Uma das vozes mais contundentes do pensamento político e do ativismo radical no mundo contemporâneo calou-se para sempre em 2020: aos 59 anos, faleceu em Veneza o antropólogo anarquista David Graeber. Ele foi uma das lideranças do movimento Occupy Wall Street (2011) e é creditado como um dos criadores do lema “Nós Somos os 99%” (originalmente adaptado a partir de uma noção inventada pelo coletivo canadense AdBusters).
Autor de vasta obra, Graeber foi professor de antropologia da London School of Economics e deixa como legado uma vida e obra dedicadas à transformação radical de um mundo asfixiado pela dominação injusta da plutocracia (o “1%”). Sequestrando os processos eleitorais em seu favor, a minoritária fração populacional que concentra poder e capital segue pisando sobre nossas goelas com as armas da dívida, da austeridade, da precarização laboral, dos golpes de Estado e das núpcias sinistras entre neoliberalismo (fundamentalismo de mercado) e neofascismo (autoritarismo militarista).
Em seu livro “Um Projeto de Democracia – Uma História, Uma Crise, Um Movimento” (Rio: Paz e Terra, 2013), Graeber realiza uma espécie de reportagem a quente do Occupy somado a uma reflexão profunda sobre a democracia através da história:
“No mesmo dia do bloqueio da ponte do Brooklyn, em 2 de outubro de 2012, o Occupy Wall Street recebeu uma mensagem assinada por 50 intelectuais e ativistas chineses:
‘A erupção da Revolução de Wall Street no coração do império financeiro do mundo mostra que 99% das pessoas do planeta continuam a ser exploradas e oprimidas – independentemente de seres de países desenvolvidos ou em desenvolvimento. Pessoas de todo o mundo têm sua riqueza saqueada e seus direitos confiscados. A polarização econômica é hoje uma ameça comum a todos nós. O conflito entre o poder popular e o poder da elite está presente em todos os países. Agora, no entanto, a revolução democrática popular encontra repressão não só por parte de sua própria classe dominante, mas também da elite mundial que se formou com a globalização. As brasas da revolta estão espalhadas entre todos nós, esperando para queimar com a mais leve brisa. A grande era da democracia popular, que vai mudar a história, está entre nós novamente!’
Os intelectuais chineses dissidentes, assim como a maioria das pessoas no mundo, encararam o que aconteceu no Parque Zuccotti como parte de uma onda de resistência que varria o planeta. Estava muito claro que o aparato financeiro global, e todo o sistema de poder sobre o qual foi construído, estava cambaleando desde seu quase colapso em 2007-2008. Todos esperavam a reação popular. As revoltas na Tunísia e no Egito foram o início? Ou tratava-se de situações estritamente locais ou regionais? Então elas começaram a se espalhar. Quando a onda atingiu o ‘coração do império financeiro mundial’ ninguém mais podia duvidar de que algo memorável estava acontecendo.
O Occupy foi e continua a ser em sua essência um movimento de jovens voltados para o futuro, mas que ficaram completamente paralisados pela dívida. Agiram conforme as regras e assistiram à classe financeira desobedecê-las por completo, destruir a economia mundial com especulação fraudulenta, depois ser salva pela imediata e maciça intervenção governamental e, como resultado, exercer um poder ainda maior e ser ainda mais reverenciada do que antes. Enquanto isso, eles ficaram relegados a uma vida de permanente humilhação.
Especialistas em contrainsurgência dos Estados Unidos sempre souberam que o prenúncio mais provável de efervescência revolucionária em qualquer país é o crescimento da população universitária desempregada e empobrecida, ou seja, jovens cheios de energia, com muito tempo disponível, com acesso a toda a história do pensamento radical e com todos os motivos do mundo para estarem furiosos.” (GRAEBER, pg. 78, 84-85)
Preciosa contribuição aos debates contemporâneos sobre a democracia e os caminhos para sua radicalização, ou seja, sua ascensão desde a representatividade limitada até a participação popular plena, a obra de David Graeber tem muito a nos ensinar. No capítulo A História oculta da democracia, ele revela o quanto a democracia já foi demonizada através das épocas: vista como inimiga, temida como um pesadelo, foi defenestrada pelas classes dominantes ciosas de defender sua posição privilegiada no status quo:
“A maior parte da população desconhece o fato de que a Declaração de Independência e a Constituição [dos EUA] não mencionam que os Estados Unidos sejam uma democracia. (…) A maioria dos Pais fundadores aprendeu tudo o que sabia sobre o tema da democracia por meio da tradução de Thomas Hobbes para o inglês da História, de Tucídides, um relato sobre a Guerra do Peloponeso. A tradução pretendia ser um alerta de Hobbes sobre os perigos da democracia… Os Fundadores usavam a palavra no sentido grego antigo, que é o de autogoverno comunitário por meio de assembleias populares. Era o que hoje chamaríamos de ‘democracia direta’.” (GRAEBER: Um Projeto de Democracia. Paz e Terra: 2015, p. 160.)
Graeber na sequência explica que os EUA não nasce como democracia, mas sim como um república de molde emprestado à Roma Antiga e que os “pais fundadores” norte-americanos herdaram dos britânicos colonizadores. Trata-se de um sistema político que funciona pelo sistema da representação: “na Inglaterra remontava, pelo menos, ao século XIII. Por volta do século XV, tornou-se uma prática padrão que os homens com posses escolhessem seus representantes parlamentares mandado seus votos ao xerife.” (p. 161)
Quando se diz “homens de posses”, deve-se atentar para o princípio de exclusão que aí se manifesta: não é permitida a participação nem das mulheres, nem dos pobres. Quem assistiu ao filme Sufraggette sabe que o voto feminino é uma dura conquista que só virá no Reino Unido ao raiar do século XX. As eleições eram portanto, no berço da democracia anglo-saxã de inspiração romana,
“consideradas uma extensão do sistema de governo monárquico, já que os representantes não tinham poderes para governar. Eles não governavam nada, coletiva ou individualmente; seu papel era falar em nome (‘representar’ os habitantes de seu distrito diante do poder soberano do rei, para oferecer conselhos, expressar queixas e, acima de tudo, entregar os impostos de sua região). (…) A ideia, que nasceu nos Estados Unidos, de dizer que o povo pode exercer poder soberano – o poder antes exercido por reis – votando em representantes com real poder para governar, foi uma invenção reconhecidamente inovadora.” (p. 161)
A democracia representativa, que só permite que sejam eleitos aqueles com dinheiro, poder e prestígio, restringe a atuação política às classes privilegiadas, detentoras de capital econômico ou cultural. Esta pseudo-democracia, mais próxima de uma oligarquia, sempre teve pavor da democracia direta, ou seja, do poder popular ou comunitário. O medo da democracia, a noção de que é muito perigoso permitir às maiorias que tenham voz e vez, é muito bem exemplificada por Graeber a partir de John Adams, que argumentou:
“Se tudo fosse decidido pelo voto da maioria, os 8 ou 9 milhões de pessoas que não têm propriedades não pensariam em usurpar os direitos dos 1 ou 2 milhões de pessoas que têm? (…) A primeira coisa seria a extinção das dívidas; depois, pesados impostos recairiam sobre os ricos e absolutamente nenhum sobre os demais; e, finalmente, uma divisão absolutamente igual seria exigida e votada. Qual seria a consequência disso? O ocioso, o vicioso, o destemperado não perderia tempo em adotar uma vida de indulgência plena, venderia e gastaria todo o seu quinhão, e logo exigiria uma nova divisão… No momento em que ideia de que a propriedade não é tão sagrada quanto as leis de Deus e de que há uma força de lei e uma justiça pública capazes de protegê-la é admitida na sociedade, a anarquia e a tirania se iniciam.” (apud GRABER: p. 168)
A democracia, longe de ser amada e idolatrada pelas classes possidentes, costuma ser desprezada, temida, evitada, vilipendiada e obstaculizada por privilegiados que a retratam como caos, falta de ordem e turbulento reinado da turba ignara. Tanto que o cientista político canadense Francis Dupuis-Déri (da UQAM-Montréal)
“mapeou cuidadosamente o modo como a palavra ‘democracia’ foi usada por grandes figuras políticas nos Estados Unidos, na França e no Canadá durante os séculos XVIII e XIX, e descobriu, em todos os casos, exatamente o mesmo padrão. Quando a palavra começou a ser usada com alguma frequência, entre 1770 e 1800, foi empregada quase exclusivamente em sentido vexatório e ofensivo… era vista como anarquia, falta de governo e caos sem controle.” (p. 169)
Diante da grotesca persistência de um regime dominante que concede benesses pros privilegiados e austeridade para o resto, é crucial haurir forças na obra de Graeber: o 1%, camaradas, está escarrando em nossa cara. E chocando o ovo de serpente do fascismo redivivo. Diante disso, compreender plenamente a potência popular transmitida pelo lema “nós somos os 99%” é fundamental para virar pelo avesso a mesa onde hoje comem iguarias as minorias enquanto às maiorias são concedidas só as migalhas.
Vivemos em tempos sombrios em que democracia direta, autenticamente participativa, que exige cidadãos interessados nos assuntos públicos e na determinação dos rumos coletivos pela própria coletividade, torna-se uma bandeira utópica diante dos regimes pós e anti-democráticos (Trumpismo, Bolsonarismo, Dutertismo, Orbánismo, Modismo etc.).
São tempos que, para lembrar o título de um livro de Jacques Rancière, são de Ódio à Democracia em meio ao empoderamento de uma extrema-direita obscurantista e que exala ódio aos pobres e anseios de apartheid. A oligarquia capitalista atual odeia a democracia direta e a participação política; porém, também certas vertentes de esquerda por vezes caem na armadilha de odiar a democracia e pregar a liderança “pelo alto” das vanguardas iluminadas que conduziriam o povo ignorante a um melhor amanhã – um dirigismo que ameaça aniquilar a autonomia dos “dirigidos” e manter o coletivo na servidão. Sobre isto, o filósofo francês Jacques Rancière escreveu em O Ódio à Democracia:
“Em 1963, Hannah Arendt ainda via na forma revolucionária dos conselhos o verdadeiro poder do povo, na qual se constituía a única elite política efetiva, a elite autosselecionada no território daqueles que se sentem felizes em se preocupar com a coisa pública. (…) A democracia, longe de ser a forma de vida dos indivíduos empenhados em sua felicidade privada, é o processo de luta contra essa privatização, o processo de ampliação dessa esfera. Ampliar a esfera pública não significa, como afirma o chamado discurso liberal, exigir a intervenção crescente do Estado na sociedade. Significa lutar contra a divisão do público e do privado que garante a dupla dominação da oligarquia no Estado e na sociedade.” (RANCIÈRE, Boitempo:2014, p.69- 72)
A morte de Graeber equivale, como escreve a Jacobin, a “perder um farol”? Não: este farol só se apaga se não permitirmos que sua luz de lucidez e de renovação fique barrada por obstáculos à sua entrada. Abramos nossos corações e mentes, pois, ao farol de uma vida e obra que precisa ter sua potência transformadora e sua força crítica repercutida e ressoada por aqueles que permanecem vivos e que, junto com Graeber, estão cientes das responsabilidades de pertencer ao 99% e de ter em suas próprias mãos o desafio de parir uma realidade alternativa sobre os escombros de um status quo que merece morrer.
Talvez um dos ensinamentos supremos de Graeber, um cara que nunca desuniu o trabalho teórico do ativismo, a vida intelectual da vida prática, a inteligência da vontade, seja este: o capitalismo plutocrático que hoje nos massacra não vai morrer de morte morrida mas sim de morte matada. Nós estamos à altura da tarefa ou seguiremos sendo os cúmplices passivos deste capitalismo gore que nos oprime ao mesmo tempo que, pelas seduções do consumo, tenta nos aliciar para suas hostes?
Seremos parte da solução ou do problema? Seremos a Natureza consciente de si, que se ergue em sua própria defesa, ou estaremos alinhados com os ecocidas irresponsáveis que perpetram contra a Natureza uma hecatombe destrutiva (a Sexta extinção da biodiversidade planetária somada ao aquecimento global antropogênico etc.)? Seremos os agentes da emergência de uma nova democracia radical e autenticamente participativa, ou as ovelhas resignadas ao sacrifício, seguindo obedientes os necro-pastores e mortíferos gestores que condenam os pobres apenas à indignidade, à pobreza, aos trabalhos-de-merda e a um precoce tíquete de entrada no cemitério?
Eduardo Carli de Moraes
Setembro de 2020
www.acasadevidro.com
Publicado em: 05/09/20
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
Artigo iluminador! Vou comprar o livro do Graeber! Fiquei comovida e chorei!
Obrigado, Jaci Coutinho! Que bom que o artigo iluminou e comoveu. Espero que goste da leitura dos livros de Graeber 😉 Volte sempre.
Muito obrigado pelo artigo e pelos vídeos com as falas de Graeber! A Casa de Vidro também é, para nós brasileiros, um farol!
Valeu, Rodrigo! Que bom que apreciou o artigo e os vídeos, seguimos firmes e fortes com nosso farol sempre aceso e sempre avesso aos obscurantismos! Volte sempre.
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia
Jaci Coutinho
Comentou em 05/09/20