“O ÓDIO À DEMOCRACIA”,
por Matheus Pichonelli, na CartaCapital
“Nordestino não sabe votar”. “Pobres merecem o que têm”. “Abaixo o Bolsa Esmola”. “Vão pra Cuba”. “Muda para Miami”. “Os empregados deveriam ser proibidos de participar”. “Paulista é uma raça egoísta”. “Deveríamos nos separar do resto do país”. Não, não é por acaso que as manifestações de ojeriza à política, ao contraditório e ao voto das populações mais pobres tenham se intensificado ao longo desta eleição, a sétima desde a reabertura democrática…
Sobram patadas sobre pobres, gays, lésbicas, negros, “comunistas”, mulheres. Um exemplo foram as manifestações de ódio contra a população nordestina, onde o PT conquistou muitos votos. A repulsa chega com todos os disfarces, mas pode ser identificada, por exemplo, quando um ex-presidente da República (o FHC) atribui um resultado adverso (para ele e os seus) à cegueira coletiva dos “menos instruídos”.
No livro Ódio à Democracia, recém-publicado no Brasil pela Boitempo Editorial, o filósofo franco-argelino Jacques Rancière deixa pistas para entender este fenômeno. Um fenômeno que, a se fiar pela experiência europeia e pelos últimos embates, será cada vez mais comum por esses lados.
A obra é uma crítica contundente à denúncia do “individualismo democrático” – que, segundo ele, cobre, com pouco esforço, duas teses: a clássica dos favorecidos (os pobres querem sempre mais) e das elites refinadas (há indivíduos demais, gente demais reivindicando o privilégio da individualidade).
“O discurso intelectual dominante une-se ao pensamento das elites censitárias e cultas do século XIX: a individualidade é uma coisa boa para as elites; torna-se um desastre para a civilização se a ela todos têm acesso”, escreve. Para o autor, não é o individualismo que esse discurso rejeita, mas a possibilidade de qualquer um partilhar de suas prerrogativas. “A crítica ao ‘individualismo democrático’ é simplesmente o ódio à igualdade pelo qual uma intelligentsia dominante confirma que é a elite qualificada para dirigir o cedo rebanho”.
No prefácio da mesma obra, o filósofo Renato Janine Ribeiro, professor de ética da USP, lembra que um número expressivo de membros da classe média ainda desqualifica os programas sociais consolidados nos últimos anos. “Para eles, o Brasil era bom quando pertencia a poucos. Assim, quando a multidão ocupa espaços antes reservados às pessoas ‘de boa aparência’, uma gritaria se alastra em sinal de protesto. O que é isso, senão o enorme mal-estar dos privilegiados?”, questiona. “A expansão da democracia incomoda. Daí um ódio que domina nossa política, tal como não se via desde as vésperas de um golpe de 1964, condenando as medidas que favoreciam os mais pobres como populistas e demagógicas”.
Em coro com Rancière, Janine Ribeiro lembra que a democracia não é um Estado acabado nem um estado acabado das coisas; ela vive constante e conflitiva expansão. “Porque a ideia de separação social continua presente e forte”.
A democracia, prossegue Rancière, longe de ser a forma de vida dos indivíduos empenhados em sua felicidade privada, é o processo de luta contra essa privatização, o processo de ampliação dessa esfera. “Ampliar a esfera pública não significa, como afirma o chamado discurso liberal, exigir a intervenção crescente do Estado na sociedade. Significa lutar contra a divisão do público e do privado que garante a dupla dominação da oligarquia no Estado e na sociedade”.
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“O Brasil está dividido. Em primeiro lugar, pela divisão de classes própria do capitalismo, que, em sua versão brasileira, está marcado pela herança escravocrata que nos dividiu – a princípio literalmente e, depois, metaforicamente – em “casa grande e a senzala”. Ora, segundo o censo do IBGE de 2010, os 10% mais ricos da população ganharam, nesse ano, 44,5% do total de rendimentos; enquanto os 10% mais pobres receberam menos de 1,1%. Esses números significam que quem está na faixa mais pobre precisaria poupar a totalidade de seus recursos durante três anos e três meses para acumular a renda média mensal dos brasileiros que pertencem à faixa mais rica.
E esses dois “brasis” – o da casa grande e o da senzala – correspondem também a outras divisões igualmente históricas: o país branco e o preto; o país do sul-sudeste e o do norte-nordeste; o país do asfalto e o da favela; o dos jardins e do periferia; o país da empregada doméstica e o da patroa. A geografia de nossas cidades — “cidades partidas”, para usar a expressão de Zuenir Ventura em livro nada recente e anterior à emergência do PT ao governo federal — está marcada por uma divisão tão evidente quanto naturalizada…” – LEIA TUDO AQUI
Publicado em: 29/10/14
De autoria: casadevidro247
Li atento. Mas confesso uma certa ressaca de eleições, divisões, certezas e o eterno nós contra eles.
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia
marielfernandes
Comentou em 30/10/14