Hoje em dia tudo parece estar sendo atraído por um enorme magneto chamado Multiverso. O Universo está ficando démodé? Um cosmo apenas é pouca porcaria? Agora precisamos crer numa multiplicidade de cosmos, mergulhando na especulação acerca das relações e pontes entre eles?
Quem tem o costume de ir ao cinema ver os blockbusters que ali estão bombando, ou quem gasta horas nos streams dos Netflixes e similares, acaba trombando cada vez mais com várias versões hollywoodizadas do Multiverso. O que explica esta assombrosa proliferação, e qual a especificidade da excelente série “Devs” de Alex Garland nesta conjuntura, é o que aqui exploraremos.
Avançamos sempre atentos e alertas a esta questão que nos parece crucial para quem deseja desenvolver senso crítico ao invés de se deixar levar pela onda da moda de maneira ingênua: será o Multiverso uma hipótese científica digna de consideração, com lastro em pesquisas e descobertas empíricas, que remetem a Schrödinger, Weinberg etc.? Ou torna-se cada vez mais uma fantasia lucrativa e uma ideologia rocambolesca a ser explorada como um filão do comércio pela indústria do entretenimento?
Jogando num liquidificador alucinante cenas de ação e pancadaria, tornadas típicas pela tetralogia Matrix, unidas com os destinos precários de imigrantes chineses que tem uma lavanderia e estão enrolados com o fisco, Everything Everywhere All At Once (2022) tem causado um bafafá danado. Foi o maior papa-Oscar de 2023, um sintoma a mais da multiversização da cultura pop atual.
Filme extremamente bem realizado do ponto de vista dos efeitos especiais e da montagem videoclíptica, vastamente aclamado pela crítica e pelo público (94% positivo na crítica e 86% no público no indexador do Rotten Tomatoes), Tudo Ao Mesmo Tempo Agora carrega altas doses de sátira e algumas gags quase pastelão.
Parece levar o conceito de Metaverso a uma espécie de <reductio ad absurdum>. É uma comédia sci-fi kung-fu que nos lança num vórtex audiovisual que, para alguns gostos, deve soar como um insuportável desfile de nonsense, enquanto para outros pode ser apreciado como um rollercoaster cheio de loopings e surpresas.
A obra dirigida pelos Daniels – Kwan e Scheinert – tem uma comicidade atraente misturada ao seu carrossel frenético de correrias e tretas, tornado Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo um filme serelepe e um pouco alucinógeno, que brinca de modo lúdico ao invés de especular de modo sério sobre a possibilidade dos múltiplos universos simultâneos e coexistentes.
Este conceito de Multiverso foi fomentado sobretudo pela Marvel Studios e seu recorrente avanço sobre as narrativas multiversais é notório sobretudo nos filmes do Doutor Estranho (o mais recente deles, dirigido por Sam Raimi, entitulado justamente No Multiverso da Loucura).
A mitologia Marvel multiversou-se até o âmago também nas últimas aventuras do Homem-Aranha – ou melhor, dos Spider Mans (no plural). Em No Way Home (Sem Volta Para Casa) (2022), de Jon Watts, são 3 diferentes Peter Parkers, provenientes de três diferentes universos e performados por 3 atores, que combatem uma cambada de vilões bizonhos vindos de todo canto do dito cujo.
A tendência do Multiverso de se imiscuir na saga do Aranha, tornando ainda mais rocambolesca a jornada do herói mutante humano-aracnídeo que aprende a duras penas que “com grandes poderes vem grandes responsabilidades” e já se manifestava no longa-metragem de animação Aranhaverso (Into the Spider Verse), de 2018, vencedor do Oscar da Categoria.
Anteriormente, ideias semelhantes acerca de realidades alternativas em outros universos já davam o ar de sua graça no cinema: de algum modo, já apreciam na trilogia De Volta Para o Futuro, mas depois tornam-se ainda mais definidas e aprofundadas em Donnie Darko, Corra Lola Corra, Sr. Ninguém, Efeito Borboleta, Coerência, Confronto, A Outra Terra etc. E também em séries como Fringe, Counterpart, Ricky and Morty, Stranger Things, Hora da Aventura, e por aí vai. (Devo esta lista a estas outras que consultei em Tangerina, Legião dos Heróis, Cinema 10, Filmow).
De certa maneira, O Homem do Castelo Alto, a série baseada no romance de P. K. Dick, e o magistral romance de Ian McEwan Máquinas Como Eu, também poderiam de algum modo ser enquadradas como ficções multiversais. Mas eu argumentaria que nestes dois casos estamos lidando muito mais com contrafactualismo, com a imaginação de uma história alternativa (o que ocorreria se o III Reich tivesse ganhado a 2ª Guerra? O que ocorreria se Alan Turing não tivesse se suicidado?), o que não demanda um multiverso mas consiste sim em especular como seria a atualidade deste universo aqui caso sua cadeia-de-causa-e-efeito pregressa tivesse sido outra.
Eu também argumentaria que muitas narrativas de viagem no tempo, como a supracitada trilogia de R. Zemeckis ou a famosa narrativa de H. G. Wells, não envolvem necessariamente o multiverso, mas sim a alteração deste universo aqui por uma intervenção no passado que é realizada pelos viajantes temporais.
Uma das sensações entre as séries mais cult, o ambicioso e enigmático Devs de Alex Garland, também mergulha fundo em especulações sobre computadores quânticos e realiza espantosas explorações do multiverso não apenas em teoria mas em práxis fílmica. Indubitavelmente, é o produto cultural mais intelectualmente arrojado de todos os aqui mencionados, com aquela maestria de roteiro que já tornou-se marca registrada de Garland. Este vem se consolidando como cineasta de primeira grandeza após dirigir esta trinca de filmaços: <Men>, Aniquilação, Ex-Machina. Antes, havia sido roteirista de obras notáveis como Never Let Me Go (filme de Romanek baseado no romance de Ishiguro) e também de várias obras dirigidas por D. Boyle (com os dois Extermínio e Sunshine – Alerta Solar).
Junto com C. Kaufman, Garland tornou-se um dos supremos mestres na arte de escrever para o cinema utilizando todos os recursos da 7ª arte mas sem nunca perder uma certa “pegada” literária. Acredito que hoje Garland consolida-se como um dos mais arrojados artistas do cinema em matéria de conceptualidade e de roteiros complexos, crípticos, tais como marcaram também o melhor da filmografia do hoje um pouco decadente Christopher Nolan (que foi genial em Amnésia, Caveleiro das Trevas, Inception, O Grande Truque e Interestelar, mas que parece ter perdido um pouco a mão em Dunkirk e Tenet).
Devs dá sequência às profundas explorações sobre Inteligência Artificial e o futuro da computação realizados em Ex-Machina – Instinto Artificial, ainda que lateralmente seja também uma angustiada busca por sentido nos labirintos da geopolítica hi-tech: a premissa da série é o assassinato de um russo chamado Sergei, casado com uma moça de origem chinesa chamada Lily Chan, ambos empregados de uma empresa do crescentemente poderoso complexo das Big Tech, a Amaya.
De algum modo aludindo ao véu de Maya da mitologia hindu, a série cria seu suspense a partir de um sinistro dispositivo de velar as verdadeiras intenções por trás do experimento ultra-secreto cognominado Devs. A série começa com Sergei sendo admitido ao bunker onde atua um pequeno círculo de elite: ali os iniciados nos complexos algoritmos do sistema Devs atuam diariamente com intenções obscuras.
Sergei terá um único dia de trabalho no departamento Devs e logo perderá sua vida numa trama que depois será desvelada como contendo elementos de um thriller político que dialoga com Snowden de Oliver Stone, com o destino de Assange/Wikileaks e que tematiza uma certa “Nova Guerra Fria” entre NSA/CIA vs KGB/Nova Rússia. Tudo indica que Sergei era uma peça num tabuleiro de roubo de códigos e que se infiltrou na Devs da Amaya para depois leakar algoritmos e outros segredos para os russos.
O homicídio de que Sergei é alvo tenta ser escondido pela empresa através da criação de imagens falsas que mostram-no, através de câmeras de segurança, suicidando-se ao atear fogo em seu próprio corpo a exemplo do monge na capa do debut do Rage Against the Machine. A série tematiza assim a fabricação do fake através de imagens críveis – um tema que depois será também alvo de assombro quando formos descobrindo que o dispositivo Devs pretende dar acesso a imagens do passado.
Ou seja, informado por uma quantidade massiva de Big Data, o mega computador quântico de Devs seria capaz de gerar em seu visualizador (indistinguível de uma mega-tela de cinema) imagens “verdadeiras” de Cristo na cruz ou de Cléopatra transando. Esta fantasia – a criação de “documentários” sobre eventos que nunca puderam ser filmados porque ocorreram antes da invenção dos cinematógrafos – marca a série e produz um blur entre razão e insanidade, conquista científica e delírio megalomaníaco, que marcará a estranha neurose messiânica que domina o chefão do projeto, o CEO Forest.
Profundamente interessado em debater a existência ou não do livre-arbítrio, ou seja, em fazer refletir sobre a noção de determinismo e pré-determinação, o seriado de 8 episódios, perfazendo 410 minutos, produzido por FX e Hulu, merece uma atenção especial pela densidade de sua pesquisa audiovisual sobre a hipótese do multiverso e tudo que esta implicaria. O debate ético que perpassa a série tem a ver com o tema da responsabilidade e da culpa – estas são ambas negadas em uma concepção determinista, como bem expresso pela frase de Stewart (o programador que declama poesias): “don’t blame me, Katie, it was all pre-determined”. O próprio Forest é um determinista estrito e crê que somos espectadores da vida, mais do que seus atores – “life is something we watch unfold.”
Devs – que significa um diminutivo para developments – explora a megalomania deste CEO chamado Forest que, neste universo aqui, perdeu a esposa e a filha para um acidente de carro. Em meio a seu trauma e à elaboração de seu luto, ele tudo investe, apesar de sua aparentemente invencível melancolia, em prol de algum tipo de redenção deste passado que constantemente o aflige.
A empresa Amaya, batizada em homenagem póstuma à filha perdida, é para Forest uma obsessão tamanha que este instala uma mega-estátua da menina na sede da empresa. Rodeada por uma floresta, a Amaya de pedra é um símbolo para a Amaya digital que Forest quer acessar para poder com ela conviver em “outro universo”, ainda que seja um sim (simulado).
No último episódio da primeira temporada (T1E8), descobrimos que o nome Devs na verdade deveria ser decifrado ou decriptografado de modo diferente: como Deus (com um U no lugar do V). Isto só torna mais sólida a avaliação de Jamie e de Lily de que esses caras da Big Tech, quando se tornam muito ricos e poderosos, começam a pensar em si mesmos como messias.
Este ímpeto messiânico manifesta-se na tentativa de dar um drible na morte a partir de uma realidade simulada, da criação de uma espécie de game onde por fim Lily e Forest estarão encerrados como que dentro de uma nova e paradisíaca Matrix. Eis um tema cada vez mais recorrente na produção audiovisual: em San Junipero, episódio de Black Mirror, e em toda a série Upload, da Amazon, coloca-se em debate isto que Devs também aborda: uma espécie de tecno-fix, de solução tecnológica, para um severo handicap que aflige a nossa humana condição, o fato de sermos finitos e mortais. Uma doutrina que merece ser alvejada pelas críticas que o bielo-russo Morozov dirige ao “solucionismo” da ideologia do Vale do Silício.
Alimenta-se a fantasia de que um ser humano de carne-e-osso pode ser “salvo” em sua essência, que seria constituída por informação, e depois ser uploadeado para uma mega-nuvem, onde poderia de algum modo “viver” dentro de uma simulação e tendo ainda em sua “posse” as memórias de sua vida carnal.
A tecnologia é aqui apropriada por uma ânsia religiosa, um ímpeto metafísico, uma vontade de ser deus, em que a morte, longe de ser aceita é confrontada com as ferramentas da Big Data e da criação de simulacros através de IA quântica. São desenvolvimentos da denial of death, a negação da morte, que Ernest Becker não chegou a sonhar em seu belíssimo livro vencedor do Pulitzer.
O Complexo de Messias de Forest entra em um certo confronto contrastante com a atitude mais lúcida de Lily – esta, de algum modo, tem atitudes que lembram mais a de Neo, o hacker de Matrix, e ela observa com desconfiança o mundo de simulações que os neo-messias da Big Tech propõe. Desconfortável na Matrix fake onde descobre-se encerrada após sua desastrosa incursão no bunker, Lily parece apontar caminhos, em uma possível segunda temporada, para uma saga à la Neo – sair da Matrix e confrontar o fake-ísmo das Big Tech.
A série Devs, por tanto, explora nosso zeitgeist de megalomania dos novos senhores feudais do tecnofeudalismo – a própria localização geográfica e forma arquitetônica do departamento de elite onde o projeto Devs se desenrola evoca os bunkers que os bilionários do Vale do Silício estão tramando para se safarem do apocalipse climático.
Há uma certa loucura messiânica sendo aqui denunciada: os ricaços que são donos de empresas hi-tech, doidões com a cocaína de uma ideologia Ayn Randiana, acreditam piamente na “virtude do egoísmo” e no solucionismo mágico que prega as panacéias da fusão entre carbono e silício, organismo e computador, mente e simulacro. Forest só tem olhos para sua própria ferida existencial, sua perda imensa, sua vontade de reencontrar as pessoas amadas que estão mortas neste universo, e para isso está disposto a usar seu capanga Kenton como homicida, torturador, internador compulsório em hospícios destes subalternos insurgentes e desobedientes que são Lily, Sergei e Jamie.
Mais uma vez, Garland aponta para uma heroína feminina perdida em um labirinto de messianismo e masculinidade frágil/ferida. Lily comete o pecado original, a desobediência, quando lança aquela arma para fora do elevador nos instantes finais da série. Recusa assim o determinismo estrito, a pré-destinação, o “está tudo já escrito”, e assume uma postura Sartriana de fazer uso, seja quais forem as consequências, da liberdade a que está condenada.
Já Forest quer curar suas feridas em um plácido paraíso digital cuja natureza simulada e fake ele não quer reconhecer, e que toda sua vida ele se esforçou para que não fosse mesmo reconhecível: sua utopia messiânia, afinal de contas, consistia em poder habitar um universo simulado que fosse indistinguível do universo real, como uma imersão completa num game do qual o player não sairia mais – e dentro dele a filha nunca morreria e a família seria feliz para sempre.
Lily, heroína mais trágica, é desobediência, desconfiança e lágrimas, destoando o coro dos contentes neste sinistro e sorumbático ambiente repleto de lunáticas panacéias solucionistas. É como se Lily dissesse que jamais a tecnologia vai nos salvar de nossa mortalidade. A simulação de imortalidade pode nos deixar todos loucos, alucinados na matrix consolatória de uma IA quântica com a qual nos cegamos sobre os fatos indigestos e inescapáveis da vida.
Não será o conceito de Multiverso, deste modo, uma criação de nossa função fabulatriz, emprestando a expressão de Bergson, que inventamos para nos consolar dos males do Universo que habitamos? Não queremos que o Multiverso exista para que possamos escapar das consequências de nossas más decisões, de nossas escolhas equivocadas, de nossos relacionamentos falhados, de nossas flopadas monumentais neste universo aqui?
Não será o Multiverso uma rota imaginária de fuga para seres ressentidos diante de um Universo que não é como queríamos que fosse? Uma fantasia de alta lucratividade com a qual fomentamos a crença, supostamente fundada na Ciência, de que temos outras vidas a nosso dispor em outros Universos, e que só precisaríamos saber acessá-los? Afinal de contas, enquanto seres de uma vida só como somos, será que não deliramos com a multiversalidade apenas para tentarmos nos libertar do peso da responsabilidade insustentável que vem junto com a unicidade irrepetível de cada vida?…
Por Eduardo Carli de Moraes
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Publicado em: 22/09/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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