Apesar das lunáticas fantasias de bilionários que querem colonizar Marte, para que uma casta de ricaços possa abandonar uma Terra devastada [1], o fato é que não há planeta B para onde possamos todos fugir. E os plutocratas ainda não aprenderam esta lição banal, este óbvio ululante: não há negócios em um planeta morto. Nem lucros possíveis de serem ganhos em megalópoles submersas, como novas Atlântidas, devido a uns 80 metros de subida nos níveis do mar. Nem toda a grana reunida, nem todo o capital do planeta, nem todos os PIBs nacionais somados são capazes de comprar de volta as condições ambientais que tornaram possível a evolução da vida e que agora, no tal do Antropoceno, rapidamente vão cessando de existir.
Como argumenta Wallace-Wells em seu A Terra Inabitável – Uma História do Futuro (Cia das Letras, 2019), tendemos muito facilmente a esquecer da “raridade do conjunto de circunstâncias exigido para a criação de um equilíbrio climático propício à vida. Nenhuma vida inteligente de que tenhamos notícia jamais evoluiu, em qualquer parte do universo, fora da faixa estreita de temperaturas que abrangeu toda a evolução humana e que agora é parte do passado, provavelmente para sempre.” [2]
Em meados de 2022, vejo ao redor muitos celebrando uma certa volta ao normal, com um certo júbilo por estarmos supostamente deixando pra trás a pandemia de covid19. O que é compreensível diante de 2 anos de confinamento e uma enxurrada de notícias más sobre a mortandade em massa produzida não só pelo vírus mas também por governos necrocapitalistas como o do Bolsofascismo. O presifake brasileiro, além de estar agindo como um atentado ambulante contra a saúde coletiva e um aliado do coronavírus adoecedor e mortífero, também ajuda a produzir uma hecatombe na Amazônia que equivale a um crime contra a Pachamama, a Mãe Terra:
“Hoje, as árvores da Amazônia ficam com um quarto de todo o carbono absorvido por ano pelas florestas do planeta. Mas em 2018, o Bolsonaro prometeu abrir a selva tropical para o desenvolvimento – ou seja, para o desflorestamento. Quanto estrago uma só pessoa consegue causar ao planeta? Um grupo de cientistas brasileiros estimou que entre 2021 e 2030 esse desflorestamento liberaria o equivalente a 13,12 gigatons de carbono… Os EUA emite por ano cerca de 5 gigatons. Essa política [bolsonarista] sozinha teria o dobro ou o triplo do impacto de carbono anual de toda a economia dos EUA, com todos seus aviões, automóveis, usinas a carvão.” [3] (WALLACE-WELLS, op cit, p. 98)
O que impede a eclosão de novas pandemias, de outras zoonoses, quando todas as causas subjacentes da atual crise sanitária seguem intocadas? A degradação ambiental segue sem muitos freios, a pecuária industrial ainda é um ramo gigante de nossa economia e segue produzindo holocaustos animais em prol dos hambúrgueres baratos, assim como seguem de vento em popa o desmatamento, o uso venenoso de agrotóxicos, a aniquilação dos povos indígenas via epistemicidio, etnocídio, genocídio.
Já a crise do clima é o grande megaobjeto ausente de nosso debate público, o elefante na sala que quase todos fingem não estar ali, enquanto vamos inconsequentemente despejando sobre as cabeças das gerações vindouras um planeta em vasta medida inabitável. O capitalismo fóssil segue hegemônico e queimamos a possibilidade de um futuro vivivel em milhões de tanques de gasolina como se nada fosse.
A ciência nos alerta sobre as gravíssimas consequências não só para a humanidade, mas para toda a teia da vida, de 4 graus Celsius a mais em 2100, mas ligamos o foda-se de nosso imediatismo e seguimos acelerando o motor desta civilização extrativista-ecocida moribunda que desrespeita todos os limites ambientais. Em meio à sexta extinção em massa da biodiversidade do planeta, causada por ações humanas, estamos muito ocupados dando coraçõezinhos para memes de ódio no Instagram para nos ocuparmos em mudar os rumos que nos conduzem ao caos.
Neste contexto, proliferam diagnósticos sobre os porquês da nossa atual incapacidade para enfrentar esta crise planetária que só se aprofundará no porvir – a ONU projeta que teremos 200 milhões de refugiados do clima até 2050, o que equivale a “toda a população mundial no auge do Império Romano” [4] (Wallace-Wells, p. 17). Obviamente, entre os vilões que nos conduziram à esta beira-de-precipício estão o negacionismo, promovido por populistas neofascistas e obscurantistas como Trump e Bolsonaro, mas também financiado há décadas pelas empresas petrolíferas e pela pecuária industrial, além do extrativismo e do consumismo desenfreado. Mas penso que talvez precisemos buscar outros vilões em nossos espelhos. Dando uma boa olhada em nós mesmos.
Nas obras recentes sobre a devastação ambiental planetária e as sombrias projeções para nosso porvir, percebo a recorrência do tema da cegueira, ou da miopia, que aparece nas obras de Krznaric, Saramago, Bauman, Chul-Han ou Wallace-Wells, atribuída aos seres humanos em massa. Nossa selfie coletiva mostraria um bando de cegos voluntários caminhando em fila indiana rumo ao abismo do colapso ambiental e civilizacional. Como se fôssemos hoje gigantescos rebanhos de criaturas cegas, ou pelo menos míopes, não apenas incapazes de enxergar o óbvio, mas escolhendo voluntariamente não enxergar. Do mesmo modo que “mentir para si mesmo é sempre a pior mentira” [5], a nossa vilania consiste em cegar-nos a nós mesmos, numa nova versão do Complexo de Édipo.
Esta cegueira tem muito a ver com uma incapacidade, ou indisponibilidade, ou falta-de-vontade, de tentar enxergar para além do presente imediato – uma formação que contenha muita história mas que também abra caminhos para a futurologia e a ficção especulativa poderia nos ajudar a curar este equívoco. O problema é que “o pensamento de curto prazo está embutido no código genético do paradigma neoliberal”, como argumenta Krznaric em Como Ser Um Bom Ancestral, e seguimos reféns de um neoliberalismo ecocida que trata os danos aos ecossistemas e à atmosfera como meras externalidades, estando também reféns da democracia representativa liberal-burguesa “que emergiu no século XVIII” e que “está agora tão dominada pela tendência de privilegiar o curto prazo que pode estar com sua data de validade vencida, tendo pouca capacidade de atacar os desafios de longo prazo que enfrentamos.” [6] (KRZNARIC, p. 196)
Existem ousadas soluções propostas – como a conclamação rewild! de George Monbiot e outros, que nos convoca a re-florestar e tornar de novo selvagem o nosso planeta tão dominado por selvas de concreto e cimento que vomitam fumaça queimando combustíveis fósseis -, mas a solução também perpassa pelo enfrentamento de uma problemática psíquica. O que faz os sujeitos contemporâneos terem tanta fobia de um assunto tão importante e crucial como as mudanças climáticas? Por que fogem de saber mais sobre o assunto, e de deliberarem sobre modos de agir coletivo, e preferem fingir que tudo ficará bem desde que possam guardar o suficiente na poupança para a compra, no próximo escaldante verão, de um novo e potente aparelho de ar condicionado?
As doutrinas da positividade tóxica hoje tão em voga, virais nas redes sociais, talvez possam também ser perfiladas como vilãs nesta conjuntura: nossa cegueira voluntária também provêm de nosso desejo de estarmos confinados nos estreitos limites das good vibes, erguendo um muro invisível de repressão e de forçada indiferença diante dos problemas ecológicos que fingimos que não nos concernem. Se você adere aos apóstolos do pensamento positivo e do tudo-vai-melhorar, você certamente irá fechar os ouvidos e os olhos para as mensagens alarmistas dos profetas-do-apocalipse que dizem ser os porta-vozes da ciência – como o IPCC da ONU, uma entidade que, aposto, 95% dos fiéis da seita positivamente tóxica nunca quiseram saber o quê é, nem muito menos se informar sobre o conteúdo de seus relatórios.
Considerem a hipótese de que a positividade tóxica seja uma das responsáveis pela crise socioambiental conectada à degradação dos ecosistemas e às poluições atmosféricas, hídricas e outras. E que a positividade tóxica é reforçada pelo discurso das religiões instituídas, estas máquinas de vender ideologias que garantem que Papai-do-Céu está no comando e no fim tudo vai bem para os que os forem bons. Não, arrombadines, Deus não está no comando, “o inferno está vazio e todos os demônios estão aqui” (Shakespeare).
Neste caso, passaríamos a considerar que não é mera metáfora ou analogia dizer que ideologias como a positividade tóxica agem como se fossem entorpecentes tóxicos, sairíamos do as if da metáfora e estaríamos de fato num domínio onde há ligação causal material-concreta entre o ethos dos indivíduos intoxicados pelo otimismo compulsório e os resultados sócio-ambientais que estamos vendo. Crer que tudo se encaminha para ser um arco-íris idílico no futuro, basta que a gente reze bastante e acredite no própiro mérito e potencial, está gerando exatamente o contrário, e nos afundando num deserto-do-real bastante distante dos arco-íris no fim-do-túnel que tanto nos pregam e que tanto gostamos de consumir até as beiras da overdose. Os marchmallows psíquicos estão nos custando mutio caro, e custarão mais ainda às crianças do futuro que hoje estamos condenando a viver num planeta com um clima dos infernos.
O imperativo sorria! sorria!, imperante na nossa cultura da selfie e que Paula Sibilia analisa em seu livro O Show do Eu, é aquilo que dá alimento sem fim ao nosso cérebro ansioso por marshmallow. Em outra obra magistral sobre o tema, Bright-Sided – Sorria (ed. Record, 2009) Barbara Ehrenreich mostrou as sombrias consequências de uma cultura que impõe o cultivo obrigatório do otimismo e da credulidade de que tempos melhores certamente estão vindo. A esta postura não estão imunes a esquerda, a direita, o centro – todos podem cair no auto-engano reconfortante do otimismo açúcarado e que tem reforços de açúcar diários nos discursos de padres, pastores, aiatolás e outros propugnadores de paraísos de além-túmulo para os crédulos e obedientes.
O otimismo pode ser uma forma complacente de inação: se tudo vai melhorar, posso cruzar os braços e esperar. Ainda que também o pessimismo possa ser imobilizador caso nos conduza ao niilismo da ação, à noção de que não faz nenhuma diferença agir já que tudo já está indo pra casa do caralho e ninguém vai conseguir impedir a catástrofe. Neste cabo de guerra entre pessimismo e otimismo, prefiro afirmar o valor da lucidez, do enxergar claro, da clarividência concreta que autores como Camus, Saramago e Arundhati Roy nos ensinam com rara maestria.
O pessimismo talvez decorra da lucidez com mais necessidade do que o otimismo, já que as informações sobre a situação material-concreta da teia da vida no planeta Terra consumam uma montanha de evidências acerca do tamanho do desequilíbrio e do caos que estamos engendrando. Mas não devemos aderir ao pessimismo-da-vontade, ainda que estejamos necessariamente enraizados no pessimismo-da-inteligência quanto mais nos esforçamos para saber mais sobre a espiral insana de emissões de gase de efeito estufa que ocorre nas últimas décadas e prossegue na atualidade. Escolher de caso pensado, de propósito, não pensar nisto, ser indiferente às gerações de seres vivos que ainda vão nascer, passou a ser hoje um novo paradigma de violação ética alçada à massificação. A nova banalidade do mal.
Com frequência, até mesmo uma esquerda supostamente iluminista e emancipadora tende a reprimir, censurar e amordaçar aqueles que, numa linguagem stalinista, são acusados de “disseminar o derrotismo”. Na União Soviética sob domínio de Stálin, lembra Ehrenreich,
“acusar alguém de disseminar o derrotismo significava condená-lo a muitos anos nos campos stalinistas. Em seu romance de 1968, A Brincadeira, o escritor tcheco Milan Kundera tem um personagem que manda um cartão-postal com a frase ‘o otimismo é o ópio do povo’ e por isso é acusado de ser um inimigo do povo e condenado ao trabalho forçado nas minas de carvão. O próprio Kundera foi punido por ousar escrever o livro e expulso do Partido Comunista, tendo seus livros removidos das livrarias e bibliotecas, proibidio de viajar para o Ocidente…” [7] (EHRENREICH, p. 230)
Os camaradas que se engajam hoje com a causa ecosocialista, tão urgente e necessária, deveriam refletir um pouco mais a fundo sobre a produção de imagens utópicas acerca de nosso futuro (como esta reproduzida acima, de Jessica Perlstein, publicada pelos socialistas democráticos de Seattle). A pré-figuração de uma fantasia irrealizável talvez sirva bem menos a nossos propósitos de revolucionamento do sistema capitalista hoje insanizado do que serviria a produção de imagens mais críveis, ainda que mais distópicas, pois assentadas nas tendências que os cientistas nos apontam sobre nosso porvir. Uma imagem distópica, seja em pintura, em filme, num video-clipe, não necessariamente irá produzir apenas depressão, anisedade e derrotismo, como crêem os ingênuos e como querem nos convencer os arautos do pensamento positivo.
Atualmente, em meus estudos de doutorado, tenho me debruçado sobre estas obras distópicas de ficção especulativa e tenho descoberto que uma pré-figuração sombria pode até parecer gerar um ensombrecimento psíquico, mas que também pode ser um salutar tônico para nossa coragem e nossa lucidez. Acho que Wallace-Wells concordaria. Ele argumenta que, diante da perspectiva de que o aquecimento global torne vastos territórios do planeta praticamente inabitáveis, ainda que hoje pareçam estáveis e com megalópoles funcionando em relativa ordem, exige de nós uma nova retórica, uma linguagem audiovisual renovada, como esta que tem sido ensaiada e experimentada em tantos de nossos “pesadelos cinematográficos”: “A única linguagem efetivamente apropriada é de um tipo que fomos treinados, por uma cultura exuberante de otimismo festivo, a desprezar, de modo categórico, como hipérbole.” [8] (p. 43)
Dr Strangelove, de Kubrick, ou Snowpiercer, de Bong Joon-Ho, são duas obras-primas do cinema distópico, pré-figurador de um péssimo possível, que não podem ser devidamente enxergados, ouvidos e levados a sério por aqueles que foram colonizados por posturas good vibes only. Ainda que, desprezá-los desta maneira, como se fossem apenas hiperbóles, falsificações pelo exagero, construções de fantasia da guerra nuclear que se temia entre EUA e URSS durante a Guerra Fria, ou dos processos de extinção da humanidade que conduzem nossos poucos remanescentes a habitarem um único trem cujos trilhos são um loop infindável através de uma nova era glacial, seja o equivalente a dizer, de maneira equivocada, que esta arte só mente, e que figuras como Kubrick e Joon-Ho não passam de insanos profetas do apocalipse que deveriam ter tomado mais Prozac ao invés de ficarem fazendo filmes assim.
Cegar-se à arte distópica que lida com “o tempo da catástrofes” (Stengers), hoje equivale a confinar-se na caverna da ignorância voluntária. Equivale a não querer comunicar-se com alguns visionários que tentaram materializar em suas obras uma antevisão sinistra das Devastolândias do Porvir , numa pré-figuração que não é para nos conduzir à passividade, mas sim para nos convocar à ação e à luta.
Estaremos tão melhor equipados para enfrentar a crise global inevitável que está sendo propulsionada pelas mudanças climáticas quanto mais pudermos desenvolver uma lucidez clarividente e uma fortaleza de vontade e ânimo que nasçam não do ópio dos otimismos baratos, mas sim da percepção de que nenhuma salvação virá da Providência (“ela não mora mais aqui”, como canta-se na canção esplêndida do Antemasque) nem do Mercado, nem nenhum deus ex machina virá dos bilionários ou de presidentes – precisamos de todes, nos territórios da Terra, conexos numa nova Internacional que coloque a salvação concreta e material do que nos é comum acima de todos os delírios da grana e do poder. Precisamos de todo mundo e precisamos já. O Planeta A não pode esperar.
NOTAS – BIBLIOGRAFIA, LINKOGRAFIA, SONOGRAFIA
[1] https://jacobinmag.com/2022/02/elon-musk-spacex-brownsville-south-texas
[2] [3] [4] WALLACE-WELLS, A Terra Inabitável. Cia das Letras, 2019, p. 59, 98, 17.
[5] RUSSO, Renato. “Quase Sem Querer”. Em: Legião Urbana II.
[6] KRZNARIC, R. Como Ser Um Bom Ancestral. Zahar, 2021, p. 197.
[7] EHRENREICH, B. Sorria. Ed. Record, 2009, p. 230.
[8] WALLACE-WELLS, op cit., p. 43
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Publicado em: 06/05/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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