Sobre “Triângulo da tristeza” – Dir. Ruben Ostlund e “Por um Destino Insólito” – Dir: Lina Wertmüller (Itália, 1974)
No <filme de Wertmüller>, o azul paradisíaco murmura junto das acaloradas discussões sobre capitalismo e comunismo. A satisfação de um grupinho de super ricos (deitados) é motor para que os serviçais (em pé, ajoelhados) desse iate movam-se mais rápido do que as águas do Mediterrâneo. Os closes na senhora Rafaela Pancetti (Mariangela Melato) destacam seu bronzeado impecável e sua logorreia plena de ódio às classes baixas.
O campo abertíssimo da filmagem não nos deixa esquecer que o mundo é infinito para os ricos, e o no, termo para eles erradicado da língua italiana. Lê-se a subalternidade dos marinheiros na voz, nos olhos, nos gestos, nas tomadas feitas de cima sobre esses homens pobres que, silenciosos, espiam o topless das madames a desfrutarem la dolce vita no convés.
Os olhos esverdeados do comunista Gennarino (Giancarlo Giannini) se põem raivosos num momento, mas noutro, cobiçosos, espreitam aquela beleza bem tratada que não era para seu bico. Não é fácil sobreviver no porão dos navios sociais, como <Parasita, o filme de Bong Joon-Ho (leia o artigo de Gisele Toassa e Eduardo Carli)> bem nos mostrou, mas quem está no convés pode não saber fazer nada.
A semelhança com Triângulo da tristeza (2022) já foi notada por <Tommaso Alvisi>. Com o mote de uma viagem de luxo, os dois filmes exploram tensões de classe e gênero quase sem que notemos os cinquenta anos que os separam. O material pouco mudou. No iate em que embarca o casal de modelos Carl (Harris Dickinson) e Yaya (Charlbi Dean) (que, mais abaixo na pirâmide social, vendem fotos instagramáveis para entrar nesse navio) navega a fina flor da burguesia: velhinhos fabricantes de granadas de mão, um simpático oligarca russo que se intitula o Rei da Merda, um introvertido da big tech, uma sueca a reclamar da sujeira das velas em um navio sem velas.
A Terra gira no ritmo dos tolos. O burlesco, o absurdo, vai se apresentando a bordo. Entre as fotos da bela mulher e o enquadramento grotesco da gordurosa barriga do oligarca moram os estupendos jantares e a vida animal neles dilacerada. Se nada é o que parece, tudo afunda em minutos. O supostamente romântico Carl esquece a namorada assim que é cortejado por uma nova, e poderosa, capitã da sobrevivência na ilha deserta. Diferente de Gennarino, esse homem desconstruído é uma espécie de apêndice de suas mulheres, mais para troféu do que para desbravador.
Nem mesmo a morte converte Triângulo da tristeza em uma tragédia. Não é trágica a morte dos produtores de granadas de mão pelas vias de um de seus artefatos. É, no máximo, irônica. Estamos na era pós-trágica, no qual a indiferença tinge o mundo em tons de cinza. Também no da pós-verdade, em que um capitão comunista pilota um iate de luxo, sem que, de fato, o pilote. Estão plantadas, todavia, as sementes do grotesco, e nelas há espaço para o riso – talvez triste, despotencializado, olvidável, mas, em todo caso, sobrevivente.
A inversão de papéis após eles se converterem em naufrágos acontece em ambos os filmes. No de Gennarino e Rafaela, onde as contradições parecem muito mais brutas e os trabalhadores, comunistas, e no de Carl e Yaya, onde os servos oram ao deus do vil metal. Nas duas ilhas, as ideologias sucumbem à faminta urgência da necessidade presente. O marinheiro Gennarino e a faxineira Abigail, os únicos ligados à inconveniente matéria do mundo, agora dão as cartas para as elites. Um clima de revanchismo mostra que falta faz uma educação onde o oprimido não queira ser o opressor – mas, não faz mal sentirmos Schadenfreude (ops, prazer perante a dor alheia) em doses moderadas.
Cineasta sueco Ruben Ostlund, duas vezes premiado com a Palma de Ouro em Cannes
Na sátira da diretora Wertmüller, entendemos que Gennarino sofria sobremaneira pela liberalidade de costumes. A utopia comunista não parecia tomar o espaço de um projeto materialista, de um patriarcalismo primitivo repleto de madames a lavarem suas cuecas. Exige ser o senhor absoluto do corpo e alma de Rafaela, logo ele, que não havia deixado sua interioridade colonizar-se pelos ricos. Já a Carl não parece inquietar o orgulho: não compromete sua alma, pois ela já não existe, sufocada pela moda, por Chips e pretzels.
Sem ideologia, ele trocará favores sexuais por abrigo. A falta de intensidade real de seu mundo hipersofisticado parece ter desmilinguido a ebulição das paixões. “Eu te amo, você me dá peixe” é a frase do filme.
Ponto para a senhora Pancetti, que conhecerá o amor em uma belíssima ilha da costa do Mediterrâneo. Clichês românticos entregam-na sem reservas à força bruta do atual macho provedor, tão diferente, mas tão necessário, quanto seu seu provedor anterior. Humilha-o sem querer, querendo agradar com suas palavras difíceis. Quiçá, mulheres, escondam-se em vosso passado alguns dramas de sujeição que convidam a sacrifícios eróticos em muitos tons de cinza, ali onde a tecnologia ruiu junto das hierarquias que elas sustentam, parece ser esse o provocativo recado de Wertmüller.
Publicado em: 16/08/23
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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