O MENINO E A MASSA
O menino aparenta ter só uns 10 anos de idade, traz um keffiyeh enrolado ao pescoço e é alçado aos ombros de um adulto portando um potente megafone.
Nesta idade, seria de se esperar que estivesse em casa brincando com seus carrinhos ou jogando videogame, mas nesta atípica manhã de 12 de Janeiro de 2024 o garoto está berrando slogans para uma massa em estado de fervilhante rebeldia, tendo às suas costas o suntuoso Palácio da Paz de Haia.
Ele não tem mãos livres: com a direita, ele segura e tremula a bandeira palestina, enquanto que com a esquerda segura rente à boca o megafone dentro do qual faz ressoar uma voz ainda engatinhando para dentro da puberdade.
Debaixo de seus olhos, dúzias de mãos fazem oscilar, com a ajuda dos fortes e gelados ventos que sopram na Holanda, que tem termômetros marcando zero grau celsius, uma imensa bandeira da nação-sem-Estado cujos territórios, por mais de 100 dias, estão sendo tratados como um matadouro pelo sionismo imperial e seus parceiros ocidentais.
Nas últimas semanas, tanto os bombardeios israelenses contra Gaza quanto os atos cívicos em solidariedade aos palestinos têm sido eventos recorrentes, e o menino certamente viveu em poucas semanas uma intensidade de vivências politizantes que normalmente não são vividas em uma infância inteira.
Ele já se apossou da gramática e do léxico dos protestos, de suas palavras-de-ordem, de suas rimas e refrões, e não se intimida de convocar a massa ao seu redor para o jogo empoderante de pergunta e resposta, em que seu brado encontra o eco polifônico do grupo:
O MENINO: From the river to the sea!
A MASSA: From the river to the sea!
O MENINO: Palestine will be free!
A MASSA: Palestine will be free!
O MENINO: From the sea to the river!
A MASSA: From the sea to the river!
O MENINO: Palestine will live forever!
A MASSA: Palestine will live forever!
O MENINO: Gaza, Gaza, don’t you cry!
A MASSA: Gaza, Gaza, don’t you cry!
O MENINO: We will never let you die!
A MASSA: We will never let you die!
O MENINO: One, two, three, four!
A MASSA: One, two, three, four!
O MENINO: Occupation no more!
A MASSA: Occupation no more!
O MENINO: Five, six, seven, eight!
A MASSA: Five, six, seven, eight!
O MENINO: Israel’s a terror state!
A MASSA: Israel’s a terror state!
O MENINO: Stop that genocide!
A MASSA: Stop that genocide!
O MENINO: Israel…
A MASSA: …terrorist!
…Biden
…terrorist!
…Netanyahu
…terrorist!…
viva viva Palestina…
viva viva Palestina…
….
Filmei e fotografei a cena com mil pensamentos confusos entrechocando-se na mente. Por um lado, pensei nas objeções possíveis àquilo que meus olhos testemunhavam e meus ouvidos escutavam: há quem possa sugerir que a criançada não deve ser “aliciada” para participar de movimentos políticos tão cedo, e que encher uma jovem cabecinha com palavras-de-ordem a serem bradadas equivale a doutrinação, a captura ideológica. Entendo o argumento, mas discordo deste descrédito lançado sobre o que é assim descrito como mero aliciamento de menores para fins político-ideológicos.
Tal objeção parece tratar o sujeito jovem como mera marionete de adultos, desprovido de qualquer autonomia, ainda que incipiente. O menino em questão não fazia nada a contragosto. Nada em sua expressão ou postura denunciava que estivesse sendo forçado por alguém a fazer o que fazia. E havia algo de profundamente comovente no fato de que uma voz de criança ressoava por toda a praça e ia bater nas paredes surdas do Palácio da Paz.
Uma das frases que mais gostei durante todo este terrível período em que o sionismo pratica horrendas matanças, em sua campanha de limpeza étnica e punição coletiva, é esta: “faça silêncio quando as crianças estão dormindo, não quando estão sendo assassinadas.”
Este menino é meu herói. Enquanto milhões e milhões de adultos apodrecem no silêncio, na cumplicidade e na complacência, e nada fazem ou dizem contra o pior massacre do século 21, este menino bradou contra a injustiça, em solidariedade com a companheirada.
Danem-se vocês que querem todas as crianças quietinhas e comportadinhas dentro de casa, vendo o Mickey e o Pateta na TV, ou bestificadas por app de joguinho no celular. Eu quero a criançada na luta contra a opressão chocante que está se desenrolando: quando mais de 10.000 crianças foram assassinadas e caíram como “vítimas de guerra”, como danos colaterais da Guerra Contra o Terror (promovida através dos métodos do Terrorismo de Estado mais bárbaro e cruel), e quando milhares de outras crianças foram feridas, mutiladas, amputadas, reduzidas a órfãs, impedidas de acessar comida e água, roubadas de suas casas e escolas, impedidas de acessar hospitais, o que eu quero é a criançada tremulando as bandeiras da paz e da justiça nos ombros dos adultos que também o fazem.
Quero as vozes das crianças despertas e revoltadas bradando através dos megafones. Quero a massa ecoando o menino tão alto, mas tão alto, que até os togados dentro do blindado palácio serão incapazes de ignorar a maré montante de nosso grito coletivo de recusa perante o descalabro.
Fora de cena, nesta fotografia, está uma praça repleta de gente, um grande telão ligado na AlJazeera e uma fervilhância incomum de ativismo indignado. Enquanto o menino gritava dentro do megafone, a equipe jurídica responsável pela defesa de Israel derramava uma enjoativa groselha nos ouvidos dos juízes: o direito de “auto-defesa” diante do “pior ataque anti-semita deste o Holocausto” teria que ser respeitado pela comunidade internacional, e Israel não faz nada além de combater os monstros do Hamas, tentando minimizar as mortes de civis, mas infelizmente os jihadistas islâmicos usam crianças, médicos, jornalistas e trabalhadoras da ONU como “escudos humanos”.
A torpeza de tais argumentos, que tentam passar a borracha no imenso sofrimento causado às pessoas em Gaza, não merecia mesmo que ficássemos ali, em silêncio, ouvindo com atenção a justificativas espúrias que se desenrolavam simultaneamente à continuidade dos bombardeios mortíferos e do bloqueio na entrada da ajuda humanitária.
É claro que havia dissonância na massa – aqueles que queriam ouvir o que estava sendo dito dentro do ICJ, aqueles que queriam gritar e cantar sua revolta. Enojado com o que eu ouvia da boca dos porta-vozes do sionismo que já manchou suas mãos com o sangue de mais de 23.000 seres humanos assassinados e mais de 60.000 feridos, procurei a companhia e a proximidade dos que escolheram gritar.
Naquele frio da porra, agredido pelo vento gélido, deprimido no âmago por ser contemporâneo de um genocídio que somos incapaz de parar, encontrei calor humano, chama de solidariedade, disposição para a luta por justiça, fogo coletivo em prol do desmantelamento da opressão, em meio àquele caldeirão onde o menino e a massa fundiam-se, em ebulição, num epicentro de comoção social diante do infortúnio terrível de nossos semelhantes.
O brado ao megafone deste menino, os ecos multitudinários da massa, é o que me nutre e me empurra a seguir nesta luta tristemente necessária, sem nenhuma certeza de vitória, mas que me dá a convicção de que, do jeito como as coisas caminham, a humanidade toda está perdendo.
Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro,
Den Haag / Amsterdam, 15-01-2024
P.S.
Escrever é quase inútil. E eu quase joguei meu “quase” da frase anterior no lixo. Se deixei o quase, quase descartado, foi pois quis deixar uma frestinha de janela aberta para o quase-impossível: que a escrita sirva pra alguma porra. Obviamente não serve pra muito. Nem a Oxfam, a Unicef, a Human Rights Watch, a OMS, a ONU, juntas, estão servindo pra muito. Nem meio milhão de pessoas protestando nas ruas de Londres ou de Washington serve para interromper a matança, e certamente não seriam algumas palavrinhas minhas que fariam qualquer diferença. E no entanto escrevo pois se calo o pior é o entalo na goela asfixiando todo o corpo. Escrevo como quem luta numa causa perdida, tentando já de antemão praticar o desapego em relação aos frutos – aquilo que alguns mestres budistas ensinam. Escrevo sabendo que fruto nenhum nasce disso, que talvez seja também algum ingênuo otimismo consolatório pensar “escrevendo, planto uma sementinha”. Escrevo sabendo que não encontrarei eco, que não serei lido, que quase ninguém vai perder seu tempo, que a partilha será pífia, que os comentários serão zero etc. Mas ainda assim prefiro isto ao silêncio. Prefiro meus punhos e dedos doendo de tanto que escrevo.
Prefiro a insônia assombrada por pesadelos – a distopia real de Gaza via imagens da AlJazeera ecoando em meu mundo onírico transtornado – ao sono tranquilo dos que escolhem a auto-cegueira. Inutilmente, escrevo. Escrevo como Sísifo arrasta sua pedra pro topo da montanha. Escrevo sobre um pequeno herói anônimo, sobre um menino com um megafone, sobre uma massa de revoltados, sobre fazer parte destes que, tão inutilmente, não silenciam. Um dia a gente chegou a acreditar que a união fazia a força. Hoje descobrimos que nossa união não é forte o bastante para parar o pior genocídio do século. Escrevo, ainda assim. Filmo, fotografo, posto – inútil, inútil, inútil. Bato contra as paredes do shadowbanning e da indiferença. Talvez seja mesmo tudo inútil. Mas há um júbilo em estar livre do fardo da inação, do peso na consciência que talvez atormente os que nada fazem pois sabem de antemão que não adianta nada.
Outro dia, uma rebelde berrou ao microfone para Amsterdam inteira ouvir:
-“Não posso fazer nada!” – disseram 7 bilhões de pessoas.
Pois é… Quem tem ouvidos para entender, entenderá. Sobre isto, esta força absurda que me leva a seguir escrevendo, fotografando, filmando, na convicção esfarrapada de que não sou completamente inútil e que minhas palavras não são completamente vãs, enquanto Gaza continua sendo o matadouro de um sionismo insanizado e crudelíssimo, deixo a última palavra a uma mulher negra, escritora de gênio, Alice Walker, que disse um dia: “The most common way people give up their power is by thinking they don’t have any.” (“A maneira mais comum através da qual as pessoas desistem de seu poder é pensando que não possuem nenhum.”)
Publicado em: 15/01/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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