No Carnaval, escreve Lélia Gonzalez, “o mito que se trata de reencenar aqui é o da democracia racial. E é justamente no momento do rito carnavalesco que o mito é atualizado com toda a sua força simbólica. E é nesse instante que a mulher negra se transforma na rainha, na “mulata deusa do meu samba”, é nos desfiles das escolas de primeiro grupo que a vemos em sua máxima exaltação. Ali ela perde seu anonimato e se transfigura na Cinderela do asfalto, adorada, desejada, devorada pelos olhares dos príncipes altos e loiros, vindos de terras distantes só para vê-la… ela dá o que tem, pois sabe que amanhã estará nas páginas das revistas nacionais e internacionais, vista e admirada pelo mundo inteiro…” (2020, Zahar, p. 80)
Segundo Lélia, “toda jovem negra que desfila no mais humilde bloco do mais longínquo subúrbio sonha com a passarela da Marquês de Sapucaí. Sonha com esse sonho dourado, conto de fadas no qual ‘a Lua te invejando fez careta / Porque, mulata, tu não és deste planeta.’ (De Lamartine Babo, “O Teu Cabelo Não Nega”). E por que não?
Como todo mito, o da democracia racial oculta algo para além daquilo que mostra: exerce sua violência simbólica de maneira especial sobre a mulher negra, pois o outro lado do endeusamento carnavalesco ocorre no cotidiano dessa mulher, no momento em que ela se transfigura na empregada doméstica.
Na hora de mostrar o que eles chamam de ‘coisas nossas’, é um tal de falar de samba, tutu, maracatu, frevo, candomblé, umbanda, escola de samba e por aí afora… Quando querem falar do charme, da beleza da mulher brasileira, pinta logo a imagem de gente queimada de praia, de andar rebolativo, de meneios no olhar, de requebros e faceirices. E culminando pinta este orgulho besta de dizer que a gente é uma democracia racial. Só que quando a negrada diz que não é, caem de pau em cima da gente, xingando a gente de racista. Contraditório, né? Na verdade reagem dessa forma justamente porque a gente põe o dedo na ferida deles, a gente diz que o rei tá pelado. E o corpo do rei é preto, e o rei é Escravo. E é justamente no Carnaval que o reinado desse rei manifestadamente se dá. (p. 91)
O Carnaval brasileiro possui um aspecto de subversão, de ultrapassagem de limites permitidos pelo discurso dominante, pela ordem da consciência. Essa subversão, na especificidade, só tem a ver com o negro. A gente sai das colunas policiais e é promovida a capa de revista, a principal focalizada pela TV, pelo cinema e por aí afora. De repente, a gente deixa de ser marginal pra se transformar no símbolo da alegria, da descontração, do encanto especial do povo dessa terra chamada Brasil… a negrada vai pra rua viver o seu gozo e fazer a sua gozação. (…) Os não negros abrem passagem para o Mestre Escravo, para o senhor, no reconhecimento manifesto de sua realeza… É também no Carnaval que se tem a exaltação do mito da democracia racial, exatamente porque nesse curto período de manifestação de seu reinado o Senhor Escravo mostra que ele, sim, transa e conhece a democracia racial… (GONZALEZ, ed. Zahar, p. 92)
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Publicado em: 30/03/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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