O escritor alemão Patrick Süskind, nascido em 1949, é uma das figuras mais enigmáticas do cenário literário contemporâneo. Avesso aos holofotes midiáticos e às noites de autógrafos, é descrito como um artista ermitão – de maneira similar a Thomas Pynchon ou J. D. Salinger. Sua obra carrega uma força sinistra e alegórica que evoca os melhores trabalhos de Edgar Allan Poe ou Franz Kafka.
Süskind celebrizou-se, a despeito de suas reserva ou mesmo franca hostilidade em relação à fama, através do romance bestseller Perfume – História de um Assassino, de 1985, que tornou-se um excelente filme dirigido por Tom Tykwer em 2006 (e depois também virou, em 2018, uma série da Netflix).
Além disso, outro elemento que catapultou esta obra rumo ao estrelato foi o fato de Kurt Cobain declarar-se fã entusiástico do livro. O cantor e guitarrista do Nirvana contava em entrevistas que já o havia lido mais de 10 vezes. Dizia ter se inspirado em O Perfume para compor uma das canções de In Utero, “Scentless Apprentice”, e também para pintar a obra que está na contracapa do álbum que serve como canto de cisne da banda.
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Como explicar a força de sedução dos escritos de Süskind, quando eles vem encharcados de uma vibe meio tétrica e mórbida, repletos de algo inquietante como um filme de terror? Estas fábulas sinistras, protagonizadas por weirdos e psychos martirizados, dizem algo sobre um certo zeitgeist que também marca de maneira indelével a música produzida pela “Geração Grunge”?
Para tentar responder estes questionamentos, vamos focar agora em uma obra que Süskind publica logo após o sucesso estrondoso de Perfume: “A Pomba” (originalmente publicado em 1987, no Brasil editado pela Record, trad. Reinaldo Guarany).
Se ficássemos a observar de fora os atos de Jonathan Noel durante o dia em que ele é acompanhado pelo narrador de “A Pomba”, veríamos um homem a cometer uma série de banalidades e esquisitices aparentemente insignificantes: encontra uma pomba na frente da porta de seu quarto pela manhã e reclama da sujeira feita pelo pássaro com uma mulher do alojamento onde vive; parte para o serviço de vigia de banco e faz aquilo que faz todos os dias; tem um pequeno lapso de distração quando chega a limusine de seu chefe, atrasando-se na abertura de uma porta para seu patrão; procura um hotel, compra comida, observa um mendigo; esquece de jogar o lixo no latão, retorna ao local para fazê-lo; rasga sua calça num prego, sai à caça de uma costureira, não consegue ter sua vestimenta remendada prontamente, arruma-se com durex; fica paralisado em sua posição de vigia por horas, e quando acaba-se seu dia banal trabalho, vai-se para o hotel, come sardinhas, toma vinho e após todos estes episódios um tanto irrelevantes diz para si mesmo (e não tá de brincadeira!): “Amanhã eu me mato!”.
Nenhuma verdadeira tragédia aconteceu neste dia; nada de visível o atormentou, pessoa alguma o ofendeu ou atacou, nenhuma notícia inesperada recebeu, nenhuma doença descobriu. E ainda assim, algo de trágico está a se desenrolar nas entranhas de Jonathan Noel e ninguém está notando. Seria preciso que adentrássemos na arca fechada de sua mente para descobrir como é que pode alguém decidir-se ao suicídio após um dia tão normal e tão pouco dramático.
O mais óbvio a se dizer sobre Jonathan Noel é que ele é um sujeito que adora “fazer tempestade em copo d’água”. Vê problemas insoluvelmente aporrinhantes onde há só um pequeno empecilho. Vê barreiras intransponíveis onde só há uma pedrinha miserável que pode-se muito bem chutar do caminho. Vê perigos demoníacos onde tudo está seguro. Ele é um pessimista patológico. Sempre espera pelo pior. Paranóico até a doença, exagera enormemente a importância dos acontecimentos que lhe ocorrem. Qualquer copinho d’água serve-lhe de ensejo para fazer tempestade. A pomba é o gatilho para uma tempestade psíquica, para um transtorno emocional, que Süskind está interessado em retratar. Assim como Lispector descreve em minúcias o mundo subjetivo de G.H. diante da barata, também Jonathan Noel tem suas entranhas psíquicas desveladas através do contato com este outro que é a pomba:
“Aquele olho, um pequeno disco circular, castanho com o centro preto, era terrível de se olhar. Estava assentado qual um botão costurado na plumagem da cabeça, sem pestanas, sem sobrancelhas, completamente desnudos, virado para fora sem a menor vergonha e aberto de maneira monstruosa; ao mesmo tempo, contudo, havia um quê de fechada discrição no olho; e ao mesmo tempo também ele não parecia estar nem aberto nem fechado, senão que apenas inerte como a lente de uma câmera que devora toda a luz exterior e não deixa refletir nada de seu interior.” (p. 16)
Quando confrontado com a pomba que lhe aparece à porta de casa, ele é tomado por delírios paranóicos de junkie que chegam a ser cômicos de tão exagerados:
“…uma pomba bate asas, é fácil de se errar o tiro, é uma brincadeira grotesca atirar numa pomba, é proibido, leva à retirada da arma de serviço, à perda do emprego, você vai pra cadeia se atirar em uma pomba, não, você não pode matá-la, mas viver, viver com ela você não pode, jamais, um ser humano não pode mais viver em uma casa onde vive uma pomba, uma pomba é a essência do caos e da anarquia, uma pomba vive fazendo barulho em volta de maneira incalculável, empoleira-se e pica os olhos, uma pomba suja sem cessar e solta bactérias devastadoras e vírus da meningite, ela não fica sozinha, uma pomba atrai outras pombas, tem relações sexuais e procria com toda a velocidade, um exército de pombas vai sitiá-lo, nunca mais você poderá sair de seu quarto, passará fome, se sufocará em seus excrementos, será obrigado a jogar-se pela janela e ficará caído na calçada esmagado…” (p. 20).
A simples visão de uma pomba inocente frente à porta de sua casa, aliás uma ave que é o próprio símbolo da paz e que pouco ou nada de perigo oferece à vida humana, envia Jonathan a um delírio paranóide que lhe enche de pavor e lhe faz levantar preces ao bom Deus. Noel decide ali mesmo que nunca mais poderá voltar a seu quarto, esse que está tentando comprar com suas economias a tanto tempo, e que terá que passar a morar num hotel, já que a pomba acaba de “desconjuntar” sua existência…
Da mesma maneira, Jonathan, que trabalha há três décadas como vigia do mesmo banco, que sempre fez com competência mecânica seu trabalho, enche-se de pavor por ter tido um rápido atraso na abertura do portão para o chefe. Esse minúsculo e desculpável erro lhe entrega a mais pensamentos pessimistas: oh, serei despedido prontamente, não conseguirei achar outro emprego, terei que vender todos os meus pertences, viverei pelas ruas, sujo e maltrapilho, mendigando por trocados, embriagando-me de cachaça barata, tendo que cagar pelas rua! Depois os piolhos me roerão a pele, os cachorros me morderão, até que eu morra, esquecido, sozinho, cuspido, na lama, no pântano, debaixo da chuva, sem que ninguém se importe!
Este é um elemento bem interessante da obra: a descrição da situação laboral de Jonathan consiste inclui uma insatisfação crônica com seu trampo que é consolada com a noção de que seria muito pior ser um miserável, um mendigo, um clochard que caga pelas ruas. O personagem, que testemunha mendigos pela cidade, não sente nenhuma compaixão por eles, apenas repulsa e desejo de nunca decair a um status tão degradado, ainda que esta possibilidade de declínio social não cesse nunca de assombrá-lo:
“…dissipou-se na alma de Jonathan qualquer sentimento de piedade pelo clochard (vagabundo). Se até então de vez em quando ainda lhe surgia uma pequena dúvida sobre se teria sentido um ser humano passar um terço de sua vida de pé diante das portas de um banco, abrindo ocasionalmente uma grade e batendo continência à limusine do diretor, sempre a mesma coisa, com férias curtas e salário reduzido, cuja maior parte desapareceria, sem deixar vestígios, na forma de impostos, aluguel e contribuições à Previdência Social… se tudo isso teria sentido; agora a resposta estava diante de seus olhos com a clareza daquele terrível quadro presenciado na Rue Dupin: sim, tinha sentido.
Na verdade, tinha até muito sentido, pois o resguardava de desnudar seu traseiro em público e de cagar no meio da rua. O que havia de mais miserável do que desnudar o traseiro em público e ser obrigado a cagar no meio da rua? O que havia de mais humilhante do que aquelas calças arriadas, aquela postura de cócoras, aquela odiada nudez forçada? O que havia de mais desamparado e degradante do que a obrigação de fazer aquele desagradável negócio diante dos olhos do mundo? Necessidades! Só o nome já traía o martírio. E como tudo que se precisava fazer sob imperiosa coação, elas requeriam, para serem pelo menos suportáveis, a ausência radical dos outros homens…” (62)
“Na cidade, nada propiciava o afastamento dos homens, a não ser um tabique com boa fechadura e ferrolho. Quem não possuísse esse refúgio seguro para as necessidades era o mais miserável e desgraçado dos homens, tendo ou não liberdade. (…) Quando numa grande cidade nem ao menos se pode fechar uma porta atrás de si para cagar – mesmo que seja a porta do banheiro do andar -, quando se privou a pessoa dessa liberdade mais importante, ou seja, a liberdade de se isolar dos outros homens para satisfazer as próprias necessidades, então todas as outras liberdades não têm valor. A vida passa a não ter qualquer sentido. Melhor seria estar morto.” (63)
Jonathan Noel interpreta tudo com seu doentio pessimismo que o leva a temer qualquer minúscula coisa em seu cotidiano que possa ser o gatilho para um snowball effect que o carregue para a sarjeta. Para além da patologia psíquica do indivíduo que o livro retrata, também podemos pensá-lo como emblema da precariedade dos trabalhadores que vivem em insegurança crônica em relação ao futuro, subalternos sempre ameaçados de demissão, que percebem a sociedade ao seu redor não na perspectiva otimista do “empreendedor” que julga ter muitos degraus para galgar em direção ao topo, mas na perspectiva pessimista do precariado que teme virar lúmpen.
Nesse sentido, o personagem de Suskind parece alçar-se a algo mais que meramente um personagem caricaturesco que serve para que se caçoe de um certo tipo de personalidade. Se o Pangloss de Voltaire é o emblema do sujeito otimista, leibniziano, que crê que tudo vai bem no melhor dos mundos possíveis, o Noel de Suskind está no outro extremo: é o pessimista fanático, que sempre crê que tudo está se dirigindo certamente para a merda e que não há mundo pior que este onde estamos.
Mas não se trata somente de uma caricatura. Jonathan Noel é muito mais verossímil que Pangloss, e há mais nele do que pessimismo: trata-se de um sujeito obsessivamente anti-social, que vive encerrado há décadas num minúsculo quartinho, sem amigos e sem amantes, e que foge ao contato humano como os vampiros fogem do alho. “Jonathan não gostava de encontrar-se com vizinhos” e “era-lhe franca e torturantemente horrível pensar na possibilidade de deparar- se com um outro inquilino” (14).
Trata-se também do retrato de uma midlife crisis, que o protagonista atravessa em seu 53º ano de vida, quando todas as ingênuas ilusões da juventude já estão sepultadas e quando ele já sabe que suas esperanças prévias já foram todas traídas. Ter sido bem comportado, servidor obediente do banco, abridor de portar para o patrão sempre pontual no servilismo mecânico, de nada lhe serviu para que escapasse do inferno na terra que é sua vidinha insossa.
“…[Jonathan Noel], que durante toda a sua vida fora uma pessoa honesta e metódica, despretensiosa, limpa e de dieta ascética, sempre pontual e obediente, de confiança, decorosa… e que ganhara com o próprio suor cada 5 cêntimos que possuía e que sempre pagava tudo à vista, a conta da luz, o aluguel, as festas de Natal da concierge…. e que nunca contraía dívidas, que nunca pesara nos ombros de ninguém, não ficara doente nem uma única vez e que nunca vivera à custa do serviço social… nunca fizera qualquer mal a alguém, nunca, jamais desejara outra coisa da vida a não ser obter e consolidar sua própria paz espiritual, pequena e modesta… ao passo que ele se via jogado de cabeça para baixo em uma crise no 53o ano de vida, crise esta que abalava todo o seu projeto de vida tão bem engendrado, deixando-o desorientado e desconcertado e fazendo-o devorar o sorvete de passas por pura perturbação e medo. Sim, estava com medo! Deus sabe que ele tremia e tinha medo apenas por contemplar aquele clochard que dormia: de repente, passou a sentir um medo terrível de ser obrigado a tornar-se o mesmo que aquele arruinado ser humano ali, em cima do banco. A rapidez com que podia acontecer o empobrecimento e a ruína de uma pessoa. A rapidez com que desmoronavam os alicerces aparentemente bem consolidados da própria existência!” (68)
Esta psiquê está assombrada pela possibilidade concreta de ruína, de queda em desgraça, de devir-mendigo que caga nas ruas. Para além disto, devido a seu temperamento paranóide e sociopata, ser observado, para ele, é a pior das maldições. As causas para esse comportamento se explicam pela sucessão de tragédias que recaem sobre ele em sua infância e juventude: perde pai e mãe em um período muito curto; é adotado por um tio que o obriga a trabalhar desde pivete; separa-se da irmã e vai para o exército; casa-se mas a esposa foge com o amante e o filho etc. Ele “tirou de todos esses acontecimentos a conclusão de que não podia confiar no ser humano e de que só poderia viver em paz mantendo-se afastado dele” (8).
Encerra-se então em seu minúsculo quartinho, que mais se parecia com uma cabine de navio, auto-enjaulado distante das complicações do mundo, e vive nesse cárcere voluntário por décadas e décadas. Seu quarto “foi e continuou sendo a ilha tranquila de Jonathan no mundo intranquilo, permaneceu como sua parada fixa, seu refúgio” (13).
Sociopata obsessivo, Jonathan Noel construiu uma parede o separando do mundo exterior e das outras pessoas e se torporizou com o ópio de uma vida mecânica e monótona. “Não gostava de acontecimentos e odiava francamente aqueles que abalavam o equilíbrio interno e confundiam a ordem externa da vida” (5). Seu trabalho exige que ele fique imóvel frente a um banco por quase todo o dia, e ele o realiza já há trinta anos: “Jonathan um dia calculara que, até a sua aposentadoria, ele haveria de passar parado mais de setenta e cinco mil horas naqueles três degraus de mármore. Ele seria então, com toda segurança, a única pessoa em toda Paris – quem sabe também em toda a França – que teria ficado mais tempo parado num único e mesmo lugar” (47). Gostava desse trabalho e o fazia “sem medo, sem insegurança, sem a menor sensação de insatisfação e sem expressões faciais de enfado” (50).
O episódio da pomba, aparentemente insignificante, acaba por adquirir um significado subjetivo gigantesco. O torpor do cotidiano desaparece. A apatia se esvai e ele é obrigado a se confrontar com o mundo. A pomba é como um ente invasor que penetra pelas brechas da parede, fazendo enfraquecer o escudo psíquico de Jonathan Noel.Ele tem constantes ataques de vergonha, uma auto-estima sempre nos subterrâneos, uma ausência completa de senso de humor: quando a pomba caga no corredor ou quando sua calça é rasgada, Noel não consegue nem esboçar um sorriso por situação tão cômica. Tudo o que pensa: ó, quão desgraçado sou! Os outros irão rir de mim! Jonathan tem a auto-estima tão baixa que chega a invejar mendigos. Tem um horror às necessidades evacuatórias humanas e a visão de alguém que caga no meio da rua, frente aos olhares de todos, o leva quase ao desmaio, tamanho seu nojo. Jonathan Noel é enfim esse sujeito sociopata, auto-encarcerado dentro de sua redoma, evitando todo contato com os outros, paranoicamente imaginando que todos querem destrui-lo. Um pessimista patológico, dotado de um auto-ódio feroz, o qual acaba por se extroverter num ódio selvagem contra todo o mundo…
“Tudo que caía em seu campo de visão Jonathan cobria com a pátina monstruosa de seu ódio; sim, pode-se dizer que uma verdadeira imagem do mundo já não mais lhe chegava através dos olhos, mas os olhos serviam apenas de porta para fora, como se o trajeto dos raios se tivesse invertido, para vomitar as caricaturas internas…” (86)
“Ele estava com uma enorme vontade de sacar a pistola e atirar em qualquer lugar, no meio da cafeteria, pelo meio das vidraças, de modo que apenas tilintasse e matraqueasse, bem no meio do ajuntamento de carros ou, simplesmente, no meio de um dos gigantescos prédios defronte, os prédios odiosos, altos, ameaçadores, ou para o ar, para cima, para o céu, sim, para o céu quente, para o céu terrível, pesado, úmido, cinza-pomba, para que ele se rompesse, para que a pesada cápsula de chumbo se despedaçasse e desabasse com o tiro e despencasse e esmagasse tudo e enterrasse tudo debaixo de si, tudo, tudo, todo o mundo monstruoso, importuno, barulhento, fedorento: o ódio de Jonathan Noel era tão universal, tão tirânico nessa tarde que, por causa de um buraco em sua calça, ele estava com vontade de deixar o mundo em escombros e cinzas!” (90)
“A Pomba” acaba por ser um retrato de um estado psíquico patológico que elucida muitas coisas: o quanto acontecimentos aparentemente insignificantes podem gerar efeitos catastróficos na subjetividade, o quão desgraçados e paranóicos nos tornamos quando recusamos o contato humano, o quão degradante pode ser tornar o processo de se construir o escudo psíquico para se proteger dos estímulos do mundo. Ernest Becker diria que todos nós, em certo grau, precisamos nos auto-limitar e nos auto-castrar pois somos incapazes de suportar o espetáculo inteiro do mundo que inclui como fato necessário e inelutável nossa própria finitude e morte.
Jonathan Noel é o sujeito que exagera na dose e que constrói ao redor de si uma cidadela fechada onde ele se auto-enjaula, inutilmente tentando manter o mundo para fora, imaginando que deixá-lo entrar seria um perigo letal, quando, pelo contrário, poderia ser sua salvação… É o homem que, após muito sofrer, amedrontado pela vida, constrói uma série de proteções psíquicas e materiais para evitar novos ferimentos, e nesse processo acaba fazendo com que sua vida passe a ser nada mais do que uma constante, obsessiva e mal-sucedida fuga da dor… ou seja, da vida!
“Todo o seu potencial repousava em ‘eu iria, eu poderia, eu preferia fazer’; e Jonathan, que formulava em espírito as terríveis e subjuntivas ameaças e imprecações, sabia muito bem, já no mesmo momento, que jamais iria concretizá-las. Não era homem para isso. Não era uma pessoa possuída por Amok, que fosse cometer um crime por falha emocional, por distúrbio espiritual ou por ódio espontâneo; e, na verdade, não porque o crime tal crime lhe parecesse condenável do ponto de vista moral, mas sim, simplesmente, porque ele era de todo incapaz de externar-se através de fatos ou palavras. Não era um autor. Era um mártir.” (91)
Pela assustadora densidade do mergulho nesta psiquê atormentada, esta breve obra de Süskind pode até ter poucas páginas mas deixa marcas duradouras no leitor. Não é difícil perceber porque Cobain sentiu-se capturado pela descrição afetiva que o escritor alemão consegue plasmar em suas narrativas: Süskind é uma figura capaz de lidar com certos extremos da experiência humana, inclusive figuras psicóticas, paranóides e niilistas, sem projetar nelas uma moralina condenatória e também sem manter-se a uma cuidadosa distância para evitar o contágio.
Ele busca descrever o mundo subjetivo dos desviantes, dos anormais e mesmo dos assassinos (como o Jean-Baptiste Grenouille de O Perfume) através de um mergulho vertiginoso em seus labirintos internos, tornando-se uma espécie de cronista dos inadaptados e dos que flertam com o niilismo. Süskind, pintor-em-palavras de estranhíssimos martírios, tem uma obra cuja atmosfera trevosa, angustiada e dissonante evocam também, como argumentei acima, a ascensão e queda dos mártires culturais do grunge como os falecidos Cobain, Stanley, Weiland e Cornell.
Por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro
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Publicado em: 24/11/21
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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