Não passa de um dogma derrubável a afirmação de que os filósofos deveriam limitar-se ao trabalho com o conceito des-carnado, ou seja, ao labor exclusivamente “racional” e disciplinado: “restrinjam-se aos domínios seguros da lógica, da verdade matematizável, buscando expressar-se só por fórmulas que pretendem valer para toda a eternidade!”, reza a ladainha do dogma aqui referido como uma praga a extirpar… Nietzsche acredita em uma filosofia que atravesse o abismo sobre uma corda! Que dance em seu caminho entre as margens, e que o faça com orgulho por seu compromisso de encarar o perigo. Filosofia é risco, ou senão não passará da máscara hipócrita que o conformismo prega à cara para fazer pose de santo…
Assim que Zaratustra desce da montanha, após 10 anos de retiro, uma das primeiras figuras com que se depara é a do equilibrista da corda bamba, o tight-rope walker. É um tema recorrente também na expressão estética aventureira e experimental, que se manifesta lindamente em algumas obras-de-arte memoráveis – penso sobretudo em Charlie Chaplin, na corda bamba naquele magnífico gran finale de O Circo, mas também poderíamos pensar em obras menos conhecidas, mas que se utilizam da mesma imagética escolhida para Nietzsche como um dos símbolos iniciais da trajetória zaratustriana, supremo exemplo sendo “O Bêbado e a Equilibrista” (João Bosco e Aldir Blanc).
O livro de Nietzsche já começa com tragédia: o infeliz do equilibrista despenca, esmaga-se todo contra o solo, e enquanto agoniza Zaratustra vai honrá-lo em seus últimos suspiros, dizendo-lhe uma doce litania fúnebre. Louva-o como espírito livre, precursor de outros de que o futuro está grávido. Celebra-o como alguém que ousou a louvável trilha de tomar por sua vocação o perigo.
Em Maio de 68, pelos muros e panfletos da Paris insurgente, lia-se: “Queremos que as ideias voltem a ser perigosas.” Com Nietzsche, a filosofia encontra alguém que a convida para o perigo – e para a dança. Aqueles que estão confortáveis em suas crenças, agarrados a seus dogmas, presos a um conceito petrificado da divindade e de como servi-la, sentem em Nietzsche um tornado, um temporal, que abala as fundações que se pretendem sólidas. Ele, que fez por merecer sua presença no tratado de Albert Camus O Homem Revoltado, insurge-se contra as autoridades máximas do Estado, da Academia, da Igreja, das Artes, ousa atacar Bismarcks e Papas, criticar Wagners e Jesuses… Reclama contra e contesta intensamente o reinado da moralidade repressora, castratória, autoritária, ascética, purista.
Pensamento nômade, que não deseja fixar-se em certezas, que abomina a segurança das convicções muito firmes, a filosofia de Nietzsche não é para todos. Ele bem o sabia. Na cena do equilibrista que dança sobre um fio que bamba sobre o abismo, em Zaratustra, aquele que enfrenta tal perigo é claramente extra-ordinário, alguém que difere da massa que o assiste espantada lá de baixo. Esta cena é uma boa metáfora para o antagonismo que existe, na obra e na vida de Nietzsche, entre uma singularidade extraordinária e o que ele chama de “rebanho”.
Jung sugere que a neurose que levará Nietzsche ao seu surto psíquico de Turim, em 1889, está diretamente relacionada com esta cisão, este abismo, aludido pela diferença radical entre o rebanho confortável e acovardado em sua existência resignada e sem riscos, de um lado, e a figura audaz daquele que vai às alturas e de lá contempla os abismos que o comum dos mortais jamais enfrenta. Um certo “elitismo” do homem extremamente culto e de sólida formação manifesta-se em Nietzsche e seu aristocrático nojo pelo “homem comum” de que foi contemporâneo.
Esse é o dilema de Zaratustra: ao mesmo tempo que ele sente-se como uma abelha que juntou demasiado mel, ele sente que entre os humanos de seu tempo não há quase ninguém que o entenda, que o dê atenção, que o reconheça como sábio e o solicite como mestre; seus contemporâneos não parecem ter muito gosto pelo mel que Zaratustra, laboriosa abelha das montanhas, sugadora de múltiplos néctares, juntou em sua colméia.
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Nietzsche transgride as fronteiras entre a filosofia e a poesia, como mostrou em minúcias Sarah Kofman em seu Nietzsche e a Metáfora. De certo modo, é como reatasse um fio de Ariadne que conecte a filosofia contemporânea às suas origens gregas, em épocas pré-socráticas e “pagãs”. Heráclito, que era tão admirado e reverenciado por Nietzsche, é um desses filósofos-poetas que usa o verbo de modo enigmático e poético, que adota um modo de expressão altamente metafórico – como, por exemplo, quando compara o mundo a uma brincadeira de Zeus, em que este constrói e destrói com a inocência de uma criança que joga, para além do Bem e do Mal, indiferente à louvor ou reproche.
Um filósofo de mentalidade mais racionalista, logicista, pode reprochar Heráclito por sua “obscuridade”, por sua ausência de demonstração lógica, ou por seus crimes contra o deus-Razão. Aristóteles, por exemplo, olhará com maus olhos para o passado pré-socrático e lançará sobre Heráclito e seus contemporâneos a acusação de que não passam de exemplares da filosofia em sua infância, ainda longe da maturidade, ainda demasiado mesclada com a mitologia…
Nietzsche contesta este reproche racionalista aristotélico e procura limpar a reputação daquele que sustentava que “não se entra duas vezes no mesmo rio”. A oposição contra uma visão-de-mundo à la Heráclito nasce do temor ao movimento e à inovação, característico daqueles espíritos demasiado apegados ao conforto de suas certezas supostamente imutáveis.
O rio de Heráclito inclui tudo em sua corredeira: conceitos e ideias também fluem, e é exigido do filósofo que saiba acompanhar este fluxo, que saiba transformar-se conforme viaja e encontra-se com novas vivências e experiências.
Longe de ter ficado demodê, longe de ter perdido todo valor a não ser como uma curiosidade de antiquário, a filosofia e a poesia do período pré-socrático prosseguem tendo muito a nos ensinar, inclusive por pré-existir às divisões sectárias em diferentes “especialidades”.
O homo academicus atual por vezes crê ortodoxamente na cartilha da especialização estrita, pensa que é preciso escolher entre ser ou filósofo, ou poeta; ou matemático, ou músico; ou engenheiro, ou dançarino. Transcendendo a lógica rígida do OU, aceitando a dança fluida do E, é perfeitamente possível ser filósofo e poeta, matemático e músico, engenheiro e dançarino – águia e serpente, para falar como Zaratustra, esta figura-esfinge, mais multifacetada do que Janus.
Há um preconceito institucionalizado no seio da cultura socrática-aristotélica-cartesiana contra estas figuras, como Heráclito e Nietzsche, como Van Gogh e Artaud, como William Blake e Jimi Hendrix, como Heinrich Heine e Hölderlin, como Bizet e Beethoven, que criaram algo que vai muito além do ego e da razão, que deixaram-se intoxicar por potências telúricas, que abriram as portas da percepção à intuição daquilo que não pode ser dito facilmente.
A linguagem, afinal, é feita de palavras cujos sentidos estão petrificados pela tradição, vocábulos que se recusam a mudar de sentido, ainda que todos nós saibamos que os dicionários também fluem e passam por metamorfoses, ganham novas inclusões e tem deletados de si os termos que saíram de circulação pública…
Ao invés de escrever mobilizando apenas conceitos abstratos, produzidos pelo intelecto consciente, e tidos por imutáveis, Nietzsche serve-se de uma panóplia de metáforas, que permitem que seu pensamento seja móvel e leve como os passos-de-dança das bacantes e sátiros que acompanham Dioniso.
Nietzsche se declara “discípulo de Heráclito, de quem empresta a metáfora do mundo como jogo”, como relembra Kofman, que também destaca a importância crucial de Nietzsche para uma re-avaliação a respeito do valor da filosofia pré-socrática. Cada um daqueles pensadores nos legou algo de “irrefutável”, uma obra que expressa uma personalidade, um sistema que é sintoma de suas condições históricas e individuais de produção:
“Se Nietzsche pode aventurar-se em um novo tipo de filosofia, é porque este tipo já esteve vivo com os Pré-socráticos. É o caso de trazer de volta a filosofia grega originária, resgatando-a do estado de esquecimento a que o triunfo das forças do niilismo a forçaram. Em seu A Filosofia Na Era Trágica dos Gregos, Nietzsche sujeita os filósofos gregos a uma leitura genealógica que toma como pedra-de-toque o ‘estilo’ do filósofo. […] Nietzsche não procura nem aprová-los nem refutá-los, pois ninguém pode celebrar ou condenar condições de existência: cada sistema é como uma planta, e do mesmo modo que pode-se compreender a planta a partir do solo que a produziu, pode-se rastrear a partir do sistema o autor de que ele é a imagem. Um sistema deve ser avaliado não de acordo com sua verdade, mas de acordo com sua força e beleza: a questão é saber se aquilo que tornou o sistema possível era uma forma-de-vida superabundante ou carente, se o filósofo estava afirmando ou negando a vida através de seu sistema. ” (SARAH KOFMAN, p. 19)
Nietzsche, é claro, além de borrar os limites entre a expressão verbal tida como adequada à filosofia e àquela de que se servem os poetas e dramaturgos, também bagunça com as certezas daqueles historiadores que se consideram neutros e imparciais, que pretendem meramente relatar o passado como ele foi.
O método genealógico é profundamente calcado no conhecimento histórico (aí inclusos os conhecimentos filológicos, “etnográficos” etc.), mas é também um esforço de avaliação do valor daquilo que foi. A filosofia não tem como se eximir de julgar e Nietzsche procura sempre sopesar quais são as consequências dos sistemas filosóficos, das doutrinas religiosas, das mitologias institucionalizadas, das instituições (educacionais, penais, estatais, corporativas, e por aí vai).
Por exemplo: no debate Aristóteles versus Heráclito, Nietzsche não fica em cima do muro, mas toma posição a favor do último. Não se trata de mera “preferência pessoal”, mas da convicção nietzschiana de que a filosofia de Heráclito tem maior valor estético do que a Aristotélica pois expressa, ainda que de modo poético, o Ser como fluxo, movimento, dança eterna entre criação e destruição. O Zeus de Heráclito é semelhante à Shiva para o Hinduísmo: ambos “brincam” com o mundo, sem começo nem fim, criando e destruindo, re-criando e re-destruindo, na sempiterna reconfiguração móvel de tudo.
Nietzsche também mete seu bedelho avaliatório em uma polêmica envolvendo os poetas trágicos gregos: avalia que a tragédia autêntica, aquela de Sófocles e Ésquilo, começa a decair, entrar em crise e agonizar a olhos vistos com o surgimento de Eurípides, figura “socrática”, racionalista, que cometerá o erro de Sócrates: a seleção uni-lateral do elemento apolíneo, em detrimento do elemento dionisíaco.
Sócrates e Eurípides querem amputar o humano de suas facetas irracionais, inconscientes, lúdicas; desejam impor o ideal do homem teórico, controlado, de ego sólido, que só fala por conceitos petrificados e cujo verbo é burocrático e sem vitalidade, esquemático e desprovido de sangue.
Não há o “som e a fúria” dos tremendos temporais passionais de Ésquilo e Sófocles, figuras proto-Shakespearianas, na filosofia de Sócrates ou na dramaturgia de Eurípides. Um dos objetivos das obras iniciais de Nietzsche consiste em re-atar o diálogo com valores “arcaicos” ou “pagãos” (aí incluído o dionisismo e o ideal estético trágico), re-acender as chamas dos pensadores-poetas do período pré-socrático.
De modo que A Filosofia Na Era Trágica dos Gregos, longe de ter um interesse meramente histórico, longe de ser um livro-museu com um bando de figuras mumificadas e esqueletos sem carne, faz com que abram-se janelas para que nós entremos em contato com o que prossegue vivo destes mortos ilustres de outrora.
Longe de ser um terrorista pró-barbárie, que ataca tudo-o-que-existe e deseja incendiar e reduzir a cinzas todo o passado, Nietzsche é algo bem diferente: entusiasta das culturas de tempos idos que prosseguem tendo muito a nos ensinar, procura através das mais vívidas e expressivas metáforas um processo de “ressurreição” destas personalidades e figuras míticas ilustres, como Heráclito e Dioniso, reprimidos pela tendência cultural que se tornou hegemônica, silenciados pelo triunfo do socratismo, do cristianismo, do ideal ascético, mas que prosseguem tendo uma potência re-ativável por nós, milênios depois.
A renovação da cultura e a transvaloração dos valores não pode jamais prescindir do aprendizado com os grandes mestres do passado, e nada seria mais tolo do que evitar o diálogo com os melhores dentre os vivos-de-outrora por uma tola convicção da superioridade inegável do contemporâneo. O imediatismo, a perspectiva de vista-curta, é justamente aquilo que a filosofia nietzschiana rejeita, investindo ao contrário em um pensamento que é profundamente histórico, que procura compreender origens e descrever os desenrolares dos processos, não somente para compreender como veio-a-ser tudo aquilo que hoje vemos constituído e solidificado, mas também para melhor renovar aquilo que se ressecou, revitalizar o que se encontra degenerado, re-libertar o que foi reprimido e silenciado.
Heráclito renasce da tumba, Dioniso volta à vida e convoca-nos à segui-lo (vejam: desta vez as bacantes e os sátiros são chamados de “hippies”, de “beatnicks”, de “altermundialistas”…). Na obra de Nietzsche, a Polifonia do Passado ressoa com força e estrondo; em outras palavras, o passado é múltiplo, repleto de diferentes perspectivas e interpretações, e será tão mais livre e verá tão mais longe aquele que acolher esta diversidade. Ao sábio cabe recusar-se à tirania de qualquer verdade única, de qualquer sistema infalível, de qualquer corpus de dogmas sacrossantos.
Ouçamos Nietzsche sobre Heráclito de Éfeso:
O Devir
Heráclito de Éfeso surgiu no meio dessa noite mística que envolvia o problema do devir em Anaximandro e o ilumina com um raio de luz divino: “Contemplo o devir, diz ele, e ninguém perscrutou tão atentamente esse fluxo e esse ritmo eternos das coisas. E o que vi? Processos regulamentados, certezas infalíveis, vias sempre idênticas da justiça, o juízo das Erínias por trás de cada infração às leis, o mundo inteiro como o espetáculo de uma justiça soberana e de forças naturais presentes em todos os lugares dos demônios de que dispõem. Não foi a punição do que entrou no devir, mas a justificação do devir que observei. Quando o crime e a negação se manifestam sob formas invioláveis e nas leis piedosamente veneradas? Onde reina a iniquidade aparece então o arbitrário, a desordem, a irregularidade, a contradição; mas neste mundo onde só reinam a lei e a Diké, filha de Zeus, como poderia vigorar a esfera da culpa, da expiação, da condenação e, por assim dizer, um lugar de suplicio para os condenados?”
Heráclito tirou dessa intuição duas negações ligadas uma à outra, que somente a comparação com as teses de seu predecessor põe à plena luz. Começou por negar a dualidade dos dois mundos totalmente diferentes que Anaximandro se vira obrigado a admitir. Não fez mais a distinção entre um mundo físico e um mundo metafísico, entre um domínio das qualidades definidas e um domínio da indeterminação indefinível. Depois desse primeiro passo, não conseguiu defender-se com audácia ainda maior da negação: negou o ser em geral. De fato, esse mundo único que ele conservou – esse mundo protegido por leis eternas não escritas, animado pelo fluxo e refluxo obedientes à cadência de um ritmo de bronze – nada mostra de permanente, nada de indestrutível, nenhum baluarte barrando seu curso. Com uma voz mais potente que Anaximandro, Heráclito exclamou: “Só vejo o devir. Não se deixe enganar! É um efeito de sua vista curta e não da essência das coisas, se julgam em lugar terra firme sobre o mar do devir e do perecível. Utilizam os nomes das coisas como se elas tivessem uma duração fixa; mas até o próprio rio, no qual entram pela segunda vez, já não é o mesmo da primeira vez.”
Heráclito é dotado soberanamente de uma capacidade extraordinária de representação intuitiva, enquanto se mostra frio, insensível e mesmo hostil para com esse outro modo de representação que procede por conceitos e combinações lógicas, dito de outra forma, para com a razão, e parece sentir certo prazer em poder contradizer com alguma verdade alcançada por intuição. E é o que faz em suas fórmulas como “Todas as coisas, em tempo, encerram em si seus contrários”, o faz com tanta insolência que Aristóteles o acusa de crime supremo perante o tribunal da razão, o acusa do pecado contra o princípio de contradição. Mas a representação intuitiva encerra dois aspectos diferentes: o primeiro é o mundo presente, colorido e mutável, que se comprime à nossa volta em todos as experiências; depois, as condições de possibilidade a “priori” de toda experiência deste mundo, isto é, o tempo e o espaço. De fato, o tempo e o espaço podem ser percebidos independentemente de toda experiência, mesmo quando seu conteúdo fosse indeterminado, e pela intuição, como puros em si, isto é, que podem ser aprendidos imediatamente.
Quando Heráclito considera então sob este ângulo o tempo separado de toda experiência, possui ai o número mais rico de ensinamentos que dá a chave de tudo o que provém em geral do domínio da representação intuitiva. A maneira pela qual concebeu o tempo é também a de Arthur Schopenhauer, por exemplo, na medida em que, repetindo Heráclito, diz a propósito do tempo que cada um de seus instantes só existe ao destruir o instante procedente, seu pai, para ser ele próprio também destruído por sua vez logo em seguida, e que o passado e o futuro são tão pouca coisa como qualquer sonho, e que, finalmente, o presente é unicamente a fronteira inconsciente e sem extensão que a ambos separa.
– Friedrich Wilhelm Nietzsche, A Filosofia na Época Trágica dos Gregos
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Uma interpretação possível de Nietzsche sustenta que ele seria um destruidor, em guerra contra seu tempo, enojado com seus contemporâneos, e que feito um proto-punk sai tacando pedras e coquetéis molotovs nos veneráveis prédios da Tradição. Filósofo metido a enfant terrible, dá-se como uma de suas missões – todas altamente heréticas! – a de atacar os fundamentos das mais sacrossantas instituições.
Aquilo que o homem comum de seu tempo – a segunda metade do século XIX – valoriza e idolatra não passa para Nietzsche de desprezível lixo cultural, sintoma de decadência. Os altaneiro juízos de Professor Nietzsche, auto-proclamado Anti-Cristo e discípulo de Dioniso, podem soar a alguns paladares como demasiado arrogantes, mas o filósofo não se importa de que uma grande fatia do público sinta-se ferida por seus escritos, ele fala para “espíritos livres”, e deixa aos cativos a liberdade de seguirem abraçados às suas correntes, se assim o desejarem. Nietzsche não tem um temperamento salvífico, um complexo de Messias: ele sugere caminhos de libertação, mas não prega ao rebanho que o siga.
É que não há libertação no rebanho: de forma um tanto semelhante ao de Sidarta Gautama, que abandona seu palácio real, rompe laços familiares, transgride normais tradicionais, para ir procurar a Iluminação encontrável só em uma nômade experimentação de mundo, Zaratustra é também uma figura meio rolling stone, pedra sempre rolante. Zaratustra não tem uma cartilha ou uma tábua de 10 Mandamentos – não prega nenhum evangelho já fixo e que tenha ambições de servir para todo o sempre.
Um dos desafios de comentar Nietzsche está em fazer justiça à complexidade de sua obra ao incluir tanto seu imenso poder crítico / desconstrutivo quanto seu também imenso poder ativo / criativo. Claro que é explícito na obra nietzschiana um antagonismo desabrido contra vários alvos que ele ataca sem misericórdias pias (como, exemplarmente, o moralismo castratório do ideal ascético). Mas é sempre bom levar em consideração que há também em Nietzsche muitos desabridos entusiasmos, e que as potências criativas e afirmatórias são também presença forte: “Só criadores temos o direito de destruir.”
Nada mais falso, portanto, do que pintar um retrato de Nietzsche como alguém que deseja renegar toda a História, começar novamente do zero, conquistar um clean slate através de um deletamento violento de todas as sobrevivências culturais do passado. Pelo contrário! A barbárie é justamente o ímpeto de destruir as culturas alheias, por incapacidade de conviver com sua estranheza, sua diferença, sua “outridade”. Nietzsche não está “prol barbárie”, parece-me, mas é muito mais um batalhador em prol da Cultura.
Nietzsche, com sua “transvaloração dos valores”, propõe uma Cultura renovada, re-atada com suas raízes ao mesmo tempo que capaz de contestar, reformar e revolucionar aquilo que sedimentou-se e petrificou-se em Tradição-Sempre-Presente. Nietzsche convoca à filosofia a acordar para sua missão de ser consciência crítica de seu tempo.
Vocação decerto perigosa, mas… ora! O filósofo tem de ser um tight-rope walker que encara o perigo de morte enquanto segue seu movimento dançarino por cima dos abismos, audaz cruzador de fronteiras, sempre voraz por aportar seu barco em outras margens, alerta sempre para responder ao chamado de novos horizontes que o seduzem para a singular dança do existir… Como ensinou Vonnegut, “temos que estar continuamente pulando do topo de montanhas no abismo para testar nossas asas na queda.”
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CONTINUA…
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“MAN ON WIRE” (2008) – DOCUMENTÁRIO COMPLETO
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P.S.
Assim que chegou à cidade mais próxima, na orla da floresta, Zaratustra encontrou muita gente reunida na praça principal, para ver um equilibrista que fora anunciado. E Zaratustra dirigiu-se assim à multidão:
“Eu vos proponho o super-homem. O homem é algo a ser superado. O que fizeste para isto?
Até então, todos os seres imaginaram algo superior, acima de si mesmos, e vós quereis ser acaso o reverso desse grande fluxo, preferindo antes voltar ao animal do que chegar ao super-homem?
O que é o símio para o homem? Objeto de riso ou ignomínia. E é justamente isso que o homem deve ser para o super-homem: objeto de riso ou ignomínia.
Já fizeste o caminho que vai do verme ao homem, mas ainda há muito de verme em vós. Outrora fostes símios, contudo ainda hoje o homem é mais símio que qualquer dos símios.
O mais sábio entre vós não passa de um conflito, um ser híbrido entre a planta e o espectro. Porventura ordenei que vos tornásseis espectro ou planta?
Vede, eu vos ensino o super-homem!
O super-homem é o sentido da terra. Fazei dizer à vossa vontade: que o super-homem seja o sentido da terra!
Eu vos conclamo, irmão, permanecei fiéis à terra e não acrediteis nos que vos falam de esperanças ultraterrenas! Não passam de envenenadores, conscientes ou não…
Outrora, a ofensa a Deus era a maior das ofensas, mas Deus está morto, e com ele morreram seus detratores. O terrível, agora, é injuriar a terra, dar mais valor às entranhas do insondável que ao sentido da terra!”
Assim Falou Zaratustra
Publicado em: 02/10/20
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia