EPÍGRAFE
“A música é a língua materna de Deus
Foi isso que nem católicos nem protestantes entenderam:
Que em África, os deuses dançam
E todos cometeram o mesmo erro:
Proibiram os tambores.
Na verdade, se não nos deixassem tocar os batuques
Nós, os pretos, faríamos do corpo um tambor
Ou mais grave ainda
Percurtiríamos com os pés sobre a superfície da terra
E assim, abrir-se-iam brechas no mundo inteiro…”
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ÁLBUM DE ESTRÉIA DA BANDA MUNDHUMANO: DECIFRANDO SEUS SIGNIFICADOS
Por Eduardo Carli pr’A Casa de Vidro.com, Dezembro de 2022
“Ter coragem é ter coração / Nosso bonde é da união / Uma sobe e puxa a outra. / Pra ter manas pretas protagonistas / Afronta, enfrenta, agarra, conquista / Tudo em volta se fortalece.” – Guerreiras Urbanas
Se a Cultura não é estática, se está sendo sempre dinâmica – ou seja, se a ela se aplica o “eterno transformar” que Mundhumano nos canta em “Senhor do Tempo” – então é preciso perguntar: que tipo de acontecimento está em processo com a chegada de Deuses Que Dançam da Mundhumano?
O álbum – lançado pela Empadão Goiano, recentemente impulsionada pelo Gomez e sua galera em evento no Circo Lahetô, com show da Francisco El Hombre e abertura da aqui celebrada banda Mundhumano – chega para catalisar uma espécie de insurgência cultural decolonial, afrodiaspórica, neo-pagã, reinventora da tropicália, que chama orixás e guerreiras urbanas para um cyber-terreiro.
No cenário local, a banda vem ressoando em vários espaços: no supracitado Lahetô, não apenas abriram com muito suingue e presença para o Francisco El Hombre, mas também, em outra ocasião, somaram-se aos Passarinhos do Cerrado e ao DJ Bruno Kaveira para a festa final da Anpof. Pela cidade, vem tocando muito pelas casas culturais: frequentes ensaios e tocadas n’A Casa de Vidro e shows sempre ferventes no Aruá, no Abrigô, na Clandestina, no Shiva, no projeto Cidade Viva etc. Também realizaram parcerias com a Escola de Samba Lua-Alá para o samba-enredo “Respira” e participaram de festivais como o Goiânia Noise, o Encontro de Culturas Negras do IFG, o Vaca Amarela, o Bananada, o Confluências (que a gente aqui d’A Casa de Vidro organiza), dentre outros.
Banda que parece ser “busca sem fim” pela batida perfeita, pela letra certeira, pelo groove irresistível, batalha e trabalha muito – A Casa de Vidro é testemunha dos ensaios cotidianos que abrilhantam semanalmente o ponto de cultura em Goiânia. O sexteto está “no rala” há mais de 10 anos, exalando resiliência e colaborando com a cena e seus integrantes transitam por vários projetos:
Kleuber Garcez (violonista e compositor) também integra a Pó de Ser ao lado de seu parcerio Diego Mascate; o baterista e percussionista Danilo Rosolem, aka Qonan Beats, têm farta atuação como ritmista em projetos como Vida Seca; Janaína Soldera, a Nina, também participa do Mulheres na Roda de Samba e tem uma atuação crucialmente relevante no campo do ativismo vinculado às políticas públicas culturais; o timaço é completado pelo guitarrista César Faleiro (integrante do Caboclo Roxo e do Coró de Pau, duas importantes entidades da cultura popular goiana), flautista Pedro Verano (que melodiza também com Umbando e vários outros grupos) e o baixista Lenza, outro que se aventura por outros projetos como Yas & The High Groove…
Mas não é só como expressão da vitalidade do cenário musical alternativo da Grande Goiânia que vale a pena este acontecimento Deuses Que Dança: eis um álbum que deveria interessar não apenas aos que acompanham com gosto o cenário musical goiano – mais que isso: uma obra que seria bacaníssimo se os brasileiros em geral descobrissem, nela se inspirassem. Com seus densos grooves, sua ambiência afrodiaspórica, com suas sonoridades que fazem confluir o Caribe e o caribó, com letras de poética densa e raízes no chão bem fincadas, Mundhumano convida-nos a pensar além dos horizontes habituais, rumo a um mundo onde o amor fosse deveras a “pedra fundamental”.
A canção inaugural, “Pedra Fundamental”, que antes já havia sido gravada por Luciana Clímaco e lançado no álbum dela, é um abre-alas esplêndido pros Deuses Que Dançam: o ouvinte já começa ouvindo a confissão, cantada por Nina, de que já foi expulsa do paraíso por ter comido o fruto do pecado original – a afirmação inicial de um “estou na linhagem de Eva” insere o disco numa chave subversiva, questionadora: algumas canções à frente, em “Voz de Todas As Línguas”, Nina fará um jogo vocal arriscado e fascinante através da distinção meu/teu – o “eu” que nos fala e que apela por nossa atenção nesta sofisticada composição é um eu que se endereça a alguém para criticá-lo, com uma verve pontiaguda: “a minha voz é rasgada, e a sua é de lã” e “sua voz, batizada, e a minha é pagã” são dois versos maravilhosos, de rimas ressonantes e de sentido muito bem transmitido.
A Mundhumano coloca-se em campo para rasgar o verbo, desconstruindo o patriarcado e descosturando o imperialismo, num grande baile da decolonialidade em transe de recriar o humano mundo. Isso tudo é Mundhumano: a trilha sonora para quem quer a onda do neopaganismo afrodiaspórico e afrofuturista, com um groove feito para nos conectar com cosmos e tudo nele – inclusive… “O Espelho das Águas”:
A humanidade como única nação, oni-inclusiva e que chama pra dentro toda a galera moçambicana, todo o povo quilombola, para um bailão na “lusitana Angola” e para uma batucada em “samba Pindorama” – eis a Nação Mundhumana. Que se manifesta em um de seus mais belos clímaxes no final – a partir de 3 min. e 22s do fonograma – de “Espelho das Águas”, uma pérola Iemanjística-xamânica.
MUNDHUMANO, se vocês querem um quadrado onde metê-los, um rótulo onde enquadrá-lhos, é evidentemente “MPB” – mas é aí que mora o perigo: eles não conjugam como a maioria esta sigla. Pra Mundhumano MPB é Música Preta Brasileira. É pôr a música brasileira em estado de transe afrodiaspórico. É a MPB acelerando para um porvir afro-futurista, deixando a cultura supremacista a ver navios. Com Deuses Que Dançam, Mundhumano pousa com fino trato no cenário indie brasileiro (e além: cai no mundo da world music, repleta de obras-primas recentes).
Mundhumano integra-se a um cenário hoje agitado por Luedji Luna, Bia Ferreira, Doralyce, Josyara, Nath Rodrigues. A banda também participa de um cenário de tropicaliências, de quentes afrolatinidades, que inclui o Francisco El Hombre, a finada Baías e a Cozinha Mineira, o Abracaxepa, o Aláfia, o Amplexos. Nesta banda também, parece-me que pulsa um espírito que põe em comum e irmana a Mundhumano com “entidades” da nossa cultura como Leci Brandão, Margareth Menezes, Beth Carvalho, Rita Beneddito, Juçara Marçal e Metá Metá…
E foi justamente que com uma single fervente chamada “Guerreiras Urbanas” que a banda lançou-se ao cenário, vindo participar cada vez mais intensamente desta cena efervescente hoje protagonizada por Carne Doce, Boogarins, Chá de Gim, Terra Cabula e Diego Mascate…
“Guerreiras Urbanas” faz um apelo irresistível, no seu beat afro e seu diálogo com um rap esperto, pelo protagonismo das pretas que “com sagacidade tamanha”, “de coque, de black, de dread nos cabelos encaracolados e multicoloridos”, botam pra quebrar no Matriarcado de Pindorama. Aqui, a melanina acentuada é positivada como beleza indomável – ao avesso do que ocorre em Medida Provisória, o filme distopia do Lázaro. Com participação das excelentes cantoras Conceição (do Retalha) e Flávia Carolina (do Ave Eva), a canção festeja o bonde da união e do fortalecimento mútuo.
“Questão de Gênero”, apresentada pela banda no Festival Juriti de Música e Poesia Encenada, onde consagrou-se vencedora do primeiro lugar segundo o júri de especialistas, mostra a Mundhumano antenadíssima com as pautas, lutas e debates envolvendo a galáxia LGBTQIA+:
Em “Voz de Todas as Línguas”, a guitarra de Cesinha irrompe parecendo com os Strokes. Velha conhecida de quem está antenado com o cenário goiano, a canção é o cosmopolitismo afrodiaspórico que questiona os vários deuses vinculados aos humanos de vários territórios. Como uma voz poderia ser de todas as línguas? “Minha voz é rasgada e a tua é de lã / Tua voz batizada… e a minha é pagã.” Aqui, o paganismo é positivado e a voz “batizada” e cristã é colocada não num lugar de abjeção, mas em um contraste.
Qual deus é o teu? Um deus estático ou um deus dinâmico? Um deus que aprecia carnificinas ou um deus que prefere festivais? Um deus que exige sacrifícios ou um deus que quer seu devotos em transe? Há várias possibilidades em aberto no leque amplo aberto pela groovera Mundhumânica, mas restam poucas dúvidas de que esta banda toma partido: por Dionísio/Baco, por Exu, por um certo Zaratustrismo Nietzschiano. Os Mundhumanes só poderiam crer num deus que dançasse.
A Música decerto se insere na Cultura como parte dentro do todo. Mas esta parcela pode fazer irradiar pelo todo que ela integra um tsunami de renovação. No caso da Mundhumano, o que sentimos é a irradiação de uma cosmovisão que confronta o ideal ascético judaico-cristão, que celebra os terreiros e seus balanços maneiros. Xamãs, griôs, “sagrados parangolés”, tudo está no caldo da celebração. Janaína Soldera lidera a festa com desenvoltura e densidade.
Na era da Spotifyzação do consumo de música, onde cada vez mais os ouvintes escutam singles esparsas ou apenas fragmentos de canções, tem se tornado mais rara a vivência de pôr um disco inteiro para ouvir de cabo a rabo. Ao escrever esta última frase me dei conta de que ela mesma já vai ficando anacrônica com o progressivo desaparecimento do disco enquanto objeto físico: muita gente não tem nem mesmo aparelho para tocar CD hoje em dia. Mas Os Deuses Que Dançam é um álbum que chega em 2022 para propor a re-valorização de uma experiência des-valorizada: a de escutar atentamente um álbum na íntegra, percebendo sua conceitualidade, a escolha de seus fluxos, a ordem de suas faixas, as transições entre as músicas, o modo como as palavras, versos, estrofes se sucedem.
Ainda há muito a dizer, mas agora prefiro me calar e só convidar: escutem o álbum de cabo-a-rabo e também no shuffle. Deixem-se encantar por este rolê excitante que Deuses Que Dançam propicia por uma Cultura outra, que está convocando os orixás e abrindo pontos para a Latinoamerica fecundar nossa MPB. Mundhumano é o estrondo – por enquanto ainda semi secreto… que começa a tornar-se socialmente mais audível… que talvez entre em erupção?… – que faz uma cultura que está sendo renovadora, transgressiva, decolonial, desconstruída, aberta o novo, ao inédito, ao inaudito… O groove da Mundhumano engrossa o caldo da afrolatinidade e das sabedorias diaspóricas e dissidentes.
OUTRAS MÍDIAS:
DIÁRIO DA MANHÃ
A MPB não tem fim. Pra ela vale o dito de Nêgo Bispo: a MPB tem começo, meio e… começo (saiba mais qualé em acasadevidro.com/nego-bispo/).
A Mundhumano é a Música Preta Brasileira requebrando caminhos para provar que a MPB não finda tão cedo de inventar novas formas. Inclusive inéditos jeitos de se ancestralizar enquanto se segue sendo futurível. Alquimia estética digna de figurar no ápice do festival com temática “Sentidos” (no plural e na polissemia). Na esteira de Caetano e Gil, de Elza e Itamar, Mundhumano vai trilhando uma das trajetórias artísticas mais admiráveis.
Com a responsa de fechar o 17º Festival de Artes de Goiás do IFG, o sexteto goianiense fez efervescer o baile no Mercado Municipal nas terras de Cora. E até o Rio Vermelho mais rubro ficou ao ouvir esta canção, composta por Kleuber Garcez, “Voz de Todas as Línguas”, gravada antes pelo Triêro, e depois como uma das músicas do “Deuses Que Dançam”, álbum inaugural da banda.
Já calejada na cena, a Mundhumano demonstra no palco os efeitos de sua práxis Caetano Velosística – com certa frequência, a banda apresenta o espetáculo CAETANO PRETO. Também nas crias próprias, Mundhumano fala caetanês (e pretuguês, saravá Lélia Gonzalez) com rara dicção na cena goiana.
Assim sendo, vale enaltecer a curadoria do festival por ter percebido a importância da Mundhumano na cena artística goiana, escalando-a como headliner. Outra boníssima jogada é a escalação do Terra Cabula para o Encontro de Culturas Negras, que a mesma instituição (IFG) realizará em Uruaçu em Dez. 2024.
Fechando a programação musical do Festival de Artes de Goiás, que recebera nas noites anteriores Lamparina (MG), Vida Seca, Grupo Por Quá, Débora de Sá (GO), dentre outras atrações, Mundhumano demonstrou que é a entidade suprema da música afrodiaspórica em Goiás.
Uma estética contracolonial, que confronta sem perder o groove, que protesta sem deixar por isto de fazer requebrar, fervilha no caldeirão sônico da bandaça composta pelo mago ritmista Danilo Rosolem (Qonan Beats), o contrabaixista R. Gomes (ex-Francisco El Hombre) , o guitarrista Douglas Sá, o flautista P. Verano, além de Kleuber Garcez no violão e Nina Soldera na voz.
E que voz! Intérprete de rara expressividade, Nina – que além de cantora também é atriz (Cia. Djambalau) e gestora cultural – faz de “Voz De Todas As Línguas” esta raridade: uma obra-prima da performance vocal vem se somar a uma pérola poética, o verbo e a voz se irmanam e entre elas circula o maior axé.
É letra questionadora e questionativa, ativando questões históricas, sondando mistérios religiosos, lançando-nos à Diáspora e seus dramas, construindo as sempre reconstruídas pontes entre o Brasil e a África, dois gigantes irmanados na maravilha e na miséria.
A poesia da canção trabalha com a oposição entre a “voz batizada” e a “voz pagã”, enfatizando a oposição sagrado e profano; e o mais interessante é que a postura de Nina, e as próprias inflexões da letra de Garcez, parecem chamar para uma perspectiva de re-valorização do profano e do “paganismo”.
A “voz rasgada”, que Nina Soldera faz bem, discípula de Elza Soares, contrasta com a “voz de lã” dos angelismos judaico-cristãos. Sem falar em Babéis, gingando pra fora da mitologia dominante, a Mundhumano faz aqui uma canção-viagem, meio de transporte para o cerne da Diáspora e seu cortejo de horrores e mesclas.
Embarcações lotadas de pessoas escravizadas e famintas, cruzando oceanos como mercadorias, bestas de carga, inventaram em Pindorama tantas Áfricas, de tantas línguas e culturas, e ninguém entenderá nada que preste da MPB – inventiva música que não finda – sem pensá-la mergulhada na Diáspora, filha bastarda-pagã da trepada monumental entre Europa, África e América – onde as duas últimas figuram muito mais como estupradas e espoliadas, enquanto a Europa, seus senhores, foi a tirana escravizadora, extrativista, opressora.
Mundhumano é música amefricana do Cerrado, e eis neste vídeo (com câmera e som direto de Eduardo Carli, que também é o autor de um artigo sobre a banda publicado em A Casa de Vidro: acasadevidro.com/mundhumano/) está plasmado um material audiovisual mó massa, óia só: propicia acesso à experiência singular deles, os Mundhumanes, evocando Zumbis e Jorge Bens, artistas em carne-viva, expressando-se coletivamente nesta que é uma das mais belas e dilacerantes canções goianas já compostas.
“Qual deus
que me deixou aqui
nessa terra tão longe
à míngua?
Olha eu sou neguinha
vim da embarcação
voz de todas
as línguas.
Faca cega,
fé amolada
minha voz é rasgada
e a tua é de lã
Faca cega,
fé amolada
tua voz batizada
e a minha é pagã…”
Txt: @educarlidemoraes, Goiânia, 30/11/2024
Publicado em: 09/12/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia