por Eduardo Carli para A Casa de Vidro
Rio de Janeiro, Agosto de 2022
“Eu grito por liberdade, você deixa a porta se fechar
Eu quero saber a verdade, e você se preocupa em não se machucar
Eu corro todos os riscos, você diz que não tem mais vontade
Eu me ofereço inteiro, e você se satisfaz com metade
É a meta de uma seta no alvo
Mas o alvo, na certa não te espera
Então me diz qual é a graça
De já saber o fim da estrada
Quando se parte rumo ao nada?”
MOSKA – “A Seta e o Alvo” [click e acesse o clipe]
Na noite de seu aniversário de 55 anos, Paulinho Moska parecia estar em estado de graça sobre o palco do Circo Voador/RJ. Era a minha primeira vez naquele templo da cultura alternativa brasileira, que eu antes conhecia apenas a partir de documentário, reportagens, fotografias e lendas. O showzaço acachapante de Moska e banda garantiram uma noite das mais memoráveis sob a lona deste circo que nos leva a voar nas asas da cultura. Em meio à fervilhância dos bares e ruas que rodeiam os Arcos da Lapa, dando um intervalo nas atividades do Clio-Psiquê da UERJ que me trouxe ao Rio, pude testemunhar O Cara ao vivo pela primeira vez, apesar de ser admirador de longa data de seu trabalho. A admiração só aumentou.
Considero Moska uma das figuras de maior relevância da música brasileira atual não só pelas virtudes inerentes à sua sólida discografia, não só pela indubitável beleza de tantas de suas canções, não só pelo lirismo fascinante de sua poesia muitas vezes Cazuzística. Admiro nele também o articulador de forças, o “diplomata” do pop, o fato de ser um sujeito altamente colaborativo, extremamente simpático, aberto a vínculos variados, capaz de conexões de amplitude impressionante (atualmente, a parceria firme é com Zélia Duncan, um par ímpar pelos palcos do mundo). Para além de excelente cantor e musicista, Moska é ator, performer e agitador cultural de primeira importância. Como provam as séries Zoombido – que já lançou cerca de 80 videoclipes com preciosos duetos – e Tu Casa Es Mi Casa – uma produção da HBO que revela Moska como âncora de trips pela América Latina que fazem confluir as artes e as ciências.
Em estado de rara exaltação, eu sentia entusiasmo saindo de todos os poros ao adentrar o Circo Voador, em meio àquela aglomerada e empolgada platéia ali reunida para berrar a plenos pulmões “Nenhum Direito a Menos” (escrita por um de nossos melhores compositores folksters de canções-de-protesto, o Carlos Rennó) ou para cantar em coro hits como “Pensando em Você” (nesta ocasião, interpretada em dueto com a jovem cantora Nina Fernandes, responsável também pelo show de abertura). Ciente da raridade destes instantes, tentei filmar quase tudo que pude para levar na mala, de volta pra Goiânia, escondido num minúsculo cartão de memória, algumas lembranças que eu queria não só inolvidáveis mas compartilháveis.
Moska faz um show estrondoso e exuberante, evocando a sabedoria de William Blake, inimiga da contenção e da temperança. Catártico, celebratório, com uma pegada rocker sobressaindo mais do que a serenidade folk de que ele também é ultra-capaz, o show deixou-me uma marca indelével. Decidir se foi meramente memorável ou absolutamente inesquecível é tarefa que cabe ao Tempo definir. Sei que foi um show de peso, liderado por um artista que no palco parecia leve como uma pluma ao vento, esvoaçante como um Pan. Há poucos jovens de 15 ou adultos de 25 e conseguem esbanjar tanta vitalidade quanto este senhor que agora encaminha-se para os 60.
O marco de translação – vulgo níver – contou com parabéns em coro da galera presente ao Circo Voador abarrotado, e participação especial da sambista ponta-firme Mart’nália animando a festa, e reverenciando a maestria de Moska – sempre aberto às parcerias e colabs. A banda, afiadíssima, deixou o espetáculo com todos os ingredientes necessários para agradar aos roqueiros sem deixar de encantar a platéia mais afinada à MPB ou ao samba. O álbum de 2018, o esplêndido “Beleza e Medo”, é o foco das atenções, é a maior dádiva dos músicos ao público, e aquele disco é honrado live com versões altamente comovedoras como esta de “O Jeito É Não Ficar Só”:
“Alguma coisa acontece de repente / E muda tudo, nunca fica como está / Qual a receita pro melhor ingrediente / Quando o vazio já transborda sem parar? // A cada noite vou ficando transparente / E minha sombra não consegue me encontrar / Como é que tudo acaba assim tão de repente? / Não vejo mais o horizonte a se dobrar // Mas pra quê morrer hoje / Se amanhã eu estarei melhor? / Viver pra sempre ninguém pode / O jeito é não ficar só… / O mundo está se transformando diferente / Do que a gente costumava imaginar / O mal agora nos ataca pela frente / E pelas costas continua a provocar / Nenhuma droga já me é suficiente / Nenhum remédio é capaz de me curar / Nenhum discurso me parece coerente / Nenhum amor está disposto a me amar // Mas pra quê morrer hoje / Se amanhã eu estarei melhor? / Viver pra sempre ninguém pode / O jeito é não ficar só… “
Moska homenageia Lô Borges, Milton Nascimento e o Clube da Esquina em uma releitura robusta da canção “Girassóis da Cor do Seu Cabelo”, e na próxima música já está soando como Jeff Buckley ou homenageando Cazuza com um blues. Toca uma canção de seu filho, celebrando que a Musicalidade e a criatividade artística tem corrido soltas no sangue da família, e logo está fazendo homenagem póstuma ao técnico de som que longe de ter sido meramente o subordinado, o roadie pau-pra-toda-obra, é considerado um membro de sua confraria de broders e é honrado como um grande amigo com quem viajou o mundo afora.
Afinadíssimo com as latinidades, parceiro de Fito Páez (com quem gravou o belo álbum Locura Total) e de Jorge Drexler, tecedor de teias com artistas argentinos e uruguaios, Moska convida o público a conhecer a cultura multifacetada de nuestros hermanos.
O Brasil já foi escrito como um gigante que olha para Europa em quanto fica de costas para América Latina. Este euro-tropismo, herança da colonização, é certamente limitante e mesquinho. Moska é um dos maiores artistas que não vira a nuca para o Chile, para a Argentina, pro Uruguai, pro Peru, pra Bolívia, pra Venezuela etc. Está aberto às colaborações com os latinoamericanos e atenta a todas as belas canções do continente, tentando captar a atenção e o amor dos brasileiros para a produção musical sulamericana – como fez com sua versão belíssima para “A Idade Do Céu” de Drexler.
A letra desta é uma tradução quase literal da original em espanhol, mas com algumas sagazes soluções em português pra versos que precisam de um trabalho mais complexo do tradutor para o bem-sucedido transporte do sentido. “Broma de Diós” vira literalmente “uma piada de Deus”, mas o verbo espanhol latir, que evocaria entre nós os sons emitidos pelo aparelho fonador de um cão, é elegantemente transposto para “pulsar”: “somos um breve pulsar / em um silêncio antigo com a idade do céu” etc. Existem poucas canções mais belas sobre a efemeridade da vida humana em contraste com a incalculável “idade do céu”. É uma lição de vida sobre nossa pequenez em meio à grandiosidade acachapante do cosmos.
É lindo o verso que afirma que não somos mais do que um capricho do Sol no Jardim do céu. Em outra Bela elaboração cosmológica da presença humana no real, “O Jardim do Silêncio” – de onde tiramos o título deste texto – afirma a a dinâmica imparável de composição e decomposição que nos atravessa. Somos compostos que serão decompostos. A Natureza é uma grande compositora e faz suas sinfonias e concertos em nossos corpos. São músicas que tocam aquela vibe que também Lenine sondou em belíssimas canções como “O Silêncio das Estrelas”. Moska filosofa sobre o vir-a-ser, o tudo flui, afirmando-se como um móbile no centro de um furacão e recusa as calmarias pois nelas só sente solidão.
Nós que amamos a Música sabemos que, para além de ser a arte de combinar sons e silêncios, para além do equilíbrio dinâmico a ser forjado entre ritmo, harmonia e melodia, para além da maestria ou virtuosidade na manipulação de instrumentos musicais, ela é sobre a nossa vida. Está para além das entremesclas dos sons e palavras, das sucessões e consonâncias entre beats e acordes, pois é manifestação vital e está muito longe de ser um “inutensílio”, como diria Leminski.
A Música é sobretudo expressão da vontade humana de comunicar significado e beleza diante dos mistérios e desafios de estar provisoriamente vivo, feito “um móbile no centro de um furacão”. O contato com a obra e com a presença performática de Moska transcende o mero fruir estético de belos sons, a mera decifração de letras poeticamente interessante.
Ao contrário de Raul, ele não é uma mosca na sopa, incômoda e irritante, mas uma mosca voadora que encanta por sua capacidade de entrar, como fez no Circo Voador em Agosto/22, apesar dos horrores de nossa época que ele expôs bem à Carta Capital, num estado de graça. Mais raro ainda, Moska não guarda para si: no caso dele, o estado de graça transforma-se em pequena epidemia. Ele esbanja aquela sábia vitalidade que nos ensina a afirmar com júbilo a existência como ela é, ou seja, precária, efêmera e cheia desta entremescla entre Beleza e Medo (para lembrar do esplêndido álbum que lançou em 2018 e que merece ser re-ouvido e re-apreciado). Faz tudo isto fazendo explodir, com auxílio de excelente banda, uma música irrecusavelmente potente dos amplificadores, injetando assim em nossos corpos um influxo de energia salutar para o enfrentamento da vida e da morte em suas entrelaçadas dinâmicas.
Mais vídeos em breve
DISCOGRAFIA – PAULINHO MOSKA:
SHOW DE ABERTURA:
APRECIE TAMBÉM: SITE OFICIAL DO MOSKA – ENTREVISTA PRA CARTA CAPITAL – SOBRE A SÉRIE “TU CASA ES MI CASA” – PLAYLIST DO SHOW NO CIRCO VOADOR NO CANAL A CASA DE VIDRO.
Publicado em: 15/12/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia