Ainda que sejam classificáveis no mesmo gênero fílmico, as ficções científicas Moonfall – Ameaça Lunar e Io: Último na Terra não poderiam estar mais distanciadas na maneira como abordam os cenários catastróficos. Estes dois disaster movies não poderiam ser mais antagônicos no tom que cada obra adota para descrever nosso mundo em escombros e as atitudes recomendáveis no intento de regenerá-lo.
O que Moonfall tem de bombástico e exagerado, Io tem de contido e sutil. Moonfall é todo gigantismo e pretensão, enquanto Io tem uma modéstia low-key. Se fôssemos comparar com gêneros musicais, Moonfall seria rock progressivo (não é à toa que o próprio poster faz uma brincadeira com o álbum o Pink Floyd, The Dark Side Of The Moon) e Io seria algo muito mais afim ao indie folk de Sharon Von Etten ou Father John Misty (que são dois cantores-compositores atentos às problemáticas da crise planetária vinculada ao colapso climático).
Poderíamos dizer que o apocalipse, em Moonfall, faz um estrondo da porra e nos faz sair do cinema com os sentidos extenuados devido à super-excitação e ao excesso de estímulos. Enquanto que em Io o clima que fica conosco após os créditos finais é o de ter lido um poema triste de algum autor que se suicidou, um contexto afetivo que lembra os famosos versos de T. S. Eliot: “This is the way the world ends, not with a bang but with a whimper”.
Dirigido por Roland Emmerich, cineasta nascido na Alemanha que se especializou em criar arrasa-quarteirões de catástrofe como Independence Day (1996) (e sua sequência de 2016), Godzilla (1998) e O Dia Depois De Amanhã (2004), este blockbuster catastrofista Moonfall é a mais expressiva sugestão, no ano de 2022, da resiliência de mercado das desgraças embaladas como espetaculosas mercadorias. Um sinal de que o capitalismo do espetáculo, ou seja, a indústria do entretenimento baseada no molde Hollywoodiano, deseja seguir lucrando com a transformação de destruições em mega-escala em shows que vendem muitos ingressos, pipocas e cocas-colas.
Já Io, com direção de Jonathan Helpert e disponível na Netflix, há um clima de melancolia e desolação que talvez explique suas más avaliações no Tomatômetro (onde ele tem apenas 33% e é certificado pelo Rotten Tomatoes como comprovadamente podre), ainda que seja um filme com muitos méritos estéticos e políticos. Io não vende a pipoca caramelizada do otimismo, nem faz como Moonfall a apologia de um sacrifício heróico capaz de salvar o mundo na hora H.
Io tem mais a ver com obras-de-arte que expressam melancolia diante da devastação e do sem-sentido da trajetória humana quando esta chega a uma rua-sem-saída: tem mais a ver com o romance e filme The Road, com o flerte de Abel Ferrara com o tema da última noite antes do apocalipse (4:44 – O Fim do Mundo, de 2011), ou com a canção do suicidado rock star grunge do Soundgarden e Audioslave, Chris Cornell, que em seu álbum solo inaugural Euphoria Morning compôs esta pérola chamado “Preaching The End Of The World”:
Io é protagonizado por uma jovem cientista chamada Samantha Walden (interpretada por Margaret Qualley, a mesma da série Maid). Ela é filha de um cientista – o Dr. Walden – que defendeu a permanência da humanidade no planeta Terra enquanto os foguetes decolavam para levar o que restou dos humanos para uma das luas de Júpiter chamada Io – trata-se da missão Exodus, anunciada com o slogan “nosso destino são as estrelas”. Os Walden recusam a diáspora intergaláctica para permanecer no território terrestre pesquisando meios para regenerar a waste land em que nosso planeta se transformou com a concretização geral do fenômeno que David Wallace-Wells explora em seu A Terra Inabitável.
Confinada em um enclave onde ainda consegue cultivar vegetais em estufas e filtrar água usando carvão e areia, Sam Walden está confinada a um angustiante isolamento na Terra já quase sem vida, onde quase todos os locais onde se vai exigem o uso de máscaras e respiração artificial. O sobrenome Walden provavelmente se refere à famosa cabana no bosque onde Henry David Thoreau buscou viver on the fringes de uma sociedade que ele via mergulhada nas devastações produzidas pela centralidade do dinheiro.
Io é todo sobre a relutância de Samantha, vulgo Sam, em abandonar a Terra, por mais devastada que esta esteja. Ela tenta criar uma colônia de abelhas mutantes que fossem capazes de polinizar a terra tornada tão tóxica. Mas os fenômenos climáticos extremos seguem jogando seus planos no lixo até que ela grite no puro desespero dos derrotados diante do beeapocalypse final que o filme narra neste pequeno enclave de esperanças mortas. Uma abelinha sobreviverá para nos dar um fiapo de luz de esperança.
O filme constrói um suspense baseado em uma premissa básica: ela e seu aliado Micah irão conseguir, viajando em um balão de hélio, chegar a tempo para o lançamento dos últimos foguetes que vão sair deste planeta em direção a Io? Ficamos o filme todo nos perguntando se Sam e Micah vão de fato abraçar tardiamente a missão Exodus e abandonar para sempre a Terra. Mas o filme, apesar de utilizar-se deste recurso narrativo que eu chamaria de “o princípio da ampulheta”, ou que poderíamos chamar de contagem regressiva, não tem nada de correria, de frenesi, de ação.
Sam fica cada vez menos animada com a perspectiva de uma Ilíada intergaláctica pois seu namorado Elon, que já está em Io e com quem ela conversa através de cyber-cartas, anuncia-lhe que está se mandando numa missão de colonização de um planetinha com potencial de ser uma segunda Terra. Elon vai ficar pelo menos uma década e alguns anos-luz de distância dela. Sam viajaria e não encontraria do outro lado o calor humano de Elon, e ainda mais estaria longe dos túmulos de seus pais.
Melancolicamente fascinada por mitologia e arte, Sam é mais atraída pelos escombros de bibliotecas e museus de arte do que pelos foguetes da missão Exodus. Tem um fascínio especial pelo mito de Leda e o Cisne, tal como representado na pintura de Paul Cezanne e na poesia de Yeats. O forasteiro em um balão de hélio, Micah, que um dia havia se preparado para ser um professor, mas havia uma pedra – ou melhor, um apocalipse – no meio do caminho, explica a ela a respeito de mitos clássicos – inclusive o mito da humanidade andrógina veiculada por Aristófanes no Banquete platônico. Fascinada pela beleza de velhos mitos enquanto os esforços da ciência se mostram infrutíferos, Sam gasta seus últimos minutos antes dos últimos foguetes partirem para Io folheando livros ilustrados sobre mitologia antiga e talvez fantasiando com seu próprio improvável destino como nova Eva, com Micah sendo persuadido a ser um Adão negro.
A sudden blow: the great wings beating still
Above the staggering girl, her thighs caressed
By the dark webs, her nape caught in his bill,
He holds her helpless breast upon his breast.
How can those terrified vague fingers push
The feathered glory from her loosening thighs?
And how can body, laid in that white rush,
But feel the strange heart beating where it lies?
A shudder in the loins engenders there
The broken wall, the burning roof and tower
And Agamemnon dead.
Being so caught up,
So mastered by the brute blood of the air,
Did she put on his knowledge with his power
Before the indifferent beak could let her drop?
1923
Source: The Collected Works of W. B. Yeats (Macmillan, 1989)
LEDA E O CISNE
Um baque súbito. A asa enorme ainda se abate
Sobre a moça que treme. Em suas coxas o peso
Da palma escura acariciante. O bico preso
À nuca, contra o peito o peito se debate.
Como podem os pobres dedos sem vigor
Negar à glória e à pluma as coxas que se vão
Abrindo-o e como, entregue a tão branco furor,
Não sentir o pulsar do estranho coração?
Um frêmito nos rins haverá de engendrar
Os muros em ruína, a torre, o teto a arder
E Agamênnon, morrendo.
Ela, tão sem defesa,
Brutalizada pelo abrupto sangue do ar,
Se impregnaria de tal força e tal saber
Antes que o bico inerte abandonasse a presa?
Trad. Augusto de Campos.
em: Coisas e anjos de Rilke, 1ª ed, Perspectiva, 2001, p. 176-177.
Poesia da recusa, Perspectiva, 2011, p. 184-185.
No Cinegnose, Wilson Ferreira propôs uma excelente sinopse da obra (que também analisou com sagaz tato geopolítico): “O que há em comum entre Musk, Bezos, Thiel e Zuckerberg? Além da fortuna e dos fundos de investimentos turbinando seus projetos, está o niilismo apocalíptico e a urgência de fugir desse planeta, seja para colônias em Marte ou para Multiversos. Nove em cada dez produções sci-fi atuais está alinhada com a agenda desses super-ricos. E a exceção confirma a regra. Uma das poucas exceções é o filme “Io – O Último na Terra” (Io – Last on Earth, 2019), o filme mais anti-Musk dos últimos tempos. Uma cientista vive solitária na Terra pós-apocalíptica, dominada por uma nuvem tóxica que matou grande parte da humanidade – os sobreviventes migraram para uma estação espacial na lua de Júpiter Io. Seu namorado em Io (ironicamente chamado Elon) tenta convencê-la a embarcar na última nave que partirá da Terra. Porém, entre colmeias de abelhas e obras de arte que pega dos escombros de um museu de Arte Moderna, tenta provar que a vida no planeta é mais resiliente do que imaginamos. E somos os guardiões do renascimento.“
Já Moonfall até tem imagens impressionantes de grandes metrópoles sendo invadidas pela água devido à mudança de órbita da Lua, que no filme está em rota de colisão com a Terra. Tem também algumas “viagens” bem doidonas a respeito do conflito entre inteligências artificiais que poderia estar na raiz das catástrofes que o filme descreve sem economia de efeitos especiais bombásticos. Estas inundações e tsunamis de destrutividade gigantesca parecem estar no zeitgeist fílmico: também no Batman de Matt Reeves vemos Gotham ser inundada e devastada após os atentados cometidos pelo vilão Riddler contra os diques da cidade onde o ricaço Bruce Wayne age como um vigilante mascarado fantasiado de morcego. Nos dois casos, porém, a causa real e concreta que poderia causar tais catástrofes em nosso mundo – ou seja, o superaquecimento do clima planetário devido à emissão de gases de efeito estufa – é totalmente forcluída.
Eu vejo Moonfall como mais uma patriotada caça-níqueis destinada a nos fazer babar ovo para astronautas da NASA. Uma obra potencialmente alienante, que propõe rotas de salvação coletiva sempre perpassadas pelo elogio do mérito individual e calcadas numa delirante presunção de que os astronautas da NASA podem nos salvar de qualquer enrascada por mais fodida que seja. Neste caso, a coisa piora pois os NASA encontram seus improváveis aliados entre teoristas da conspiração que acreditam que a Lua é uma mega-estrutura artificial e nela há um monstrão na forma de uma nuvem negra malévola que seria preciso vencer, de preferência sem nuclear nukes que fariam a Terra cair num inverno nuclear apesar da dúbia vitória sobre o choque com a Lua. O spoiler vem aí, mas vocês já suspeitavam desde o princípio: eles salvam o mundo no último momento propício naquilo que eu costumo chamar de uma mega-marmelada. O filme é de um enredo estapafúrdio, hiper-pretensioso, obeso em efeitos visuais mas raquítico em insights sobre a crise sócio-ambiental que vivemos, e para além disso saca da manga um quase happy end que deixa o espectador ir para casa reconciliado com o temporal de desgraças. No final os tecnocratas aliados com os neo-místicos sempre vão salvar a porra toda, né gente…
Surpreendemente, nosso sempre provocativo intelectual midiático Slavoj Zizek confessou que gostou de Moonfall, ainda que tenha curtido o filme como um guilty pleasure. Em seu artigo A Estupidez da Natureza, publicado na revista Piauí, o crítico cultural esloveno empreendeu uma leitura paralela de Moonfall e de Não Olhe Para Cima (de Adam McKay), filme este que também já dichavamos aqui no site d’A Casa de Vidro. Como neste artigo buscamos uma análise em paralelo dos filmes Moonfall e Io, compartilhamos abaixo uma tentativa semelhante em que Zizek abordou Moonfall e Não Olhe Para Cima na perspectiva radical de uma Phýsis que, na contracorrente dos fiéis da sábia “Gaia”, ele afirma ser uma entidade bem mais “estúpida” do que sonha nossa positivamente tóxica presunção de natural sabedoria:
Slavoj Žižek | Piauí, Edição 189, Junho 2022
Vou confessar um prazer que me deixa culpado e provoca o desprezo de quase todos os meus amigos. Gosto bastante do filme de ficção científica mais ou menos recente de Roland Emmerich, Moonfall – Ameaça Lunar. O filme parte da premissa de que a Lua é uma megaestrutura sintética construída pelos ancestrais da humanidade, como uma arca para repovoar a nossa espécie depois do conflito com uma poderosa inteligência artificial (IA) fora de controle.
Duas características do filme que acho interessantes são, primeiro, a desnaturalização do que percebemos originalmente como um gigantesco objeto natural – a superfície esburacada da Lua é apenas a máscara que esconde uma complexa máquina interna; e, em segundo lugar, o conflito que estrutura a totalidade da história humana se trava entre duas estirpes de inteligência artificial, a IA da Lua e a ia fora de controle, não entre a humanidade e uma IA enquanto tal.
Então, o que acontece se universalizamos a premissa e concebemos a própria natureza – o que vemos como seus traços mais “naturais” (a espontaneidade, o caos etc.) – como uma aparência enganosa ocultando uma máquina interna? Os mais recentes desenvolvimentos biogenéticos não nos ensinam que estamos entrando numa nova fase em que é a própria natureza que se desmancha no ar?
A biotecnologia é um prenúncio do fim da natureza. Depois que descobrimos as regras de sua construção, os organismos naturais se transformam em objetos passíveis de manipulação. A natureza, tanto a humana quanto a não humana, é assim “dessubstancializada”, despojada de sua densidade impenetrável, do que Martin Heidegger chamava de “Terra”. E isso nos obriga a atribuir um novo sentido ao título de Freud, Das Unbehagen in der Kultur – o mal-estar, o desconforto, na cultura.[1] Com os desdobramentos mais recentes, o desconforto se desloca da cultura para a própria natureza: a natureza não é mais “natural”, o pano de fundo sempre confiável e “denso” das nossas vidas. Ela agora aparece como um mecanismo frágil que a qualquer momento pode explodir numa catástrofe.
Crucial, aqui, é a interdependência entre o homem e a natureza: reduzindo o homem apenas a um objeto natural a mais, cujas propriedades podem ser manipuladas, o que perdemos não é (só) a humanidade, mas também a própria natureza. Nesse sentido, Francis Fukuyama tem razão. A própria humanidade conta com uma noção de “natureza humana” que simplesmente nos é dada, a dimensão impenetrável em/de nós mesmos em que nascemos/somos despejados. O paradoxo, assim, é que o homem só existe na medida em que existe uma natureza humana impenetrável (a “Terra” de Heidegger). Com a possibilidade de intervenções biogenéticas inaugurada pelo acesso ao genoma, a espécie pode ter a liberdade de modificar ou redefinir a si mesma, suas próprias coordenadas. Essa possibilidade, na prática, emancipa a humanidade das limitações de uma espécie finita, de sua escravização pelos “genes egoístas”. No entanto, essa liberdade suprema (de autorreconstrução genética) coincide com a ausência suprema de liberdade: eu próprio me vejo reduzido a um objeto que pode ser interminavelmente remodelado.
Aqui chegamos à outra característica de Moonfall – Ameaça Lunar, que permite ao filme diluir a implicação radical da desnaturalização da natureza: o conflito subjacente ao enredo é o confronto entre duas espécies de IA, que atuam ambas como entidades dotadas de vontade e intenção ativas. O que se perde com isso é algo que só podemos chamar de absoluta estupidez da natureza: a natureza é estupidamente indiferente às tribulações da humanidade, e as teorias da conspiração têm a intenção precisa de tornar essa estupidez menos patente, como podemos ver no caso das interpretações conspiratórias da pandemia de Covid.
Moonfall – Ameaça Lunar celebra um teórico da conspiração de nome K. C. Houseman (interpretado por John Bradley), o único que sabe o que está acontecendo o tempo todo, embora esteja totalmente excluído da esfera acadêmica oficial. Para salvar o mundo, ele une forças com um astronauta caído em desgraça e a ex-mulher do astronauta, a diretora da Nasa (Halle Berry) que também tem dúvidas quanto à versão oficial do que está acontecendo.
Aqui o enredo dá uma guinada quase freudiana: em seu desfecho, o astronauta e a chefe da Nasa decidem tentar de novo e voltam a formar um casal, mas para tanto Houseman precisa se sacrificar, morrendo no interior da Lua para dar cabo da ia malévola. Houseman toma essa decisão para impressionar sua mãe, provar para ela que é realmente capaz de atos de grandeza. Depois disso, o par romântico do filme se une para sempre no espaço virtual da IA boa da Lua. Assim, o casal só pode ser formado graças ao sacrifício altruísta da figura de Houseman, um incel – não existe casal feliz sem o sacrifício de um indivíduo incestuosamente obcecado. E descobrimos também que o autossacrifício de Houseman replica o autossacrifício da IA primordialmente “boa”, que se anula como entidade ativa para permitir que a vida floresça na Terra. Aqui, estamos mergulhados até os joelhos na teologia sacrificial: a humanidade deve sua existência ao sacrifício de uma inteligência sobrenatural.
É por isso que Moonfall – Ameaça Lunar é bastante inferior a Não Olhe para Cima, de Adam McKay, em que também precisamos levantar os olhos para enxergar o que ameaça a nossa sobrevivência. Só que essa ameaça é aceita, em sua estupidez sem sentido, sem qualquer conspiração subjacente: um imenso cometa se avizinha da Terra, e o choque próximo irá destruir toda a vida do planeta. Esse apocalipse definitivo (a vida na Terra se extinguirá dali a seis meses e todos sabem, embora esse conhecimento seja repudiado) é apresentado sob a forma de uma sátira política – mais precisamente uma sátira por trás da qual se percebem o tempo todo as trevas mais extremas. A opção pela sátira é correta: quando lidamos com uma catástrofe verdadeira, vemo-nos além do alcance da tragédia, e só a comédia pode se desincumbir da tarefa graças a sua própria inadequação à situação vigente – lembrem que os melhores filmes sobre os campos de concentração são comédias.
Não admira que alguns críticos tenham se incomodado com a leveza de tom de Não Olhe Para Cima, argumentando que o filme trivializa o apocalipse definitivo. O que de fato incomodou esses críticos é exatamente o oposto: o filme põe em destaque a trivialização que permeia não só o establishment, mas também seus contestadores. A presidente dos Estados Unidos (interpretada por Meryl Streep) é obviamente baseada em Hillary Clinton, de modo que sua relutância em levar a ameaça a sério não vem de uma posição populista de direita. E mesmo aqueles que insistem nos protestos, os que mais adiante no filme repetem a palavra de ordem “Olhe Para Cima!”, suplicando que se leve a sério o cometa cada vez mais próximo, não estão propondo qualquer providência eficiente – limitam-se a participar de um grande espetáculo com estrelas pop, entoando as palavras de ordem mais óbvias. Em vez de indicar um ataque barato aos populistas de direita, os alvos do filme são as duas reações predominantes a ameaças como o aquecimento global: a do establishment liberal e dos ecologistas que protestam contra ele.
Mais precisamente, a lição de Não Olhe Para Cima é que os teóricos da conspiração incorporam o inconsciente da “racionalidade” do establishment liberal. A verdade é exatamente o oposto do costumeiro argumento conspiracionista segundo o qual o poder estabelecido invoca cinicamente falsas ameaças de calamidade para controlar as pessoas. Pelo contrário, as forças do establishment sabem perfeitamente que o perigo é real, mas não conseguem elas mesmas, no íntimo, acreditar nele – são elas os verdadeiros negacionistas.
As reuniões festivas promovidas no jardim por Boris Johnson durante um lockdown rigoroso são reveladoras: embora o primeiro-ministro britânico conhecesse perfeitamente a realidade da Covid – e de fato quase morreu da doença –, essas festinhas demonstram que na verdade não acreditava nela, que percebia a si mesmo e a seu círculo mais íntimo como de alguma forma isentos desse mal. Quando, no filme, a presidente e comandante em chefe Streep faz uma pergunta – “Mas o choque do cometa com a Terra vai impedir o Super Bowl?” –, ela exemplifica perfeitamente essa postura, como se o fim de toda a vida na Terra não tornasse a pergunta sem sentido. Eis por que o verdadeiro alvo da nossa crítica não deve ser os negacionistas absolutos, mas o falso “racionalismo” do establishment.
E, surpreendentemente, isso nos remete de volta a Moonfall – Ameaça Lunar. Em Não Olhe Para Cima, a humanidade está condenada, enquanto em Moonfall um bando de excêntricos antiestablishment salva a Terra. Serão essas as únicas alternativas que temos? Agir com base em teorias da conspiração ou nos sentarmos à mesa, degustando tranquilamente um último repasto enquanto esperamos a explosão da catástrofe (a última cena de Não Olhe Para Cima)? Existe uma terceira opção: devemos aceitar a lição da teologia sacrificial que permeia Moonfall – Ameaça Lunar, mas situá-la numa aceitação materialista da estupidez sem sentido da natureza.
A humanidade deve sua existência não ao sacrifício de alguma inteligência sobrenatural, mas aos imensos extermínios e sofrimentos que acometeram a vida na Terra. Sem a extinção dos dinossauros não haveria vida humana no planeta. Nossas principais fontes de energia (carvão e petróleo) são resquícios de uma destruição inimaginável ocorrida no passado. Nossos hábitos cotidianos dependem do sofrimento global – basta pensar no que ocorre em granjas industrializadas com os porcos e os frangos.
Não somos apenas uma catástrofe para o nosso meio ambiente – emergimos dessa catástrofe e ainda hoje vivemos dela. O cometa que atingiu os animais da Terra somos nós: o espírito humano. E todos esses sacrifícios jamais poderão ser redimidos por algum novo tipo de Tribunal de Nuremberg que nos condene por nossos crimes contra a vida natural. A coisa mais difícil não é encontrar um sentido profundo no sofrimento, mas aceitar realmente a sua falta de sentido.
Publicado em: 10/07/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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