Não há sombra de dúvida que “Ainda Estou Aqui” fez história em sua repercussão internacional; mas alguns dos motivos de sua aclamação são menos louváveis do que se imagina.
Por Eduardo Carli de Moraes
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Qualquer um de nós que conheça a fundo a filmografia brazuca acerca do período ditatorial, ao avaliar Ainda Estou Aqui em contraste com outras obras onde a violência gráfica se manifesta na tela de maneira bem mais brutal (como Batismo de Sangue, de Helvécio Ratton, 2007, baseado em obra de Frei Betto), não terá dificuldade em acolher a tese de que o filme de Salles carrega a marca da brandura.
Este último termo não foi escolhido a esmo, mas com a intenção de evocar a problemática tese da ditabranda – neologismo utilizado muitas vezes para afirmar que, no Brasil, a ditadura não foi tão dura assim, que certamente no Chile e na Argentina foi pior etc.
Em um editorial de 2009, ao utilizar-se do termo – que aliás nada tem de original e já era utilizado pelo general Augusto Pinochet para referir-se ao próprio regime que ele encabeçava – o jornal Folha de São Paulo incorreu numa falácia, como acusou a Fundação Perseu Abramo. Uma falácia motivada inclusive pelo desejo desta entidade do jornalismo de diminuir sua culpa-no-cartório pela cumplicidade que teve com o regime instaurado pelo golpe de 1964.
A questão espinhosa, que poucos parecem dispostos a encarar mas que merece ser posta, é se nosso glorioso filme Oscarizado contribui, de algum modo, para um retrato demasiado brando do regime instaurado em 1964, já que são bem leves as cenas de Eunice no cárcere e também suscita certo incômodo a figura do soldado que confessa à senhora: “eu não concordo” (sobre isto, acompanhem o debate promovido por Jones Manoel).
Outro elemento digno de crítica é um fator frisado com força por O Dia Que Durou 21 Anos (de Camilo Tavares, 2012), um dos melhores documentários que temos sobre o tema, e por O Que É Isso, Companheiro? (de Bruno Barreto, 1997), um dos melhores filmes de ficcionalização da ditadura já feitos no país: ambos acusam com contundência a participação dos Estados Unidos da América na derrubada do regime encabeçado por João “Jango” Goulart.
Notem que o filme de Walter Salles, ainda que realize uma breve crônica historiográfica acerca dos métodos da resistência armada no Brasil, inclusive o sequestro de embaixadores gringos na intenção de forçar o regime a libertar os presos políticos retidos em suas masmorras e torturados em seus porões, prefere mencionar apenas os embaixadores alemão e suíço. Nenhuma cena faz referência a Charles Burke Elbrick, capturado em setembro de 1969 por integrantes dos grupos guerrilheiros de esquerda MR-8 e Ação Libertadora Nacional.
Vejam bem: em 1997, o filme O Que É Isso, Companheiro?, que também conta com atuação de Fernanda Torres, inspirado num livro de Fernando Gabeira que detalha a ação guerrilheira para o sequestro de Elbrick, foi indicado ao Oscar de filme em língua estrangeira – acabou derrotado pelo filme holandês Karakter, de Mike van Diem.
Se, em 2025, Ainda Estou Aqui acabou levando a estatueta, será que isto não tem nenhuma relação com o fato de que todos os vínculos dos EUA com a Ditadura brasileira foram ocultos? Não há sinal de menção à Operação Condor no filme de Salles, assim como omite-se intencionalmente qualquer contextualização mais funda acerca da justificação ideológica formulada pelos Yankees utilizada para perpretar crimes contra a humanidade e violações sistemáticas dos direitos humanos no Brasil.
Refiro-me aqui, ao evocar o tema da justificação ideológica, ao contexto da Guerra Fria em que os EUA propagavam seu feroz anticomunismo através de práticas persecutórias e censoras que entraram para a história sob o nome de macartismo e que podem ser sintetizadas num slogan como Better Dead Than Red. Será que a consagração de Walter Salles na cerimônia em Los Angeles em 2 de Março de 2025 não guarda alguma relação com o respeitoso silêncio com que o filme recobre a culpa estadunidense por todos os torturados e mortos pela ditadura?
Há ainda um outro elemento que não merece passar em silêncio: Walter Salles é literalmente um bilionário. Por ser tão simpático, de fala tão branda, de intervenções no debate público tão repletas de lucidez e sensibilidade, o “Waltinho” ganha nossa simpatia e acaba entrando numa categoria muito problemática, aquela do “bilionário humanista”, do bilionário-mas-gente-boa.
Segundo a BBC, “com uma fortuna estimada em R$ 26,4 bilhões, segundo o ranking de bilionários brasileiros da revista Forbes, Walter Salles Jr. é hoje o 11º homem mais rico do Brasil, empatado com o irmão João Moreira Salles, diretor de documentários como Notícias de uma guerra particular (1999) e Santiago (2006), e fundador da revista Piauí e do instituto de apoio à ciência Serrapilheira. Walter Salles também é atualmente o terceiro diretor de cinema mais rico do mundo, de acordo com a Forbes, atrás apenas de Steven Spielberg, com uma fortuna estimada em US$ 5,3 bilhões (R$ 30,3 bilhões), e de George Lucas, com um patrimônio de US$ 5,2 bilhões (R$ 29,8 bilhões).”
Ora, o sucesso de Ainda Estou Aqui pode ser desvencilhado do poder que o capital pessoal de Walter Salles possui? Não podemos legitimamente suspeitar que o Itaú/Unibanco controlado pela Família Moreira Salles tenha um certo peso na determinação do oba-oba global pra cima do filme? Em outros termos, não seria ingenuidade de nossa parte crer que foram os méritos intrínsecos da obra-de-arte que a fizeram ser premiada, deconsiderando o lobby que nosso assim-chamado bilionário-do-bem pôde pagar?
Para aqueles cidadãos que, como eu, defendem que bilionários nem deveriam existir, já que são a encarnação da concentração excessiva de capital em poucas mãos e a corporificação de uma grotesca injustiça econômica, é bastante problemático que o debate público sobre o filme não seja perpassado por uma consideração crítica de que o cineasta responsável pelo mesmo é um bilionário de família importante que não quis levantar nenhum dedo acusatório contra os EUA?
Sinto-me agora impelido a ir além e avançar rumo àquele que é talvez o mais polêmico item desta crítica e que incide sobre o familismo. Ora, Ainda Estou Aqui é um filme feito pelo bilionário de família importante a respeito de uma outra família importante (os Paiva) e tendo como atrizes centrais mãe-e-filha de outra família importante (Fernanda Montenegro e Fernanda Torres), o que me leva a perguntar: não seria uma tragédia digna de nossa comoção se o filme fosse sobre o sequestro, a tortura, a morte e a ocultação do cadáver de alguém que não fosse um pai-de-família?
Ocorre-me aqui a reflexão de Judith Butler sobre a distruibuição diferencial do luto, ou seja, como se criam cisões entre as vidas que, quando aniquiladas, merecem ser choradas, e aquelas que são indignas de luto mesmo quando violentamente suprimidas.
Parece-me que Ainda Estou Aqui comove por conta de sua construção de uma identificação do espectador com o contexto familiar dos Paiva que abre a possibilidade de uma interpretação sórdida: aquela de que a ditadura errou aqui no alvo pois atacou uma família privilegiada, de classe média alta, que gozava de vida confortável no Rio de Janeiro; o que suscita a noção nefasta de que, se fosse outro o alvo, uma família favelada ou um guerrilheiro que tivesse abandonado a família, estes não seriam alvos dignos de nossa lástima ao serem aniquilados?
Sei que formular tais críticas me coloca sob o risco de ser acusado de comportamento anti-patriótico e estraga-prazeres. Ontem, ao assistir a cerimônia do Oscar na Globo, fui inundado por cenas dos “foliões” em várias capitais brasileiras que comemoram o estatueta como se o Brasil tivesse vencido uma espécie de Copa do Mundo do Cinema. Compreendo que a maioria de nós pega carona neste prêmio para sentir um boost em sua auto-estima enquanto cidadão brasileiro, como se este fosse um grande feito do país que integramos.
Há nisto ingenuidades que procurei aqui dispersar, para além da submissão acrítica aos aparatos de consagração provenientes dos EUA e do epicentro da indústria cinematográfica que é Hollywood. O “grande feito pátrio” é ser reconhecido pelo assim chamado Primeiro Mundo; se a Academy sediada em Los Angeles diz que nosso filme presta, aí sim acreditamos; é ou não é um sintoma de nosso insistente e pegajoso status de submetidos ao imperialismo cultural anglo-saxão?
Demorou muito tempo para o Brasil conquistar a tão sonhada estatueta: já havíamos sido indicados antes por O Pagador de Promessas, O Quatrilho, O Que É Isto Companheiro? e Central do Brasil. A conquista de Ainda Estou Aqui certamente deve muito aos méritos intrínsecos da obra, por assim dizer, e que não são poucos, mas há também motivos menos louváveis que explicam o oba-oba e que foram aqui delineados. Não se trata aqui de verter água no chopp das comemorações patrióticas, mas de trazer uma contextualização que possa nos conduzir a uma apreciação mais justa e lúcida dos meios através dos quais “a arte pode ser guardiã da memória coletiva”, como expressou belamente Thaís.
O problema é que a arte não será autêntica guardiã da memória coletiva caso contenha omissões graves a respeito da participação do imperialismo estadunidense na determinação de nossas mazelas, caso contenha abrandamentos voluntários da violência de um regime que só teve suas entranhas expostas pela CNV instituída por Dilma em seu primeiro mandato, caso contenha tendências ideológicas que nos levem a sentir luto e comoção apenas por “gente importante”, de “família nobre”, enquanto permanecemos de olhos secos e corações indiferentes diante dos injustiçados e dos aniquilados que não tinham pertença a estruturas familiares e conjugais tradicionais.
Em uma das cenas mais comoventes e emblemáticas do filme, Eunice Paiva conquista o atestado de óbito de Rubens Paiva. Estranho país este em que um atestado de óbito é razão para comemoração. O desaparecimento dos cadáveres daqueles que assassinou era uma das ações da ditadura militar de maior crueldade, condenando a família dos desaparecidos a permanecerem na angústia infindável de não poder dar sepultura digna aos ossos dos entes queridos.
Vejo com preocupação que o país se lance, em meio à euforia carnavalesca, a uma celebração da proeza de Ainda Estou Aqui na cerimônia de 2 de Março de 2025 em Los Angeles, quando Jair “Genocida” Bolsonaro – aquele que sempre ofendeu com brutalidade as famílias que procuravam por verdade, justiça e reparação para seus parentes massacrados por Ustras e outros calhordas, dizendo que “quem busca osso é cachorro” – ainda não foi preso, a despeito de seus inúmeros crimes, os mais graves dele sendo o genocídio que promoveu durante a pandemia e a tentativa de golpe de estado após ser derrotado nas urnas e que culminou com o 8 de Janeiro de 2023.
Que este filme possa turbinar nosso senso cívico de revolta diante dos entulhos autoritários que ainda estão aqui. Que não fiquemos paralisados no narcisismo coletivo de nos acharmos os fodões do cinema global e que nos mobilizemos para a devida punição legal dos Bolsominions que foram o gado de manobra do Golpe naufragado de 2023 e dos cabeças do bolsonarismo – sobretudo no campo militar – que ameaçam-nos com trevas renovadas enquanto permitirmos que estejam livres e soltos apesar do sangue que têm nas mãos.
Que Ainda Estou Aqui possa nos mobilizar no sentido de exigir que não haja anistia nem amnésia para os assassinos da democracia que passeiam entre nós ostentando seus horrores de extrema-direita sem véus. Caso contrário, corremos o risco de estarmos embarcando num oba-oba de colonizados diante dos aparatos de consagração dos EUA – país, aliás, para onde Jair “a Ditadura devia ter matado 30 mil” Bolsonaro fugiu após perder a eleição para Lula, e país tratado com imperdoável brandura pelo filme do nosso bilionário-do-bem.
Que o melancólico desfecho do filme de Salles, com Eunice, encarnada por Montenegro, padecendo com o Alzheimer e já incapaz de expressão verbal, possa nos inocular uma saudável preocupação com aquilo que Bernardo Kucinski chamou, em seu K. – Relato De Uma Busca, uma das melhores obras-de-arte já escritas no Brasil sobre o período ditatorial, de Mal de Alzheimer Nacional, moléstia de que estamos ainda muito longe de estarmos coletivamente curados.
Por Eduardo Carli de Moraes, Natal/RN, 03/03/2025
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Publicado em: 08/03/25
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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