\\\trechos de A CONDIÇÃO HUMANA, de HANNAH ARENDT, que mais curti.\\\
(ed. Forense Universitária, 10ª Ed.)
“A negação do mundo como fenômeno político só é possível à base da premissa de que o mundo não durará; mas, à base de tal premissa, é quase inevitável que essa negação venha, de uma forma ou de outra, a dominar a esfera pública. Foi o que sucedeu após a queda do Império Romano; e, embora por motivos bem diferentes e de forma muito diversa – parece estar ocorrendo novamente em nosso próprio tempo.
A abstenção cristã das coisas terrenas não é, de modo algum, a única conclusão a se tirar da convicção de que o artifício humano, produto de mãos mortais, é tão mortal quanto os seus artífices. Pelo contrário: esse fato pode também intensificar o gozo e o consumo das coisas do mundo e de todas as formas de intercâmbio nas quais o mundo não é fundamentalmente concebido como koinon, aquilo que é comum a todos. Só a existência de uma esfera pública e a subsequente transformação do mundo em uma comunidade de coisas que reúne os homens e estabelece uma relação entre eles depende inteiramente da permanência. Se o mundo deve conter um espaço público, não pode ser construído apenas para uma geração e planejado somente para os que estão vivos: deve transcender a duração da vida de homens mortais.
Sem essa transcendência para uma potencial imortalidade terrena, nenhuma política, no sentido restrito do termo, nenhum mundo comum e nenhuma esfera pública são possíveis. Pois, diferentemente do bem comum tal como o cristianismo o concebia – a salvação da alma do indivíduo como interesse comum a todos – mundo comum é aquilo que adentramos ao nascer e que deixamos para trás quando morremos. Transcende a duração de nossa vida tanto no passado quanto no futuro: preexistia à nossa chegada e sobreviverá à nossa breve permanência. É isto o que temos em comum não só com aqueles que vivem conosco, mas também com aqueles que aqui estiveram antes e aqueles que virão depois de nós.
Mas esse mundo comum só pode sobreviver ao advento e à partida das gerações na medida em que tem uma presença pública. É o caráter público da esfera pública que é capaz de absorver e dar brilho através dos séculos a tudo o que os homens venham a preservar da ruína natural do tempo. Durante muitas eras antes de nós – mas já não agora – os homens ingressavam na esfera pública por desejarem que algo seu, ou algo que tinham em comum com outros, fosse mais permanente que as suas vidas terrenas.
(Assim, a desgraça da escravidão consistia não só no fato de que o indivíduo era privado de liberdade e visibilidade, mas também no medo desses mesmos indivíduos obscuros “de que, por serem obscuros, morreriam sem deixar vestígio algum de terem existido” [BARROW, Slavery in the Roman Empire]).
Talvez o mais claro indício do desaparecimento da esfera pública na era moderna seja a quase completa perda de uma autêntica preocupação com a imortalidade, perda esta um tanto eclipsada pela perda simultânea da preocupação metafísica com a eternidade. (…) A primeira é atestada pela atual identificação da busca da imortalidade com o vício privado da vaidade.”
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“…a origem da vida a partir da matéria inorgânica é o resultado infinitamente improvável de processos inorgânicos, como é o surgimento da Terra, do ponto de vista dos processos do universo, ou a evolução da vida humana a partir da vida animal. O novo sempre acontece à revelia da esmagadora força das leis estatísticas e de sua probabilidade que, para fins práticos e cotidianos, equivale à certeza; assim, o novo sempre surge sob o disfarce do milagre. O fato de que o homem é capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável. E isto, por sua vez, só é possível porque cada homem é singular, de sorte que, a cada nascimento, vem ao mundo algo singularmente novo.” (191)
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“…a polis [cidade-estado grega] deveria multiplicar as oportunidades de conquistar ‘fama imortal’, ou seja, multiplicar para cada homem as possibilidades de distinguir-se, de revelar em atos e palavras sua identidade singular e distinta. Uma das razões, senão a principal, do incrível desenvolvimento do talento e do gênio em Atenas, bem como do rápido e não menos surpreendente declínio da cidade-estado, foi precisamente que, do começo ao fim, o principal objetivo da polis era fazer do extraordinário uma ocorrência comum e cotidiana. A segunda função da polis (…) era remediar a futilidade da ação e do discurso; pois não era muito grande a possibilidade de que um ato digno de fama fosse realmente lembrado e ‘imortalizado’. Homero não foi somente um brilhante exemplo da função política do poeta e, portanto, o ‘educador de toda a Hélade’; o próprio fato de que um empreendimento grandioso como a Guerra de Tróia pudesse ter sido esquecido sem um poeta que o imortalizasse centenas de anos depois era um lembrete do que poderia ocorrer com a grandeza humana se esta dependesse apenas dos poetas para garantir sua permanência. (…) A polis era uma garantia aos que haviam convertido mares e terras no cenário do seu destemor de que não ficariam sem testemunho e não dependeriam do louvor de Homero nem de outro artista da palavra; sem a ajuda de terceiros, os que agiam podiam estabelecer juntos a memória eterna de suas ações, boas ou más, e de inspirar a admiração dos contemporâneos e da posteridade.” (210)
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“…entregues a si mesmos, os negócios humanos só podem seguir a lei da mortalidade, que é a única lei segura de uma vida limitada entre o nascimento e a morte. O que interfere com essa lei é a faculdade de agir, uma vez que interrompe o curso inexorável e automático da vida cotidiana que, por sua vez, interrompe e interfere com o ciclo do processo da vida biológica. Fluindo na direção da morte, a vida do homem arrastaria consigo, inevitavelmente, todas as coisas humanas para a ruína e a destruição, se não fosse a faculdade humana de interrompê-las e iniciar algo novo, faculdade inerente à ação como perene advertência de que os homens, embora devam morrer, não nascem para morrer, mas para começar. No entanto, assim como, do ponto de vista da natureza, o movimento retilíneo da vida do homem entre o nascimento e a morte parece constituir um desvio peculiar da lei natural comum do movimento cíclico, também a ação, do ponto de vista dos processos automáticos que aparentemente determinam a trajetória do mundo, parece um milagre. Na linguagem da ciência natural, é “o infinitamente improvável que ocorre regularmente”. A ação é, de fato, a única faculdade milagrosa que o homem possui…” (258)
Publicado em: 06/04/11
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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