“O capitalismo como religião” é uma espécie de fio vermelho que atravessa reflexões sociológicas de pensadores cruciais como Max Weber e Walter Benjamin. Mas George Orwell quer mesmo é fazer a sátira impiedosa das maneiras que fazem com que não apenas os ricos e proprietários mas também a grande massa de pobres caírem de joelhos diante de Mamon.
Anos antes de tornar-se um dos mais célebres escritores da língua inglesa a partir dos anos 1940 do século XX com a publicação de A Revolução dos Bichos (Animal Farm), que saiu em 1945, e 1984, lançado pouco antes da morte do seu autor em 1949, George Orwell já havia deixado sua marca indelével na literatura.
Com livros impactantes tanto no âmbito da não-ficção (como Na Pior Em Paris e Londres ou Lutando na Espanha) quanto no ramo do romance (através de obras como A Filha do Reverendo), o sujeito que havia nascido na Índia com nome Eric Blair nunca foi exatamente conformado ao capitalismo. Ao contrário, toda sua obra é pungentemente crítica da vida sob o capitalismo.
Ainda que muitos hoje em dia queiram pintá-lo unilateralmente como alguém que denunciou o comunismo, malhou o stalinismo, despertou-nos sobre os horrores do totalitarismo soviético pós-Lênin, a verdade é que George precisa ser levado a sério quando se auto-declara como socialista democrático. Não, não estamos diante de um apologista do capitalismo!
Aqui vamos explorar Keep the Aspidistra Flying, romance publicado em 1936, batizado como O Vil Metal (na tradução de Portugal), e que no Brasil possui título dúbio: para alguns, chama-se Mantenha o Sistema, para outros A Flor da Inglaterra (aqui comentaremos a edição com este último título, da Cia das Letras, tradução de Sergio Flaksman). Quem tiver interesse em sua adaptação para o cinema, assista A Merry War, de 1997, dirigido por R. Bierman.
O protagonista, Gordon Comstock, 29 anos, declarou guerra ao império do Dinheiro. Com insistência e teimosia, pelo livro afora, nas mais variadas situações, ele fala horrores sobre o “fedor do dinheiro” que está por toda parte na Londres dos anos 1930. Gordon revolta-se contra a civilização capitalista que o rodeia, enojado com os outdoors e as propagandas de neon. O rosto sorridente das modelos fotografadas pelos publicitários parece-lhe como uma “horrenda alegria” que deseja transformar-nos em “porcos dóceis instalados no chiqueiro do dinheiro, tomando seu Bovex” (Cap 1, p. 24).
Gordon é só desprezo pelos “cartazes de alimentos industriais e remédios, exortando os passantes a corroerem suas tripas com essa ou aquela forma de lixo sintético.” (Cap. 1, p. 12) Ele escarra seu escárnio sobre os slogans das mercadorias da moda – Energia para o dia inteiro num tablete de Vitamalt! Ou As crianças clamam por seu prato de sucrilhos True-Weet.
Aspirante a poeta, Gordon abandonou um promissor posto de publicitário e preferiu uma vida bem mais modesta, mas que permitisse que ele escrevesse seus poemas. Porém, sua carreira literária é um fracasso: publicou apenas um livro de versos, Ratos, que vendeu menos de 200 cópias e foi parar na sessão de encalhes da livraria onde ele agora trabalha, sempre contanto as moedinhas no bolso.
Porém, este não é um personagem que mereceria estar na galeria dos revoltosos que Albert Camus compôs em uma de suas magnum opus, L’Homme Revolté / O Homem Revoltado, onde destaca a revolta como fenômeno que solidariza os indivíduos (“eu me revolto, logo somos”). Gordon Comstock pratica uma revolta de um homem só; pensa recusar sozinho todo o sistema, mas todas as suas atitudes revelam sua submissão desesperada ao poderio desse deus chamado dinheiro. Ele se pretende ateu, mas não há um só pensamento seu que não traga a marca de uma verdadeira obsessão com o dinheiro.
George Orwell nunca esteve interessado em referendar as mentiras propagadas pelos poderosos, insurgindo-se contra as falsificações grotescas da História ordenadas pelo Partido em 1984 e atacando as fraudes kitsch dos capitalistas com suas gigantescas iscas para o consumo espalhadas pelas avenidas em imensos cartazes e outdoors. Orwell quer revelar a dura verdade que habita ruas encardidas e deprimentes, onde cortiços abrigam uma pobreza sempre exilada das propagandas de margarina.
Na aurora do romance, George Orwell retrata seu protagonista ganhando uma merreca como funcionário de uma livraria londrina, desesperado com as parcas moedas que tem no bolso e prevendo uma dolorida escassez de cigarros para os próximos dias. Longe de ser descrito como um heróico idealista que largou um emprego vil para dedicar-se a um ofício nobre, Gordon é logo de saída descrito por Orwell como alguém cheio de ódio pelos livros, em especial os que fedem a refinamento e foram escritos por endinheirados:
“O que ele mais detestava era o livro ‘culto’, do tipo mais pretensioso. Os livros de crítica e os tratados sobre o beletrismo. O tipo de coisa que os jovens animais endinheirados de Cambridge escreviam quase dormindo… O dinheiro e a cultura! Pegou um volume de aparência muito refinada – Aspectos do Barroco Italiano -, abriu, leu um parágrafo e enfiou o livro de volta na prateleira com uma mistura de horror e inveja. Ah, aquela onisciência devastadora! Ah, aquele refinamento ofensivo… E o dinheiro que esse refinamento custa! Porque, no final das contas, o que mais existe por trás dele, além do dinheiro? Dinheiro para o tipo certo de educação, dinheiro para os amigos influentes, dinheiro para o ócio e a paz de espírito, dinheiro para as viagens à Itália. É o dinheiro que escreve livros, é o dinheiro que os vende.” (Cap 1, p. 17)
A tese de Gordon poderia ser discutida através da noção de capital cultural, formulada pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu. Aqueles que são, desde o início de suas vidas, privados de uma formação de qualidade, pois esta é privilégio dos que podem pagar por ela, tornam-se pobretões de capital cultural, o que soma-se à penúria de capital “real”. Orwell descreve seu protagonista, na escola, como vítima frequente de bullying, torturado pelo esnobismo dos colegas mais ricos, sujeito a uma cotidiana humilhação:
“Mesmo nas escolas de terceira categoria para as quais Gordon foi enviado, todos os meninos eram mais ricos do que ele. Logo descobriam sua pobreza, claro, e transformaram sua vida num inferno por causa disso. A maior crueldade que se pode praticar contra uma criança talvez seja mandá-la para uma escola onde todos os outros meninos são mais ricos do que ela. Uma criança consciente da pobreza será submetida a torturas do esnobismo que um adulto mal pode imaginar. Naquele tempo, especialmente durante o curso secundário, a vida de Gordon foi uma longa maquinação no sentido de conseguir se manter de cabeça erguida e fingir que seus pais eram mais ricos do que eram. Ah, foram dias de profunda humilhação! (…) Os risinhos cruéis de desprezo dos outros rapazes quando você não chegava a ter dez shillings… Mesmo agora, vinte anos depois, a lembrança daqueles tempos naquela escola provocava calafrios em Gordon.
O primeiro efeito de tudo isso foi produzir nele uma reverência rastejante pelo dinheiro. Naquela época, ele detestava de fato sua família indigente – seu pai, sua mãe, sua irmã Julia, todo mundo. Odiava os parentes por suas casas modestas, sua deselegância, sua atitude desprovida de alegria diante da vida, suas infindáveis queixas e preocupações a respeito de quantias ínfimas… A frase que mais se ouvia no lar dos Comstock era, de longe, ‘Não temos dinheiro para isso.’ Naquele tempo, ele ansiava por dinheiro como só uma criança é capaz de ansiar. Mas por que ele não podia ter roupas decentes, muitos doces e ir ao cinema sempre que quisesse? Culpava os pais por sua pobreza, como se eles tivesse empobrecido de propósito.” (Cap. 3, p. 58)
Quando adolescente, Gordon torna-se socialista – “todo rapaz inteligente é socialista aos 16 anos”, comenta o narrador, antes de adicionar o comentário supostamente maduro: “nessa idade, ninguém percebe a ponta do anzol cuidadosamente escondido dentro da isca bem gorda.” (p. 59). Gordon passa a publicar uma revista chamada O Bolchevique, que “defendia o socialismo, o amor livre, o desmembramento do Império Britânico, a abolição do Exército e da Marinha, e assim por diante.” (p. 59)
Neste romance, através da lupa de sua narrativa envolvente, o que nosso autor deseja frisar é uma espécie de submissão coletiva da Inglaterra à divindade monetária, ao Mamon do dinheiro, numa espécie de culto satânico que ele descreverá nunca estando muito distante de Charles Dickens. Orwell descreve um jovem que,
“mais cedo que a maioria das pessoas, descobriu que todo comércio moderno não passa de vigarice. Curiosamente, foram os cartazes de propaganda nas estações de metrô os primeiros a lhe revelar que as coisas eram assim. O que ele percebeu foi que o culto ao dinheiro tinha sido elevado à categoria de verdadeira religião. E talvez a única religião autenticamente sentida que nos resta. O bem e o mal não significam nada, a não ser fracasso ou sucesso. Daí a expressão, profundamente significativa, de sair-se ou dar-se bem. O decálogo fora reduzido a dois mandamentos. Um para os patrões – os eleitos, a casta sacerdotal do dinheiro, por assim dizem -, ‘Ganharás dinheiro’; e outro para os empregados – seus escravos e subordinados -, ‘Não perderás teu emprego’.” (Cap 3, p. 59)
Desta forma, vale a pena frisar que há um campo de estudos interessante aqui: a interpretação deste romance, da história de vida que ele descreve, pode servir de ilustração ou de food for thought para as teses sobre o capitalismo como religião – tema que inspirou texto de Walter Benjamin, publicado pela Editora Boitempo, e que é também um dos motes frequentemente evocados por Giorgio Agamben. Também seria pertinente colocar o romance Orwelliano em comparação com a peça do dramaturgo cômico Aristófanes, Pluto – Um Deus Chamado Dinheiro, ou ler a desgraça inglesa em que Gordon está imerso através de uma chave mítica – penso sobretudo, aqui, no mito de Midas.
O livro de Orwell ensina que até mesmo aqueles que são desprovidos de capital podem perfeitamente estar sob o feitiço hipnótico da idolatria pelo capital. É este o diagnóstico que Gordon Comstock faz sobre sua própria família de classe média baixa: “mesmo não tendo dinheiro, eles ainda viviam mentalmente no mundo do dinheiro – o mundo em que o dinheiro é virtude e a pobreza é crime… Tinham aceitado o código do dinheiro, e nos termos desse código eles eram fracassados.” (p. 60)
Não é outra coisa o que afirma aquela ideologia, epidêmica mas altamente contestável, da meritocracia. Que os ricos tenham mérito, que sua posição social de domínio explique-se simplesmente por um merecimento superior, é uma ideologia que tende a mascarar as injustiças de classe, a opressão e a exploração no trabalho, tendendo a naturalizar algo que é historicamente constituído e socialmente fabricado.
A ideia de que os pobres merecem a miséria pois não são suficientemente empreendedores, ou porque são demasiado preguiçosos, ou pois tiveram a infelicidade de nascer burros, é claramente um construto social das classes privilegiadas, que querem convencer a sociedade toda da legitimidade dos esquemas piramidais e divisões de casta hoje vigentes.
A “insurreição” de Gordon Comstock contra a mentalidade típica, porém, é demasiado individualista e niilista para realmente constituir qualquer perigo ao sistema hegemônico. Apesar de suas eventuais incursões de juventude pela imprensa panfletária bolchevista, Gordon não tem nada de ativista ou militante: não procura se filiar a nenhum partido ou movimento social, não quer saber de protestos ou manifestações, seu ato político é o “não!” de um indivíduo isolado e cuja visão de mundo é bastante “ingênua e egoísta”, segundo o próprio narrador orwelliano:
“Decidiu que existiam duas formas de viver. Você pode ser rico ou se recusar deliberadamente a enriquecer. Você pode possuir dinheiro ou desprezar o dinheiro; a combinação fatal é idolatrar o dinheiro mas não conseguir juntá-lo. Ele não tinha a menor dúvida de que jamais conseguiria produzir dinheiro. Nem lhe ocorria que algum talento seu pudesse lhe render algum ganho. E isso ele devia aos professores das escolas onde estudara; tinham acabado por convencê-lo de que ele era um criador de casos e que provavelmente jamais ‘venceria’ na vida. Julgamento que ele aceitou. Pois bem, então ele ia desistir por completo da ideia de ‘vencer’; e faria o possível para não ‘vencer’ de maneira alguma. Melhor reinar no inferno do que servir no céu; aliás, melhor servir no inferno do que servir no céu. Aos 16 anos, ele já sabia perfeitamente de que lado estava. Ele era contra o deus-dinheiro e toda a casta porcina de seus sacerdotes. Tinha declarado guerra ao dinheiro; mas em segredo, é claro.” (p. 61)
Na prática, o que significa declarar guerra ao dinheiro? Para Gordon, significa recusar qualquer emprego que pague bem. Gordon não se conforma com aqueles que gostariam de ver “todos os jovens da Inglaterra encerrados no ataúde de algum emprego ‘bom’.” (p. 62) Ou seja, Gordon faz uma escolha voluntária pela pobreza. Este tema está presente em Clube da Luta, o livro de Palahniuk filmado por David Fincher, que mostra como um sujeito revolta-se contra seu emprego corporativo que odeia e evoca um alter-ego subversivo-revolucionário na figura de Tyler Durden. É também tematizado pelo antropólogo David Graeber em Sobre o Fenômeno dos Trabalhos de Merda.
O problema é que Gordon, longe de encontrar uma satisfação íntima com seu próprio despojamento, como vários anacoretas da história religiosa, é claramente infeliz em sua penúria. A falta de dinheiro não cessa de atormentá-lo em todas as situações da vida cotidiana, embrenhando-se inclusive em suas relações afetivas mais íntimas. Por exemplo: Na sua relação com o amigo Ravelston, editor da revista socialista Antichrist, Gordon está sempre dolorosamente ciente de um abismo social que os separa.
Na sua relação com a namorada Rosemary, Gordon também não cessa de suspeitar que ela defende sua castidade e mantêm-se virgem não só por pudicícia vitoriana ou por ter sido educada nos rigores de uma moralidade sexual repressiva. Ele acha que Rosemary transaria com ele caso ele tivesse mais dinheiro. Ou, ao menos, que o dinheiro poderia comprar um jantar suntuoso, com vinhos inebriantes, além de um quarto de motel convidativo, coisas estas de que um pobretão está sempre privado.
O dinheiro escraviza quem o possui e quem está dele despossuído em uma sociedade que faz do capitalismo sua religião hegemônica. Há algo de comovente na humilde insurreição de Gordon, em seu ato um tanto tresloucado de quere abandonar a sociedade fanática por lucros para se enterrar entre os livros de uma livraria que não lhe permite trocar de sapatos quando seu único par está roto.
Mas a capacidade do leitor de empatizar com o protagonista é a todo momento sabotada pelo próprio Orwell, implacável satirista, que parece abrir caminho para toda uma sucessão de artistas que se inspirarão nele para fazer uma espécie de caústica e melancólica radiografia do homo capitalisticus preso nas engrenagens de uma espécie de capitalismo totalitário.
Sob o reinado do deus dinheiro, os pequenos ou grandes Midas a que todos somos reduzidos e degradados transformamos em capital tudo o que tocamos só para perceber que, não importa se sejam centavos ou milhões, a vida sob o império da grana é desprovida de solidariedade, corroída pela ganância, ameaçada pelo medo constante, sórdida para os desprovidos e os possuidores.
“Fitter Happier” – Radiohead
more productive
comfortable
not drinking too much
regular exercise at the gym (3 days a week)
getting on better with your associate employee contemporaries
at ease
eating well (no more microwave dinners and saturated fats)
a patient better driver
a safer car (baby smiling in back seat)
sleeping well (no bad dreams)
no paranoia
careful to all animals (never washing spiders down the plughole)
keep in contact with old friends (enjoy a drink now and then)
will frequently check credit at (moral) bank (hole in wall)
favours for favours
fond but not in love
charity standing orders
on sundays ring road supermarket
(no killing moths or putting boiling water on the ants)
car wash (also on sundays)
no longer afraid of the dark
or midday shadows
nothing so ridiculously teenage and desperate
nothing so childish
at a better pace
slower and more calculated
no chance of escape
now self-employed
concerned (but powerless)
an empowered and informed member of society (pragmatism not idealism)
will not cry in public
less chance of illness
tires that grip in the wet (shot of baby strapped in back seat)
a good memory
still cries at a good film
still kisses with saliva
no longer empty and frantic
like a cat
tied to a stick
that’s driven into
frozen winter shit (the ability to laugh at weakness)
calm
fitter, healthier and more productive
a pig
in a cage
on antibiotics
Publicado em: 05/11/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia