer dizer, todo garoto teve uma. Tem aquela foto granulada de Rimbaud, e achei que ele tinha um ar muito elegante. Rimbaud parecia muito genial. Peguei o livro no ato. Nem sabia do que se tratava, simplesmente achei que Rimbaud era um nome elegante. Provavelmente chamei-o de “Rimbawd” e achei que ele era muito cool. Daí voltei pra fábrica. E fiquei lendo o livro. Era em francês de um lado e em inglês do outro, e isso quase custou meu emprego porque Dotty Hook viu que eu estava lendo alguma coisa que tinha língua estrangeira e disse: “Pra que você está lendo coisa estrangeira?!?” Eu disse: “Não é estrangeira.” Ela disse: “É estrangeira e é comunista. Qualquer coisa estrangeira é comunista.” Ela disse isso tão alto que todo mundo pensou que eu estivesse lendo O Manifesto Comunista [de Marx & Engels] ou coisa parecida. Todos se levantaram, foi um caos completo, é claro, e saí da fábrica muito puta da cara. Fui pra casa e, é claro, dei ao livro a maior importância antes mesmo de lê-lo. Me apaixonei de verdade por ele. Foi por aquele encantador Filho de Pan que me apaixonei… Porque ele era tão sexy. (SMITH, Patti. Em: “Mate-Me Por Favor”, Legs McNail [org.]).https://www.youtube.com/watch?v=SNunaSLNNPk
O que me fez ter esperança no futuro da poesia foi o concerto dos Rolling Stones que vi no Madison Square Garden. Jagger estava cansado e todo detonado. Era uma terça-feira, ele tinha feito dois shows e estava de fato à beira de um colapso – mas o tipo de colapso que transcende pra mgica. Jagger estava tão cansado que precisou da energia da platéia. Não foi um roqueiro naquela noite. Ele esteve mais perto de ser um poeta do que jamais estivera, porque estava tão cansado que mal conseguia cantar. Adoro a música dos Rolling Stones, mas o principal não foi a música, mas a performance – a performance visceral. Foi a performance visceral dele, o ritmo, a movimentação, a fala – ele estava muito cansado, dizia coisas do tipo: “Very warm here/ warm warm warm / It’s very hot here / hot, hot / New York, New York, New York / band, bang, bang.” (Muito quente aqui / quente quente quente / faz muito calor aqui / calor calor / Nova York Nova York Nova York / banda, bang, bang.) Quer dizer, nada daquela coisa foi genial – foi a presença e a força dele que mantiveram a audiência na palma de sua mão. Havia eletricidade. Se os Rolling Stones tivessem ido embora e deixado Mick Jagger sozinho, ele teria sido maravilhoso como qualquer poeta naquela noite. Teria falado alguma de suas melhores letras e mantido a platéia magnetizada. E aquilo me entusiasmou tanto que quase me despedacei, porque vi todo o futuro da poesia. Vi e senti de verdade, fiquei tão empolgada que mal cabia em mim, e isto me deu força pra seguir em frente. […] Apresentação física numa performance é mais importante do que o que você está dizendo. Qualidade dá bom resultado, é claro, mas se a sua qualidade intelectual é alta, seu amor pela platéia é evidente, e você tem uma forte presença física, pode fazer qualquer coisa impunemente.
Comecei a fazer sucesso escrevendo aqueles poemas longos, quase poemas de rock & roll. E gostava de apresentá-los, mas percebi que, embora fossem maravilhosos, não eram grande coisa no papel. Não estou querendo dizer que os renego, mas existe um certo tipo de poesia que é poesia de performance. É como os índios americanos, que não escreviam poesia conscientemente. Faziam cânticos, faziam linguagem ritual – e a linguagem do ritual é a linguagem do momento. Mas, na medida em que ficavam congelados num pedaço de papel – não eram inspiradores. Você pode fazer o que quiser, contanto que seja um grande performer, sabe como é, pode repetir uma palavra mais e mais, contanto que seja um performer fantástico. Quer dizer, Billy Graham é um grande performer, muito embora seja um cagalhão. Adolf Hitler era um performer fantástico. Era da magia negra. E eu aprendi daí. Você pode seduzir as pessoas pra uma consciência de massa. Assim, escrevo pra ter alguém. Há um motivo por trás de tudo que escrevo. Escrevo do mesmo jeito que me apresento. Quer dizer, você só se apresenta porque quer que as pessoas se apaixonem por você. Quer que elas reajam a você. A outra coisa é que, através da performance, alcanço certos estados nos quais sinto minha mente muito aberta – tão cheia de luz, enorme, grande como o Empire State Building -, e, se consigo desenvolver uma comunicação com o público, um grupo de pessoas, quando minha mente está tão grande e receptiva, imagine a energia, a inteligência e todas as coisas que posso roubar delas.
Jim Carroll (3º da esq. pra direita), autor de The Basketball Diaries,
adaptado pro cinema como Diários de um Adolescente
Os poetas de St. Mark’s são muito insípidos, são umas fraudes, eles escrevem: “Hoje às nove e quinze tomei um pico de speed com Brigid…” São espertos o suficiente pra colocar isso num poema, mas se Jim Carroll entra doidão na igreja e vomita, isto não é um poema pra eles – não é cool. Tudo bem se você joga com isso na sua poesia, mas se está realmente nessa, aí já é outra coisa – não é algo que eles queiram encarar. Jim Carroll era a chance do St. Mark’s Poetry Project ter algo real lá. Jim Carroll é um dos verdadeiros poetas da América. Quer dizer, é um poeta de verdade. É um junkie. É bissexual. Foi comido por todos os gênios masculinos e femininos da América. Foi comido por toda essa gente. Ele vive por inteiro. Vive uma vida repugnante. Às vezes você tem que tirá-lo de uma sarjeta. Ele esteve na prisão. É um fodido completo. Mas qual o grande poeta que não foi? Pra mim é incrível que aos 23 anos Jim Carroll tenha escrito todos os seus melhores poemas – com a mesma idade que Rimbaud escreveu os dele. Ele tem a mesma excelência intelectual e altivez de Rimbaud. Mas o baniram porque ele fodeu com tudo. Não apareceu pra sua leitura de poesia. Estava na cadeia. Bom pra ele. Disseram: “Oh, bem, não podemos mais pedir pra ele ler poesias.” Foi ridículo.https://www.youtube.com/watch?v=0oxJmvSpap0https://www.youtube.com/watch?v=5Nyj7YIVNlQ
Publicado em: 06/09/21
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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