Nessa época de pestes aporrinhantes, em que pandemias prosperam com o apoio da criminosa irresponsabilidade de genocidas como Jair Bolsonaro, peço perdão por publicar a foto desse bicho escroto. Escrevo estas palavras ainda debilitado pelos efeitos da dengue e tentando, em meio à sensação de que me trancaram no Samsara e jogaram a chave fora, sobre a condição do ser humano brasileiro em meio às patologias tropicais.
No começo de 2022, eu e a Gisele, com duas semanas de distância entre nós, ambos fomos derrubados pela doença transmitida pelo Aedis aegipti. Uma condição que fez com que as plaquetas e leucócitos nas nossas correntes sanguíneas caíssem em queda livre, assim como o ânimo vital. Ainda que tenha renovado em nós os laços que nos unem através do apoio mútuo, atravessando como dá as adversidades que são tantas. O amor têm incontáveis definições, mas ultimamente, por aqui, ele tem sido definido como o esforço conjugado para afrontar o absurdo, a doença e o horror através do cuidado recíproco.
Em Goiânia, o surto da doença foi brutal neste início de 2022: chuvas torrenciais e calores tórridos, somados à incapacidade do poder público de mobilizar agentes de saúde para combater os focos de proliferação, fizeram os casos explodirem. Os jornais locais noticiaram quase 1.000% de aumento nos casos de dengue em relação ao mesmo período do ano anterior. (Leia também: Com a pandemia, prevenção à proliferação do Aedes aegypti ficou em segundo plano)
Com minhas veias agulhadas, recebendo soro e tirando sangue, pude conversar com inúmeras pessoas que estavam afligidas por males às vezes sobrepostos: como a senhora, que trabalha como pediatra, e que me contou que duas semanas depois de começar a sentir os sintomas da covid19, fui picada pelo mosquito que ilustra o princípio pequenas causas, grandes efeitos: uma picadinha de inseto, e o ser humano entra em um inferno de 10 dias que se desenrola no campo-de-batalha de seu corpo.
Eu, que algumas vezes até cheguei a defender a sacralidade de todas as formas de Vida que se manifestam enquanto multi-colorido Carrossel da Senciência, que já gastei verbo para elogiar a Teia da Vida e a miríade de criaturas decoram com diversidade o “arco-íris terrestre” por Eduardo Galeano celebrado, agora quero mais… é que o Aedes aegypti se fôda. Que se estrepe, que seja extinta toda sua prole, toda sua raça! Que seja expelida, excluída da Teia da Vida, esta maldita corja!
Eu, que decidi parar de comer animais mortos faz décadas, pego-me desejando que esta peste de mosquito caia para fora da existência, que seja uma espécie riscada do mapa dos vivos. Pego-me querendo que possamos nos declarar libertos de seu cortejo mórbido de dengues, zikas e chikungunyas.
Como se não bastasse a interminável pandemia e pandemônio que moem o ânimo dos brasileiros despertos, devo falar a vocês sobre outras patologias tropicais para além do bolsonarismo. Quantos de nós já despertaram para o fato de que a monumental crise de saúde coletiva que enfrentamos relaciona-se umbilicalmente com a nossa patológica desconexão com a animalidade? Com o modo como, na prática, biodioversidade não é um valor que norteia nossas atitudes tanto quanto a pervasiva busca por conforto e conveniência?
Eu, que julgo ser amigo dos bichos e sou pródigo em carinhos para a Schnauzer Crackinha e a felina Tânia Katêrina, durante o adoecimento pela dengue notei meu intenso desprazer por habitar um universo que tenho que compartilhar com os coronavírus, os mosquitos da dengue e os animais humanos que lambem as botas-sujas-de-sangue-humano de Bolsonaro, dentre outros infortúnios encarnados.
A natureza, tal como sentida a partir do corpo em crise do doente, não é o reino da Harmonia e da Paz. A natureza é um campo de combate, uma guerra que passa os organismos, uma struggle for life onde a morte é moeda corrente.
O que o conceito de Antropoceno expressa é a época em que uma parte da natureza, que somos nós, torna-se em conjunto uma espécie de mega exterminador da biodiversidade. Isso é sintoma mórbido de algo que perpassa a história das civilizações, o fato de que o ser humano pode até prestar lip service ao conceito de pluralidade das formas de vida, mas seu amor pelos outros animais mostra-se bastante limitado, problemático e assustador.
O chamado “progresso técnico-científico” não é também uma guerra dos humanos contra outras partes da Natureza? Quantas florestas tropicais extremamente biodiversas não foram derrubadas por nossas motoserras para que que construíssemos por cima metrópoles repletas de avenidas cimentadas e arranha-céus?
O carnismo, enquanto ideologia e prática que reina supremo, é outro sintoma da disseminação massiva de um desdém humano pelo bem-estar dos outros animais.
O Antropoceno é o filho obsceno do antropocentrismo. Somos nós considerando-nos falsamente como o ápice da criação, julgando-nos no direito de exterminar as criaturas cujas carnes desejamos devorar, confinando bilhões de seres sencientes nas masmorras infernais das factory farms. Rob Wallace vem ensinando: foi na fornalha dos infernos destas factory farms que se cozinhou a pandemia global de covid19. Big farms make big flus.
Para incremento da gravidade desta situação nefasta ainda é minúsculo o número daqueles que se importam com a ciência essencial para que tenhamos um futuro, a ecologia. O narcisismo antropocêntrico leva-nos a colocar o Ego na frente do Eco, e isto também se manifesta quando a doença conduz ao ódio pela parte da natureza que está causando o distúrbio. Eu, com a dengue, abandono com velocidade qualquer veleidade de amor-à-natureza-como-um-todo e na inclusão de todas as suas partes. Começo a desejar um planeta com menos biodiversidade, uma Terra da qual teríamos excluídos os animais causadores de pestes aporrinhantes.
O problema com este tipo de pensamento é que ele não considera que as próprias pestes podem ter sido causadas pela devastação ambiental imposta pelos humanos e que radica também na noção de que somos animais superiores, estando de algum modo autorizados por Deus ou pelo Cosmos a exterminar aqueles que julgamos ser os bichos escrotos e também aqueles que avaliamos como bichos comestíveis e saborosos.
Para que compreenda o melhor do que estou falando, peço que Imaginem o que aconteceria neste planeta em ebulição caso desse decidíssemos exterminar todas as abelhas. Não abordarei aqui dos possíveis argumentos em prol deste extermínio, e poderiam incluir coisas bastante triviais como evitar para sempre que sejamos picados pelo ferrão já alguma abelha. Quero já saltar para conclusão de que o Apocalipse das Abelhas seria a extinção da humanidade: o beeapocalpyse é o nosso apocalipse.
Estamos mesmo ferrados: estamos adoecendo e morrendo em massa, pagando o preço por um certo desmazelo intergeracional com o qual recobrimos, com o manto sombrio do desprezo, a importância do vínculo entre biodiversidade e nossas próprias possibilidades de existência. Não há vida para a humanidade em um planeta do qual teríamos excluído a diversidade para melhor reinar, “sozinhos”. Na hipótese de que todas as bactérias fossem exterminadas, para mencionar outro exemplo, o que aconteceria conosco, com nossos organismos cujo processo digestório demanda-as como condição sine qua non?
Para terminar esta reflexão, queria prestar minha homenagem a duas pessoas com quem tenho muito aprendido, que emanam sabedoria e força vital: Sonia Guajajara e Paul Beatriz Preciado certamente podem muito nos auxiliar numa reflexão coletiva sobre as patologias que nos assolam.
Uma publicação compartilhada por A Casa de Vidro (@acasadevidro_pontodecultura)
“Nossa sociedade está muito adoecida. Está precisando rapidamente de um princípio ativo para acabar com essa baixa humanidade.” Estas frases de @guajajarasonia – liderança da @apiboficial – em entrevista à @revistacontinente realizam um diagnóstico preciso sobre o país cuja bandeira está toda manchada de sangue humano.
Bem antes da pandemia que, catalisada pelo desgoverno genocida de Bolsonaro e seus generais, já matou mais de 650.000 de nossos concidadãos, o Brasil já estava profundamente adoentado, com baixa imunidade diante da ascensão viral dos entulhos autoritários e dos filhotinhos da ditadura militar.
Eliane Brum celebrizou a expressão “doente de Brasil” para falar sobre o quanto este país têm massacrado nossos ânimos através de uma sucessão infindável de catástrofes e tragédias. Sonia Guajajara, que ousou propor-se como vice-presidenta de Guilherme Boulos na eleição de 2018, transita por caminhos semelhantes ao falar de um país hoje profundamente afundado no lodo de um projeto etnocida, ecocida e genocida. Ela é a encarnação daquilo que precisaríamos para regenerar o país.
Já estávamos bem doentes, enquanto sociedade, antes do coronavírus, isto é certo. Doentes a ponto de eleger um fascista truculento que nunca disfarçou os pendores racistas, misóginos, homofóbicos e elitistas de seu caráter psicótico. Em massas, manadas foram às urnas para votar na boçalidade-ostentação.
“O bolsonarismo tem conseguido impregnar muito negativamente. As práticas de racismo aumentaram bastante. O machismo também cresceu muito nesse período, inclusive com o aumento do feminicídio nesta pandemia. A invasão das terras indígenas só aumenta… Quando a gente fala sobre o aumento disso tudo, estamos falando, claro, do governo, porque ele está investindo numa campanha de ódio para poder ter essa reação dos seus seguidores. Na própria sociedade, tem os que praticam esses atos e tem a outra parte que se cala e não reage. Essa conivência também é desastrosa. Vai demorar muito para a gente poder acabar com o bolsonarismo e gerar também essa reação na sociedade para acabar com isso. Ainda vai ficar um rastro desastroso por algum tempo.” (Revista Continente, Agosto 2021, p. 11)
Já Preciado, este ser humano que hoje revoluciona o pensamento e a escrita assumindo-se como metamoforse ambulante, esta pessoa-ciborgue que expõe em seus textos maravilhosos o quanto a existência é travessia, escreveu algo que muito me comove em Um Apartamento em Urano. O planeta distante, apelidado de “gigante gelado”, aproximou-se da Terra em 2013 e retornará a este estado de relativa “proximidade” com a esfera giratória sobre a qual se desenrola o drama da Vida apenas em 2096.
Em 2096, caro leitor de 2022, eu, você, Preciado e Guajajara já estaremos mortos. “Com toda certeza, meu corpo (…) não existirá mais enquanto carne consciente sobre o planeta. Pergunto-me se, até lá, teremos conseguido superar a epistemologia racial e da diferença sexual e inventar um novo marco cognitivo que permita a existência da diversidade da vida ou se, ao contrário, o tecnopatriarcado colonial terá destruído os últimos vestígios da vida sobre o planeta. Nunca saberei. Mas desejo que as crianças malditas e inocentes ainda estejam aqui para receber Urano de novo.” (PRECIADO: Zahar, 2019, p. 42)
Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, 27/02/2022
Publicado em: 25/02/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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