APRESENTAÇÃO
Em 458 a.C., Ésquilo encenou a trilogia Oréstia. A tragédia culmina com o julgamento de Orestes, que matou a própria mãe para vingar a morte do pai. A sua absolvição pelo júri de atenienses colocou fim ao olho por olho, dente por dente e converteu das Erínias, deusas da vingança, em Eumênides, como defensoras da democracia, um marco civilizatório na cultura ocidental.
O documentário Orestes apropria-se da história de Ésquilo e promove o seu encontro com a história do Brasil. E se Orestes fosse brasileiro, filho de uma militante política e de um agente da ditadura militar infiltrado? E se aos 6 anos ele tivesse visto sua mãe ser torturada e morta pelo pai? E se este mesmo Orestes, 37 anos depois, matasse o pai, um torturador anistiado, em 1979, durante o processo de redemocratização?
A partir dessas perguntas, o documentário “Orestes” usa um júri simulado e uma série de sessões de psicodrama para investigar como a ditadura militar deixou marcas profundas nas narrativas oficiais e na subjetividade dos brasileiros. Documentário e ficção compõem um Brasil de verdades simuladas.
No filme, o réu hipotético Orestes é levado a júri popular. Em sua defesa atua o ex-ministro da justiça José Carlos Dias, advogado de mais de 600 presos políticos durante a ditadura. Quem acusa é o promotor Maurício Ribeiro Lopes, exímio orador em tribunais criminais.
O coro desta tragédia documental à brasileira é composto por um grupo de pessoas vítimas da violência policial, vítimas da ditadura e da sociedade civil. Reunido em sessões de psicodrama o grupo faz aflorar, sem filtros, situações e falas que normalmente não são ditas publicamente. É através do coro que os ritos da justiça são postos frente a frente com as paixões mais profundas do brasileiro comum, é no psicodrama que o presente olha para os traumas do passado.
As feridas deixadas pelo nosso violento e muitas vezes velado ou dissimulado processo histórico permeiam o filme. As marcas da repressão nos anos 1970 encontram as marcas da violência policial de hoje. A verdade histórica é posta em xeque, as narrativas oficiais são desconstruídas, o fato e a versão são acareados, a justiça é posta em dúvida. No Brasil de 2015, talvez as Erínias, deusas da vingança, ainda estejam vivas e mais atuantes que nunca.
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Ao convencer as Erínias (as Fúrias) – Deusas da Vingança – a aceitar a absolvição de Orestes e integrá-las ao novo sistema de justiça, Athena – Deusa da Justiça – lhes diz: “Se venerais a sagrada Persuasão / Que faz minhas palavras parecerem mágicas / E cheias de doçura, concordai comigo / E sede para todo o sempre minhas hóspedes.” (ÉSQUILO, Eumênides, em 458 a.C.)
Baixe via Making Off: https://makingoff.org/forum/index.php?showtopic=51127&hl=orestes
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Crime, vingança e julgamento, da tragédia grega à realidade brasileira
Por Carlos Alberto Mattos
A revanche contra crimes de morte é uma pauta constante na sociedade brasileira, embora muitas vezes intimidada ou dissimulada pelos discursos da correção política. Esa pauta se manifesta hoje principalmente em relação aos confrontos entre policiais e criminosos (ou supostos criminosos) e no que diz respeito à punição pelos crimes da ditadura. “Memória para Uso Diário”, de Beth Formaggini, já havia feito essa conexão em 2007 numa chave de recuperação histórica. Orestes, de Rodrigo Siqueira (“Terra Deu, Terra Come”), monta um arcabouço sofisticado para retomar a questão em toda a sua complexidade e permanência no tempo.
Relacionando a tragédia Oréstia de Ésquilo com o caso do Cabo Anselmo, agente infiltrado que colaborou para a morte de vários militantes nos anos 1970, entre eles sua companheira Soledad Viedma, o filme estabelece uma discussão em vários níveis.
No nível das opiniões, vários interlocutores envolvidos com o assunto basicamente divergem de uma defensora de vítimas de violência que procura justificar os sentimentos de vingança com o discurso de salvaguarda da inocência. No nível das emoções, sessões de psicodrama (ou sociodrama) envolvem os mesmos personagens, com destaque para a filha de Soledad e suas terríveis dúvidas quanto a sua paternidade. No nível jurídico, enfim, um julgamento encenado por dois grandes advogados põe em debate a culpabilidade de um Orestes fictício – baseado no caso de Anselmo e Soledad – e por extensão o perdão aos torturadores facultado pela Lei da Anistia.
As imagens de São Paulo sobrevoada por um urubu e depois por um helicóptero policial emolduram esse soturno estudo das pulsões latentes na sociedade. Orestes desdobra suas camadas sóbria e pausadamente, enredando o espectador nas tramas de sua própria consciência. Trata-se, como nas grandes tragédias gregas, de dilemas de família, assuntos de pais e filhos, que assumem estatura política pelo teor de ética social neles embutido. O filme nos engaja em ritmo crescente para nos confrontar com um desfecho teatral intenso e perturbador, no qual parecem naufragar os melhores sentimentos diante do instinto de justiciamento. Não é um caminho fácil, nem muito menos um veredicto. Fora da tragédia grega, não existe Atena para votar pelo perdão.
http://criticos.com.br/?p=7583&cat=1
[youtube id=https://youtu.be/WEkCyTRMNYw]
#CinephiliaCompulsiva2018
Publicado em: 28/02/18
De autoria: casadevidro247
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia
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